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Eeefm Doutor Francisco De Albuquerque Montenegro
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<p>LIGA, RODA, CLICA</p><p>ESTUDOS EM MÍDIA, CULTURA E INFÂNCIA</p><p>Monica Fantin</p><p>Gilka Girardello (orgs.)</p><p>>></p><p>http://www.papirus.com.br/</p><p>http://www.papirus.com.br/</p><p>APRESENTAÇÃO DA</p><p>COLEÇÃO</p><p>Ágere, termo latino, é fonte</p><p>primeira de duas palavras de uso</p><p>corrente em português: agir (que</p><p>chegou a nós do francês, agir) e</p><p>arte (de ars, artis).</p><p>Assim, escolhemos Ágere para</p><p>denominar uma coleção que busca</p><p>instigar o debate e desenvolver a</p><p>crítica tanto no agir educacional,</p><p>no sentido amplo, relacionado às</p><p>várias disciplinas que integram o</p><p>currículo (campo do universo</p><p>objetivo), quanto no campo da arte,</p><p>via de expressão privilegiada do</p><p>universo subjetivo e espelho das</p><p>culturas e de seu tempo.</p><p>SUMÁRIO</p><p>APRESENTAÇÃO</p><p>Monica Fantin e Gilka Girardello</p><p>1. ESTAÇÃO MEMÓRIA: NOVOS CAMINHOS DA MEDIAÇÃO E</p><p>DA APROPRIAÇÃO CULTURAL</p><p>Edmir Perrotti</p><p>2. IMAGENS DA MÍDIA, EDUCAÇÃO E EXPERIÊNCIA</p><p>Rosa Maria Bueno Fischer</p><p>3. A FORMAÇÃO DA CONSCIÊNCIA CIVIL ENTRE O “REAL” E</p><p>O “VIRTUAL”</p><p>Pier Cesare Rivoltella</p><p>4. A QUESTÃO DO MÉTODO E A PESQUISA SOBRE IMAGENS</p><p>DE INFÂNCIA</p><p>Telma Anita Piacentini</p><p>5. INFÂNCIA E MÍDIA: CRIANÇAS DESENHAM NOVAS</p><p>CORPOREIDADES?</p><p>Ingrid Dittrich Wiggers</p><p>6. OS JOVENS E A INTERNET: REPRESENTAÇÕES, USOS E</p><p>APROPRIAÇÕES</p><p>Maria Luiza Belloni</p><p>7. CIRANDA DE SENTIDOS: CRIANÇAS, CONSUMO</p><p>CULTURAL E MEDIAÇÕES</p><p>Maria Isabel Orofino</p><p>8. PRODUÇÃO CULTURAL INFANTIL DIANTE DA TELA: DA</p><p>TV À INTERNET</p><p>Gilka Girardello</p><p>9. DO MITO DE SÍSIFO AO VOO DE PÉGASO: AS CRIANÇAS, A</p><p>FORMAÇÃO DE PROFESSORES E A ESCOLA ESTAÇÃO</p><p>CULTURA</p><p>Monica Fantin</p><p>SOBRE OS AUTORES</p><p>OUTROS LIVROS DOS AUTORES</p><p>REDES SOCIAIS</p><p>CRÉDITOS</p><p>APRESENTAÇÃO</p><p>As meninas e os meninos do Brasil</p><p>Tão querendo falar tanto pela tela e pelo fio</p><p>Tão buscando a sua cara</p><p>Tão querendo se ver grandes</p><p>No retrato que a TV coloriu.</p><p>A TV, as revistinhas, a internet</p><p>O CD e as figurinhas do chiclete</p><p>A imagem que é viagem num tapete voador</p><p>No retrato que o artista iluminou</p><p>Tantos cantos pros encontros</p><p>Com o brinquedo</p><p>Com o segredo</p><p>Com a magia</p><p>Tantos cantos pros encontros</p><p>Com a cidade</p><p>O nó na rede</p><p>E a poesia</p><p>Liga-liga-liga</p><p>Toca-salva-clica</p><p>Passa-passa-passa</p><p>Passará.</p><p>Qual é teu e-mail?</p><p>Fim, começo e meio</p><p>Um meio por inteiro</p><p>Pras crianças de qualquer lugar</p><p>Um sítio neste site para a gente se encontrar</p><p>Um plug brasileiro pras crianças de todos os cantos</p><p>Um meio por inteiro pras crianças de dois mil e tantos.</p><p>Canção tema das jornadas Mídia e Imaginário Infantil (Nica-UFSC)</p><p>A vida das crianças de hoje, em toda a sua singularidade cultural,</p><p>parece às vezes um matagal cheio de novos desafios, que não se pode</p><p>atravessar seguindo apenas as antigas estradas. Não há mapas nem</p><p>placas que garantam as direções, já que os mapas existentes se referem</p><p>a um tempo muito diferente, quando não havia internet nem celulares,</p><p>nem a pulverização das formas culturais que povoam o cotidiano das</p><p>crianças de hoje.</p><p>Este livro reúne textos que podem ser comparados a trilhas, que</p><p>vêm sendo abertas passo a passo, experimentalmente, na topografia</p><p>desses territórios que nos parecem novos. São textos que expõem</p><p>trajetórias de pesquisa singulares, porém unidas pelo compromisso</p><p>comum de promover uma educação que dialogue de forma mais aberta</p><p>com a cultura e com o intenso entorno comunicativo de crianças, jovens</p><p>e adultos.</p><p>Se em alguma medida essas trilhas são novas, pode ser também</p><p>porque não prescindem da memória dos caminhantes que antes de nós</p><p>tiveram compromissos semelhantes. Afinal, numa época de aceleração e</p><p>consumo descartável, a valorização da experiência assume um caráter</p><p>de resistência – e até mesmo de novidade.</p><p>A velocidade das mudanças nos processos e tecnologias de</p><p>comunicação, assim como nas configurações culturais, acarreta desafios</p><p>tão grandes para quem trabalha com crianças que é frequente um</p><p>sentimento de vertigem e desorientação, particularmente entre os</p><p>professores. O livro leva em conta esse sentimento, reunindo artigos de</p><p>pesquisadores que há muitos anos investigam possibilidades de crítica,</p><p>mas também de construção de alternativas para o campo de</p><p>cruzamentos entre a educação, a cultura e a comunicação.</p><p>Quando estamos perdidos no meio de uma floresta, pode ser preciso</p><p>ir até um mirante mais alto para que possamos ver os limites da mata e</p><p>enxergar as trilhas que possam existir dentro dela. A trajetória dos</p><p>autores aqui reunidos envolve tanto a subida aos mirantes – a busca de</p><p>pensar o panorama educativo e cultural de um modo abrangente –</p><p>quanto o trabalho “de formiguinha” da caminhada pelo mato – o</p><p>envolvimento direto em projetos, escolas e comunidades. Os mirantes,</p><p>aliás, são vários, sobretudo as ciências da educação e da comunicação,</p><p>campos principais de formação dos autores. Outro traço comum entre</p><p>estes é o vínculo com o Grupo de Pesquisa Infância, Comunicação e</p><p>Arte (UFSC/CNPq), seja como pesquisadores ou como parceiros que há</p><p>vários anos contribuem com as discussões ali realizadas.</p><p>Assim, a organização do livro estrutura-se com base tanto em</p><p>fontes consolidadas do saber teórico no campo da educação e da</p><p>comunicação, quanto em experiências culturais críticas e participativas</p><p>relacionadas à infância e à mídia-educação.</p><p>Os três primeiros capítulos referem-se às relações entre</p><p>comunicação, cultura e educação de modo mais amplo, necessária, para</p><p>pensar a vida simbólica das crianças hoje. São todos textos propositivos</p><p>além de analíticos, escritos por pesquisadores da relação entre infância e</p><p>cultura, embora o horizonte das questões tratadas nos capítulos</p><p>transcenda esse foco.</p><p>Em “Estação Memória: Novos caminhos da mediação e da</p><p>apropriação cultural”, Edmir Perrotti defende a necessidade da</p><p>circulação narrativa entre crianças, jovens e pessoas de idade, para que</p><p>a experiência vivida pelos mais velhos possa afirmar uma polifonia em</p><p>ruptura com a ordem discursiva hegemônica. Nesse processo, as</p><p>crianças e os jovens vão aprendendo a exercer o prazer da escuta ativa e</p><p>criativa que, para o autor, é condição necessária para que eles possam</p><p>ser herdeiros críticos da produção cultural, “capazes de negociar as</p><p>significações sem banalizá-las ou reduzi-las”.</p><p>Também Rosa Maria Bueno Fischer, no Capítulo 2, “Imagens da</p><p>mídia, educação e experiência”, trata do conceito de experiência,</p><p>tomando-o como via para investigar as relações entre mídia e educação.</p><p>Ela equipara a negação da experiência realizada pelas imagens da</p><p>televisão a operações equivalentes realizadas com crianças e jovens na</p><p>escola, como o apagamento das singularidades, e interroga: “o que</p><p>somos hoje capazes de experimentar? Somente o que a mídia nos ensina</p><p>a ver, o que a escola nos ensina a dizer?”.</p><p>No Capítulo 3, “A formação da consciência civil entre o ‘real’ e o</p><p>‘virtual’”, Pier Cesare Rivoltella discute a presença das mídias na</p><p>realidade atual, investigando a multiplicação dos espaços de olhar e de</p><p>agir com base no conceito de sociedade multitela. Discutindo nossa</p><p>experiência em relação ao mundo físico e virtual, o autor nos leva a</p><p>pensar nas novas formas de espaço público e na redefinição dos</p><p>conceitos de cidadania e participação, e a refletir sobre as tarefas da</p><p>educação neste novo espaço de reflexão e intervenção.</p><p>Os dois capítulos seguintes partem de reflexões sobre pesquisa com</p><p>imagens na infância.</p><p>No Capítulo 4, “A questão do método e a pesquisa sobre imagens</p><p>de infância”, Telma Anita Piacentini discute algumas questões sobre a</p><p>construção do pensamento científico na pesquisa com imagens da</p><p>infância. Baseada no conceito benjaminiano de “método como desvio” e</p><p>de uma pedagogia da imagem, a autora analisa imagens de infância em</p><p>um conjunto de brincadeiras infantis, destacando o princípio educativo</p><p>da ligação entre os objetos da pesquisa que recuperam o passado e</p><p>constroem o presente na particularidade do mundo infantil.</p><p>Ingrid Dittrich Wiggers, no Capítulo 5, “Infância e mídia: Crianças</p><p>desenham novas corporeidades?”, discute as noções de corpo que</p><p>emergem da cultura midiática contemporânea por meio de desenhos</p><p>feitos por crianças. A autora questiona os modelos de “corpos em</p><p>evidência” e a forma como a mídia e a escola veem</p><p>das</p><p>Letras.</p><p>SARLO, Beatriz (1997). “A democracia midiática e seus limites” e “Sete hipóteses sobre a</p><p>videopolítica”, Paisagens imaginárias. São Paulo: Edusp.</p><p>SCHWERTNER, Suzana Feldens (2005). “Ficção e realidade no programa ‘Cidade dos</p><p>Homens’: Elementos para pensar sobre mídia e pedagogia das imagens”, Educar em</p><p>Revista, vol. 26, n. 1. (Dossiê mídia e educação: A produção de novos sujeitos e novas</p><p>pedagogias). Curitiba: UFPR, pp. 39-52.</p><p>VITELLI, Celso (2005). “Adolescência e arte: Estética e práticas culturais”, Aprender:</p><p>Caderno de filosofia e psicologia da educação, ano 3, n. 4. (Dossiê temático: Infância e</p><p>educação). Vitória da Conquista: Edições Uesb, jan.-jun., pp. 113-140.</p><p>http://www.anped.org.br/reunioes/28/textos/gt08/gt08431int.rtf</p><p>3</p><p>A FORMAÇÃO DA CONSCIÊNCIA CIVIL ENTRE</p><p>O “REAL” E O “VIRTUAL”[*]</p><p>Pier Cesare Rivoltella</p><p>A sociedade multitela</p><p>A ideia de uma “sociedade multitela” é emprestada de um colega da</p><p>Universidade do Minho, Manuel Pinto (2005), que, em um recente</p><p>congresso, sugeria uma modalidade para explicar a transformação em</p><p>curso na realidade atual, marcada pela presença das mídias.</p><p>A ideia de Pinto é interessante e seguramente funcional na medida</p><p>em que permite entender três dimensões que são características de tal</p><p>sociedade.</p><p>Em primeiro lugar, a multiplicidade das telas indica uma</p><p>multiplicação dos espaços do ver. À tela do cinema e da televisão – de</p><p>agora em diante clássicas – se agregam as telas do computador e dos</p><p>consoles portáteis (como aqueles dos videogames Nintendo ou do PS</p><p>Móvel), das instalações públicas (nos aeroportos, nas estações),</p><p>artísticas e comerciais (com a projeção de imagens sobre uma</p><p>multiplicidade de telas de plasma umas ao lado das outras), dos leitores</p><p>de DVD portáteis, dos palm tops e dos telefones móveis de terceira</p><p>geração.</p><p>A multiplicação de todas essas telas pressupõe uma clara</p><p>redefinição da modalidade e do significado do olhar. O dispositivo</p><p>cinematográfico (e em parte ainda o televisivo), como sugere Jacques</p><p>Aumont (1995), instituía uma geometria espectatorial e caracterizada</p><p>por um olhar durável (um filme, na sala escura, se assiste do início ao</p><p>fim), variável (do ponto de vista temporal, na medida em que a sucessão</p><p>de imagens no interior do filme configura também uma sucessão</p><p>temporal da história), isolável (aquilo que posso ver no cinema é aquilo</p><p>que o filme permite ver). Esse olhar se reconfigura drasticamente no</p><p>caso das telas tecnológicas. Ele torna-se intermitente (um mosaico de</p><p>estímulos visuais descontextualizados substitui a permanência do</p><p>filme), móvel (porque não faz mais referências à representação do</p><p>tempo no interior da obra, mas à temporalidade do ver que se desloca de</p><p>tela em tela), interativo (aquilo que vejo é o que quero ver, por meio de</p><p>um exercício ativo de relacionamento com as diversas telas).</p><p>Esse novo tipo de olhar, com suas características, redefine também</p><p>a modalidade por meio da qual os sujeitos se apropriam do saber. A</p><p>multiplicação de telas, vista nessa perspectiva, implica seja um</p><p>crescimento exponencial da informação disponível como um</p><p>desaparecer dos pontos de vista centrais. Trata-se de aspectos sobre os</p><p>quais é fácil entender toda a ambivalência. Dispor de mais informações</p><p>em mais telas significa dispor de mais pontos de acesso ao saber (a tela</p><p>do computador é diferente da tela da televisão ou do celular): tais</p><p>pontos de acesso tornam-se mais facilmente compatíveis a respeito dos</p><p>estilos cognitivos dos sujeitos, potencializando de fato as aprendizagens</p><p>(Gardner 1999).</p><p>Melhora também a possibilidade de encontrar informações por</p><p>meio de uma inversão das tradicionais modalidades de pesquisa: o</p><p>saber, de fato, não se encontra mais guardado nos depósitos (na</p><p>biblioteca, no arquivo) aos quais é preciso dirigir-se para atingi-lo, mas</p><p>está disponível à própria consulta através das próprias telas, que fazem</p><p>aumentar sua circulação. Enfim, segundo uma lei da teoria da</p><p>informação, codificar mais vezes as informações segundo modalidades</p><p>diversas implica lidar com redundância, facilitando por isso mesmo a</p><p>atividade com que os sujeitos delimitam o significado.</p><p>Se, porém, se volta sobre esses aspectos, facilmente se pode</p><p>perceber uma oscilação do seu significado. De fato, multiplicar os</p><p>pontos de acesso ao saber produz um contínuo deslocamento do</p><p>destinatário, comprometendo a unidade representada. Do mesmo modo,</p><p>a possibilidade de acesso físico à informação (a sua disponibilidade</p><p>sobre a tela) não coincide necessariamente com sua possibilidade de</p><p>acesso cognitivo: pelo contrário, justamente pelo seu crescimento</p><p>exponencial, torna-se dificílimo recuperar aquela parte da informação</p><p>que é pertinente às nossas exigências.</p><p>Enfim, a possibilidade da redundância também oculta o risco de</p><p>entropia na medida em que a remodelação produz de fato nova</p><p>informação e, em vez de delimitar o sentido, abre-o indefinidamente.</p><p>O ver e o saber, as lógicas da visão e da apropriação dos</p><p>significados, constituem duas modalidades por meio das quais desde</p><p>sempre, mas sobretudo neste contexto, articula-se o nosso viver social.</p><p>Multiplicar as telas significa não só multiplicar as possibilidades do ver</p><p>e do saber, mas também dos espaços do habitar, do viver social. Desse</p><p>ponto de vista, é absolutamente revelador aquilo que Sherry Turkle</p><p>narra a respeito da própria experiência de terapeuta, relatando o</p><p>depoimento de um paciente seu:</p><p>Posso dividir a minha mente em mais partes, e funciona sempre melhor. Consigo</p><p>ver a mim mesmo separado em duas, três ou mais entidades diferentes. E passando</p><p>de uma janela a outra cada vez acessando uma parte da minha mente. Em uma</p><p>janela estou participando de uma complicada discussão, enquanto que em outra</p><p>estou atrás de uma moça em um MUD, e em outra ainda posso ocupar-me de uma</p><p>determinada pesquisa escolar... E a um certo ponto, vejo chegar uma mensagem em</p><p>tempo real [que brilha sobre a tela assim que me foi enviada por outro usuário do</p><p>sistema], e imagino que isso seja a vida real. Que é somente uma janela a mais.</p><p>(1999, p. 15)</p><p>Trata-se de uma perspectiva interessante, que não deve estar</p><p>confinada ao espaço da patologia. De fato, afirmar que a vida real é só</p><p>uma outra janela aberta sobre o nosso desktop significa entender um dos</p><p>aspectos mais interessantes (e no fundo constitutivos) da sociedade</p><p>multitela, e isso quer dizer a substituição do espaço físico por um novo</p><p>tipo de espaço social.</p><p>Isso significa que, enquanto na sociedade pré-eletrônica (pré-</p><p>digital) a mesma possibilidade de comunicação era estruturalmente</p><p>dependente do espaço físico (e que muros e portas constituíam limites</p><p>de acesso ou de exclusão da comunicação), na sociedade multitela do</p><p>telefone celular e da comunicação na internet (mas no fundo já da</p><p>televisão), a comunicação acontece no interior de um novo espaço que</p><p>torna possível o compartilhamento dos significados e a relação entre os</p><p>sujeitos (neste sentido é social), mesmo que prescinda da sua colocação</p><p>no mesmo lugar (Meyrowitz 1993). Quando assistimos a uma partida de</p><p>futebol, quando conversamos ou chatteamos no Messenger, interagindo</p><p>em modalidade áudio-vídeo com nosso interlocutor, quando (vídeo)</p><p>chamamos do nosso celular, estamos compartilhando com os outros um</p><p>espaço social sem compartilhar com eles um espaço físico. E o aspecto</p><p>interessante é que, mesmo não compartilhando um espaço físico, não</p><p>podemos dizer que a nossa comunicação não seja real, não só porque</p><p>ela está acontecendo, mas também pela concretude de vivências que</p><p>estão acontecendo por meio dela.</p><p>Tabela 1: As dimensões da sociedade multitela</p><p>DIMENSÕES SOCIEDADE TRADICIONAL SOCIEDADE MULTITELA</p><p>Ver</p><p>Durável</p><p>Variável</p><p>Móvel</p><p>Intermitente</p><p>Móvel</p><p>Interativo</p><p>Saber</p><p>Arquivado</p><p>Monovisivo</p><p>Distribuído</p><p>Multiacesso</p><p>Habitar Lugar físico Lugar social</p><p>Aqui percebemos que a contraposição entre o real e o virtual não se</p><p>sustenta, não só do ponto de vista teórico – como, por sua vez, já tinha</p><p>demonstrado Pierre Levy relendo Aristóteles na perspectiva de Deleuze</p><p>(1969) –, mas também em uma perspectiva decisivamente</p><p>mais</p><p>experiencial. É preciso ver como é possível superá-la (problematizando</p><p>desse modo o próprio título deste artigo) para determinar, pois, em</p><p>virtude dessa superação, o sentido exato da cidadania em um contexto</p><p>inovador semelhante.</p><p>Os “objetos sociais”: Além da distinção entre real e virtual</p><p>Recuperemos as linhas essenciais da análise de Levy (1997). Ela</p><p>partia da reconfiguração das relações entre real e virtual mediante uma</p><p>discussão da sua acepção mais comum. Essa acepção está clara no</p><p>vocabulário que veio se constituir paralelamente à difusão das</p><p>tecnologias digitais: fala-se, nesse sentido, de “comunidades virtuais”</p><p>para fazer referência às pessoas do chat e dos MUD,[1] de “mundo</p><p>virtual” para aludir ao espaço do videogame (pensando nas cidades</p><p>virtuais que se podem construir colaborativamente com outros usuários</p><p>nos videogames como Sim City), de “realidade virtual” para indicar um</p><p>mundo de objetos sintéticos (porque gerados pelo computador) no qual</p><p>é possível imergir-se entrando em relação com os objetos que o povoam</p><p>graças a dispositivos como um Dataglove ou um sistema de definição</p><p>de imagens sobre a retina (Retinal Virtual Display).</p><p>Ora, quando se fala de virtual em todas essas acepções, está</p><p>implícito que isso – como algo privado de corpo, de matéria, de</p><p>substância – seja oposto ao real – aquilo que, ao contrário, é concreto,</p><p>material, corpóreo.</p><p>Aqui se enxerta a análise de Levy, que observa que, mesmo em</p><p>virtude dessa polaridade conceitual,</p><p>(...) a palavra virtual é utilizada para significar a ausência de existência pura e</p><p>simples, do momento em que a “realidade” implicaria uma efetividade material,</p><p>uma presença tangível. Aquilo que é real reentraria na ordem da presença concreta</p><p>(“o ovo de hoje”), e o que é virtual naquele da “presença diferida” (“a galinha de</p><p>amanhã”), ou da ilusão, o que freqüentemente sugere uma atitude de fácil ironia</p><p>para evocar as diversas formas de virtualização. (1997, p. 5)</p><p>Claramente, pode-se logo notar que, entre o mundo virtual de um</p><p>videogame e a galinha de amanhã, há uma substancial diferença: o</p><p>primeiro, ainda que goze de uma existência particular – por assim dizer,</p><p>não em carne e osso –, de fato existe, porque caso contrário não se</p><p>poderia jogar; a galinha de amanhã, ao contrário, de fato não existe e</p><p>poderia não existir nunca. Em essência, isto é contrapor real e virtual</p><p>com aquilo que materialmente existe; trata-se, evidentemente, de uma</p><p>materialidade sui generis, feita de um bit gerado de um algoritmo, mas,</p><p>em todo caso, trata-se de uma materialidade. A consequência é que a</p><p>oposição de que se partiu não se sustenta: é corrigida. Levy o faz, como</p><p>dissemos anteriormente, retornando a Aristóteles, em particular à</p><p>doutrina do pollachòs segundo a qual o ser se diz de muitos modos (em</p><p>grego, pollachòs): segundo a substância e os acidentes, o verdadeiro e o</p><p>falso, a matéria e a forma, o ato e a potência. Justamente sobre este</p><p>último célebre par categorial é preciso refletir, pois ele fornece o</p><p>impulso para situar a diferença entre real e virtual.</p><p>Um simples exemplo nos faz compreender em que sentido:</p><p>aristotelicamente, a semente em sentido próprio não é o fruto, e todavia</p><p>entre eles (a semente e o fruto) não há uma diferença absoluta como</p><p>aquela que afirmamos quando dizemos que o branco não é o preto.</p><p>Entre a semente e o fruto, existe uma relação particular derivada do fato</p><p>de que a semente, de qualquer modo, já é o fruto, mas precisamente só</p><p>“em potência”, vale dizer de maneira latente e não de todo alargada:</p><p>será necessária a ativação de um processo para que essa potencialidade</p><p>possa traduzir-se em ato, isto é, em existência perfeita e manifestada. O</p><p>ser potencial não é igual ao nada; isso simplesmente existe segundo</p><p>uma modalidade de existência diferente daquela do ser atualizado.</p><p>A substância do virtual seria determinada, segundo Levy (1997, p.</p><p>6), justamente por meio dessa indicação de trabalho. O virtual (virtus,</p><p>em latim, indica potencialidade)</p><p>(...) não se opõe ao real mas ao atual. Contrariamente ao possível, estático e já</p><p>constituído, o virtual é como um complexo problemático, o nó de tendências e</p><p>forças que acompanham uma situação, um evento, um objeto ou uma entidade</p><p>qualquer, e que requer um processo de transformação e atualização. Tal complexo</p><p>problemático faz parte de uma entidade considerada, o que constitui um dos</p><p>aspectos de maior destaque.</p><p>Perfila-se, assim, para o filósofo francês, um duplo plano do ser em</p><p>que ao possível (a galinha de amanhã) se contrapõe o real (o ovo de</p><p>hoje); ao virtual (a semente como sistema de forças que predispõem a</p><p>transformação em fruto), o atual (a efetiva atuação daquelas forças).</p><p>Possível e real definem um plano estático de existência; virtual e atual,</p><p>um plano dinâmico, tanto que seria melhor falar nos termos da</p><p>virtualização e da atualização.</p><p>Tabela 2: As modalidades de ser na perspectiva de Levy</p><p>Modalidade de ser Latente Manifestada</p><p>Substância</p><p>Evento</p><p>Possível</p><p>Virtual</p><p>Real</p><p>Atual</p><p>A argumentação de Levy possui indubitavelmente o mérito de</p><p>corrigir uma leitura do mundo digital segundo a qual ele, como virtual,</p><p>não existiria. Todavia, a sua análise precisa ser completada pelo menos</p><p>por dois motivos. Primeiramente, não se entende por que o objeto</p><p>virtual não pode ser inscrito na ordem da substância. O traço magnético</p><p>de um audiovisual sobre uma fita, como um arquivo do meu</p><p>computador ou a memória ótica arquivada em um CD-ROM, existe, de</p><p>qualquer forma se inscreve na ordem da substância. Em segundo lugar,</p><p>se a virtualização consiste em um processo de problematização, então</p><p>não se entende por que esse processo deveria pertencer só ao mundo</p><p>digital e não também à simulação, assim como acontece em um role-</p><p>playing (RPG) ou em um experimento mental. Os objetos digitais de</p><p>qualquer modo existem, mesmo que de forma atualizada, e precisamos</p><p>explicar em que consiste sua diferença a respeito de outros fenômenos</p><p>marcados por processos de virtualização.</p><p>A possibilidade de ir além de Levy decorre da adoção do conceito</p><p>de objeto social, assim como é definido por Maurizio Ferraris (2005).</p><p>Com esse termo se designa um regime de objetos intermediários entre</p><p>os objetos físicos (a casa, o copo, a árvore) e os objetos ideais (a raiz</p><p>quadrada de um número, a superfície do círculo): todos são objetos,</p><p>como um ato de compra e venda ou a representação de uma transação</p><p>comercial sobre a tela de um computador, que não existem do mesmo</p><p>modo que os objetos físicos e que, todavia, à diferença dos objetos</p><p>ideais, possuem, seja como for, uma existência qualquer no espaço</p><p>físico.</p><p>Tabela 3: Tipologia dos objetos</p><p>Objetos físicos Existem no espaço e no tempo</p><p>Objetos ideais Existem fora do espaço e do tempo</p><p>Objetos sociais Requerem modestas porções de espaço e têm início no tempo</p><p>Fonte: Ferraris 2005, p. 69.</p><p>As características constitutivas desses objetos são duas: a</p><p>pressuposição de um ato social e sua inscrição. No caso, por exemplo,</p><p>de um ato de compra e venda, sua natureza de objeto social depende do</p><p>fato de pressupor um acordo entre duas pessoas que é materializado em</p><p>uma inscrição, isto é, na documentação (que justamente por isso tem</p><p>valor vinculante) daquilo que entre elas foi negociado.</p><p>Estendendo o mesmo tipo de raciocínio não só ao celular (como</p><p>Ferraris faz) mas a toda comunicação digital, é fácil verificar a</p><p>possibilidade de considerá-la efetivamente um sistema de objetos</p><p>sociais: um SMS, uma mensagem no correio eletrônico, em um fórum</p><p>ou em um chat, implicam um ato social (a comunicação é sempre um</p><p>ato social) que vem registrado em forma de marca informática. Mesmo</p><p>esse registro (como no caso do ato de compra e venda) serve para</p><p>constituir um estado de coisas: assim, se uso um fórum para obter uma</p><p>solução compartilhada de um problema, as marcas dessa obtenção de</p><p>solução escritas no fórum constituem e indicam o acordo que de fato foi</p><p>feito entre nós.</p><p>Olhando bem, porém, o mundo digital parece mais amplo do que o</p><p>que essa acepção de objeto social considera: antes de tudo, porque as</p><p>inscrições</p><p>que o constituem não traduzem necessariamente um ato</p><p>social presente entre dois ou mais sujeitos (quando publico um Website,</p><p>ele não deixa na rede as marcas de nenhum acordo feito entre mim e</p><p>outros navegadores); em segundo lugar, porque, na maioria das vezes,</p><p>em virtude da interatividade típica do mundo digital, o espaço da</p><p>socialidade não precede, mas constitui a própria natureza da inscrição (o</p><p>exemplo do fórum ou do chat acima mencionado explica bem). A</p><p>dimensão social, longe de constituir o ato que está na origem do objeto</p><p>social, representa melhor o entorno desse ato (um blog, como um</p><p>mundo wiki, não é resultado de um ato social, mas o espaço a partir do</p><p>qual atos sociais podem acontecer) ou a mesma substância (todas as</p><p>formas de interação telemática são sistemas de atos sociais). Por isso,</p><p>no caso do mundo digital, pode-se seguramente falar de um mundo de</p><p>objetos sociais, mas só se for pensado o conjunto de inscrições e de atos</p><p>sociais que o constituem no sentido mais amplo, em que os atos sociais</p><p>não só produzem as inscrições, mas são também produzidos por elas.</p><p>Trata-se daquela compreensão pragmática da comunicação em rede de</p><p>que em outro contexto já falamos (Rivoltella 2003) e que configura o</p><p>mundo digital como um cenário de ação em que objetos, no fundo, são</p><p>atos.</p><p>Da cidadania à cidadania digital: Uma nova ideia de espaço</p><p>público</p><p>As duas premissas articuladas nos parágrafos precedentes podem</p><p>ser aqui trazidas à conclusão. Se a sociedade multitela faz com que</p><p>nossa experiência das coisas não se refira apenas às relacionadas ao</p><p>mundo físico, mas também àquelas virtuais, e se estas últimas devem</p><p>ser pensadas como um cenário de ação em que se definem sistemas de</p><p>atos sociais, então se pode falar da sociedade multitela como uma nova</p><p>forma de espaço público, no interior da qual o conceito e a forma da</p><p>cidadania vão sendo redefinidos.</p><p>Por que a sociedade multitela representaria uma nova forma de</p><p>espaço público?</p><p>Antes de tudo, como sugere o próprio nome, ela é lugar de “uma</p><p>nova forma de pluralismo”. Como observa Roger Silverstone (2002, p.</p><p>227):</p><p>(...) vivemos em um mundo plural que compartilhamos com os outros, os quais se</p><p>chamam Simpsom e Ewing, Oprah Winfrey e Dan Leno, Bill Clinton, Tony Blair e</p><p>Saddam Hussein; se chamam talebãs e tutsi, bósnios e sérvios. São os vizinhos da</p><p>nossa rua e indivíduos sem nome da outra parte do planeta. Vivemos com eles na</p><p>sua diferença, seja dentro seja fora das mídias. Nenhuma política das mídias que</p><p>seja sensata pode permitir-se ignorar este pluralismo, o fundamento sobre o qual</p><p>ela se constrói, assim como nenhuma política nacional e global pode permitir-se</p><p>ignorar as mídias.</p><p>Em segundo lugar, a sociedade multitela é o espaço de uma</p><p>“reconfiguração do limite entre externo e interno”, seja na forma de</p><p>relação entre público e privado, seja na relação entre local e global. É o</p><p>caso da política, âmbito no qual a presença constante das mídias</p><p>reconfigura um termo mais familiar à imagem do poder, aproximando-o</p><p>das pessoas, mas que justamente por isso predispõe também a um</p><p>redimensionamento do valor simbólico do próprio poder mesmo</p><p>(porque o político, sempre em palco cênico, investigado em cada</p><p>instante da sua vida pelas telecâmeras, restitui por fim também imagens</p><p>de fraqueza, mostrando seus limites). Ou se pensarmos em como a</p><p>aplicação das novas tecnologias da comunicação para a formação está</p><p>predispondo a uma contínua erosão do tempo livre em favor de um</p><p>tempo do trabalho que, em nome da flexibilidade, está se tornando</p><p>sempre mais preponderante. Enfim, lembremos como a sensibilidade</p><p>dos dados, o problema da privacidade, a tutela das informações</p><p>reservadas se tornaram um tema central na agenda de um sistema social</p><p>em que os nossos deslocamentos no mundo digital são marcados, os</p><p>nossos telefonemas são registrados, os arquivos do nosso computador</p><p>são mapeados pelos engenhos de pesquisa,[2] até se tornarem um</p><p>precioso banco de dados para ser utilizado visando a um possível</p><p>controle de nossas escolhas e convicções.[3]</p><p>Além disso, a sociedade multitela é o espaço de uma outra</p><p>reconfiguração que diz respeito aos limites entre humano e não humano,</p><p>como sugestivamente indica Giuseppe Longo (2001, p. 40):</p><p>(...) o homem tecnologicus não é Homo sapiens mais tecnologia, e sim Homo</p><p>sapiens transformado pela tecnologia, por isso é uma unidade evolutiva nova, que</p><p>demonstra um novo tipo de evolução em um ambiente novo. Ainda que imerso no</p><p>mundo natural e por isso sujeito às suas leis, o novo simbionte vive também em um</p><p>ambiente artificial, fortemente marcado por informações, por símbolos, por</p><p>comunicações e, sempre mais, pela virtualidade.</p><p>Enfim, é necessário indicar como a sociedade multitela é também</p><p>um lugar de redução da diferença – típica da experiência moderna do</p><p>mundo – entre a ordem da visão e a ordem da ação. A interatividade das</p><p>tecnologias digitais, de fato, faz com que o ver se transforme</p><p>imediatamente em agir. É a lógica do desktop, em que o ícone pode ser</p><p>atualizado por meio do teclado. Aquilo que se vê (o ícone, exatamente)</p><p>é ao mesmo tempo aquilo sobre o que é possível intervir: e o clique</p><p>pressupõe os efeitos sobre os quais não estamos completamente</p><p>conscientes, visto que correspondem a complexas instruções no plano</p><p>técnico. Essa lógica é a mesma que torna muito semelhantes os ataques</p><p>aéreos sobre os consoles de um videogame, sobre os comandos de um</p><p>simulador de voo, e sobre a tela de um avião de combate durante uma</p><p>ação real de guerra. Se a ordem da visão resolve em si a ordem da ação,</p><p>tudo se torna limpo e ascético, como na “guerra cirúrgica”, mas isso não</p><p>pode deixar de provocar interrogações, sobretudo no plano ético.</p><p>Mesmo movendo-se neste último destaque em torno das</p><p>implicações éticas da dissolução do limite entre ver e agir, é possível</p><p>observar como cada uma dessas características do novo espaço público</p><p>que a tecnologia digital contribui para desenhar pode reconduzir a</p><p>quatro dimensões que classicamente são reconhecidas no interior da</p><p>cidadania:</p><p>a) Os direitos civis. Podem-se inscrever aqui as questões</p><p>ligadas à liberdade e ao controle, à tutela dos dados</p><p>pessoais, ao respeito e à violação de privacidade;</p><p>b) A cidadania política. Esta dimensão remete à paisagem</p><p>multimidiática da sociedade multitela, que incide tanto</p><p>sobre as representações da política e dos políticos (como</p><p>acima se mencionava), como sobre as formas de</p><p>participação (das enquetes ao televoto);</p><p>c) A cidadania social. Aqui encontra espaço o problema da</p><p>reconfiguração do tempo livre na sociedade digital,</p><p>marcada pelo teletrabalho e pelo e-learning;</p><p>d) A cidadania cultural. Aqui se colocam os temas que têm a</p><p>ver com o pertencimento cultural dos cidadãos, como o</p><p>problema da reconfiguração de limites entre humano e não</p><p>humano ou o da reconfiguração das relações entre ver e</p><p>agir.</p><p>Em suma, na medida em que a paisagem digital modifica o espaço</p><p>público, este produz também uma redefinição da ideia e dos espaços da</p><p>cidadania. Evidentemente isso implica a individualização de novos</p><p>valores e novas regras, colocados como ponto de partida de um novo</p><p>conceito de participação, a oferta de novas competências aos sujeitos,</p><p>uma atenção específica aos jovens, a predisposição de novas formas de</p><p>integração social. Uma tarefa que abre para a educação um novo espaço</p><p>de reflexão e intervenção.</p><p>A resposta da educação: Uma mudança de paradigma</p><p>A educação, na sociedade multitela – se é válido tudo o que</p><p>argumentamos até agora –, não pode deixar de ser uma mídia-educação.</p><p>Ou melhor: na sociedade multitela, aquilo que na sociedade digital</p><p>parecia uma tarefa específica de um segmento do trabalho educativo</p><p>(porque as mídias não eram assim difusivamente presentes) torna-se</p><p>uma tarefa irrenunciável da educação tout court. A mídia-educação, na</p><p>sociedade multitela, torna-se simplesmente educação! A educação,</p><p>nessa sociedade, de forma cada vez mais decisiva, sobretudo por seu</p><p>caráter midiatizador, orienta-se para o sentido da construção da</p><p>cidadania.</p><p>Trata-se de uma exigência evidenciada recentemente</p><p>em cada vez</p><p>mais ocasiões. Penso particularmente em dois congressos</p><p>internacionais: o Congresso Hispano-Luso de Comunicação “Hacia una</p><p>televisión de calidad”, ocorrido em Huelva, Espanha, em novembro de</p><p>2005, e o Congresso “La sapienza del comunicare”, em Roma, em</p><p>março de 2006. Diversas intervenções, nesses dois contextos, insistiram</p><p>na necessidade de reconceitualizar a ideia de mídia-educação</p><p>justamente em face dos novos desafios das mídias digitais e da</p><p>sociedade multitela.</p><p>Vitor Reia Batista,[4] refletindo sobre como as mídias hoje tornam-</p><p>se cada vez mais elemento de civilização e sobre como o homem deve</p><p>entrar em sintonia com isso, coloca o problema do desenvolvimento de</p><p>uma nova ecologia midiática como tarefa da educação. Educar para as</p><p>mídias significa educar para viver em liberdade e responsabilidade em</p><p>um novo meio ambiente. Isso significa, evidentemente, a necessidade de</p><p>pensar uma nova pedagogia.</p><p>Manoel Perez-Tornero[5] indica o limite de muitos programas de</p><p>mídia-educação e o fato de ocuparem-se preferencialmente de discursos</p><p>“nobres” (o cinema de autor, a televisão de qualidade): a iconosfera,</p><p>hoje, não é feita só de filme e ficção televisiva, mas também de jovens</p><p>dos bairros periféricos parisienses que filmam com o seu celular os</p><p>carros em chamas que incendiaram. O resultado deveria ser então a</p><p>inclusão da mídia-educação nos estudos culturais.</p><p>Uma perspectiva análoga é desenvolvida por Geneviève Jacquinot,</p><p>[6] que, citando Pasquier, indica a necessidade de agir além da mídia-</p><p>educação, considerando em primeiro plano a mídia-cultura, na qual e da</p><p>qual os jovens vivem. Assim, no interior de um espaço público com</p><p>contornos sempre mais fluidos, “as mídias deixam de ser das indústrias</p><p>mais ou menos alienantes para tornarem-se a verdadeira mídia-cultura”</p><p>(Pasquier 2005, p.115), ou seja, “um lugar em que se encontram</p><p>mundos mais ou menos marcados pela defesa e pelo abandono das</p><p>identidades” (Jacquinot 2006, p. 6).</p><p>David Buckingham[7] também parece sintonizado com o mesmo</p><p>comprimento de onda, na medida em que menciona a necessidade de</p><p>repensar o framework conceitual da mídia-educação em face das novas</p><p>mídias e das suas colocações no mundo digital. Isso não significa que o</p><p>“quadrado performático” sobre o qual a “velha” mídia-educação foi</p><p>construída (representação, linguagem, produção, audiência) seja</p><p>rejeitado; ao contrário, trata-se de partir daquela consciência e daquela</p><p>lição para adaptar novas estratégias e novos aparatos conceituais.</p><p>Por exemplo, as noções convencionais de narrativa e de gênero, que são</p><p>freqüentemente usadas na análise de filmes e da televisão, não se transportam</p><p>facilmente para a análise dos videogames, e a noção de audiência parece um pouco</p><p>estranhamente limitada “à velha maneira” de pensar aquilo que acontece quando se</p><p>joga videogame. (Buckingham 2006, p. 6)</p><p>Por isso, em síntese: acontece uma nova pedagogia (para o estudo</p><p>das mídias na sociedade multitela) e provavelmente ela indica a direção</p><p>de uma redefinição conceitual da mídia-educação no sentido da mídia-</p><p>cultura e dos estudos culturais.</p><p>Essa superação – essa passagem – pode expressar-se com as</p><p>categorias de Foucault (Martin; Gutman e Hutton 1992),</p><p>individualizando, nas fases que atualmente estamos atravessando, uma</p><p>fase de transição de um paradigma velho para um novo. O velho</p><p>paradigma era definido pelas tecnologias de produção e pelas</p><p>tecnologias de signos: a educação para as mídias consistia em fazer as</p><p>coisas com as mídias (tecnologia de produção) e na leitura crítica das</p><p>mídias (tecnologia de signos); o novo paradigma, ao contrário, parece-</p><p>me que deva ser definido pelas tecnologias de si.</p><p>São tecnologias de si, no sentido sugerido por Foucault, aquelas</p><p>técnicas – como o cuidado de si na filosofia grega ou a meditação na</p><p>tradição monástica – por meio das quais o eu adquire consciência e</p><p>controle. Sobre essas técnicas pode (deve) construir-se a educação para</p><p>a cidadania quando, como vimos, a cidadania se determina no interior</p><p>do novo meio ambiente midiatizado. Ela consiste na superação das</p><p>abordagens até agora utilizadas para tratar educativamente das</p><p>tecnologias: a abordagem funcionalista, hoje largamente difundida, que</p><p>tem o foco sobre o saber utilizar; a abordagem crítica, típica da mídia-</p><p>educação, que tem o foco sobre a construção da autonomia do sujeito</p><p>por meio da análise e da desconstrução. Educar para a nova cidadania</p><p>digital significa manter essa abordagem crítica, integrando-a em uma</p><p>nova abordagem culturalista (as mídias-culturas de Jacquinot) que</p><p>reconheça nas mídias uma relação estrutural com a dimensão política</p><p>(no sentido da polis). Em primeiro lugar porque a natureza das mídias</p><p>“implica uma luta pelo significado e controle: no planejamento, no</p><p>desenvolvimento, na distribuição e no uso” (Silverstone 2002, p. 226).</p><p>Em segundo lugar porque</p><p>(...) as mídias, como forças culturais, são analogamente elementos políticos: estão</p><p>sujeitos a conflitos sobre acesso e participação; estão sujeitos a conflitos sobre</p><p>direitos de propriedade e de representação; estão sempre influenciáveis pelas</p><p>consequências incertas e imprevistas de cada ato de comunicação. As mídias unem</p><p>e ao mesmo tempo separam, incluem e ao mesmo tempo excluem, fornecem</p><p>liberdade de expressão e reivindicam direitos de vigilância e controle, permitem e</p><p>impedem, criam novas desigualdades tanto quanto procuram eliminar as velhas.</p><p>(Idem, p. 227)</p><p>Essa estreita relação entre mídias, cidadania e educação já era bem</p><p>entendida em 1991 por Ferguson, sul-africano estudioso de mídia-</p><p>educação, quando sublinhava: “A mídia-educação é a incessante análise</p><p>do modo em que nós interpretamos o mundo e do modo em que os</p><p>outros interpretam o mundo por nós” (pp.19-24). Fundamentalmente</p><p>isso parece ser o sentido da verdadeira democracia – como observa</p><p>Jacquinot –, uma democracia que é ao mesmo tempo cognitiva e</p><p>política e que não consiste só em “colocar a tecnologia nas mãos dos</p><p>estudantes”.</p><p>Referências bibliográficas</p><p>AUMONT, Jacques (1995). L’Oeil interminable. Paris: Librairie Séguier.</p><p>BUCKINGHAM, David (2006). “La media education nell’era della tecnologia digitale”.</p><p>Paper apresentado no congresso “La sapienza del comunicare”, realizado em Roma.</p><p>DELEUZE, Gilles (1969). Différence et répetition. Paris: Presses Universitaires de France.</p><p>FERGUSON, Robert (1991). “What is media education?”. In: PRINSLOO, Jeanne e</p><p>CRITICOS, Costas. Media matters in South Africa. Durban: Media Resource, pp. 19-24.</p><p>FERRARIS, Maurizio (2005). Dove sei? Ontologia del telefonino. Milão: Bompiani.</p><p>GARDNER, Howard (1999). The disciplined mind. What all students should understand.</p><p>Nova York: Simon & Schuster.</p><p>JACQUINOT, Geneviève (2006). “Dall’educazione ai media alle ‘mediaculture’: Ci vogliono</p><p>sempre degli inventori!”. Paper apresentado no congresso “La sapienza del comunicare”,</p><p>realizado em Roma.</p><p>LEVY, Pierre (1997). Qu’est-ce que le virtuel?. Paris: La Découvèrte.</p><p>LONGO, Giuseppe (2001). Homo tecnologicus. Roma: Meltemi.</p><p>MARTIN, Luther H.; GUTMAN, Huck e HUTTON, Patrick H. (1992). Technologies of the</p><p>self: A seminar with Michel Foucault. Amherst: University of Massachussets Press.</p><p>MEYROWITZ, Joshua (1993). No sense of place. Nova York: Oxford University Press.</p><p>PASQUIER, Dominique (2005). Cultures lycéennes: La tirannie de la majorité. Paris:</p><p>Autrement.</p><p>PINTO, Manuel (2005). “A busca da comunicação na sociedade multi-ecrãs: Perspectiva</p><p>ecológica”, Comunicar, n. 25, pp. 259-264.</p><p>RIVOLTELLA, Pier C. (2003). Construtivismo e pragmatica della comunicazione on line.</p><p>Trento: Erickson.</p><p>SILVERSTONE, Roger (2002). Why study the media?. Londres: Sage Publications.</p><p>TURKLE, Sherry (1999). Life on the screen. Nova York: Simon & Schuster.</p><p>4</p><p>A QUESTÃO DO MÉTODO E A PESQUISA</p><p>SOBRE IMAGENS DE INFÂNCIA</p><p>Telma Anita Piacentini</p><p>O porquê da dialética como condutora do pensamento</p><p>Num tempo em que falar em “dialética” é insistir na busca de</p><p>espaço para colocar o pensamento crítico, o diálogo e a discussão, faz-</p><p>se necessária a presença de palavras provenientes, por</p><p>exemplo, do</p><p>coletivo e do social, do público, do erudito e do popular, mesmo numa</p><p>sociedade com tendências privatizantes.</p><p>Nessa relação entre o individual e o social, no compromisso</p><p>consigo mesmo e com os demais membros da sociedade, privilegiando</p><p>uma cultura da paz e da solidariedade, na busca de avanço do</p><p>pensamento científico, como mote ou palco específico do trabalho</p><p>acadêmico-universitário, é que centralizo minhas ideias metodológicas</p><p>de pesquisa.</p><p>Como necessidade, pois, para o movimento de resistência que o</p><p>desenvolvimento do pensamento científico impõe, passo às questões</p><p>particulares deste trabalho de pesquisa, que subsidia minhas atividades</p><p>como pesquisadora em educação.</p><p>Para compor as conduções metodológicas da pesquisa sobre</p><p>imagens da infância, parto da premissa daquilo que elaborou o antes da</p><p>pesquisa propriamente dita, porque se refere a uma condução dialética,</p><p>isto é, os conceitos que estruturaram uma forma de pensar e de analisar.</p><p>Esses encaminhamentos teóricos já haviam sido referenciados em</p><p>pesquisas anteriores.[1] Refiro-me aos condutores que se comportam</p><p>como fios internos inerentes à tarefa de coletar dados/informações,</p><p>agrupá-los e selecioná-los, interpretá-los e analisá-los, porque</p><p>enformam um procedimento de visualização e interpretação da</p><p>realidade, ou, dito de outro modo, tornam-se base ou pano de fundo do</p><p>processo investigativo.</p><p>É, pois, uma maneira de buscar o conhecimento seguindo uma</p><p>trajetória preocupada com estudos que questionam, de imediato, a lei do</p><p>movimento da “coisa em si”, na sua totalidade, a relação entre a</p><p>aparência e a essência, “o trânsito da universalidade à singularidade e</p><p>vice-versa, mediatizado pela particularidade” (Lukács 1965, p. 121),</p><p>enfim, a apreensão do movimento da “coisa em si”, na sua totalidade,</p><p>ou a mais ampla possível naquele momento.</p><p>Para tanto, é necessário lembrar, também, de relações como forma e</p><p>conteúdo, teoria e prática, erudito e popular, relações que a temática</p><p>comporta, pois é nesse movimento que os conteúdos se contemplam e</p><p>se completam.</p><p>É essa metodologia de pesquisa que permite não estabelecer</p><p>simplesmente um “sistema de interpretação”, mas realizar uma análise</p><p>comprometida com um esquema teórico-metodológico que possibilite</p><p>correções e aproximações mais concretizantes. Isso significa deixar em</p><p>aberto aspectos interpretativos, fechados, porém, no próprio universo de</p><p>análise, isto é, passíveis de enriquecimentos e correções no interior de</p><p>seu próprio contorno.</p><p>O método como desvio: A presença marcante de Walter Benjamin</p><p>na pesquisa sobre imagens de infância</p><p>Ao trabalhar o “método como desvio”, baseado em Walter</p><p>Benjamin, relido por Jeanne-Marie Gagnebin e Olgária Matos, que</p><p>insiste na dialetização do conceito, o método, na pesquisa, surgiu como</p><p>resultado de categorias dialéticas de seu conjunto. Comportou-se,</p><p>particularmente, como pausa metodológica e como passagem pelas</p><p>brincadeiras infantis de Franklin Cascaes,[2] um dos três fragmentos da</p><p>pesquisa que trataremos posteriormente.</p><p>O desvio foi utilizado para compor uma “mônada”, que pode ser</p><p>aqui arquitetada didaticamente: a mônada, em biologia, é “um</p><p>organismo simples, que se poderia tomar por unidade orgânica”; em</p><p>filosofia, “segundo Leibniz, substância simples, isto é, sem partes, que,</p><p>agregada a outras substâncias, constitui as coisas de que a natureza se</p><p>compõe” (dicionário Aurélio).</p><p>Quando Benjamin recorre à noção de mônada, ele o faz de dois</p><p>aspectos: “Num deles, leibniziano, a mônada é o espelho do mundo e a</p><p>expressão da ‘agoridade’, espécie de mens momentanea” (Matos 1989,</p><p>p. 61). Jeanne-Marie Gagnebin apresenta-a como imagem encerrada</p><p>sobre si mesma, “como mônadas sem janelas de Leibniz” (1994a, pp. 6-</p><p>11).</p><p>Na indicação de Olgária Matos: “No outro (aspecto), dialético, a</p><p>mônada é concentração e concentração de tensões. Porque é ‘agoridade’</p><p>tensa, a mônada é o elemento nuclear do salto histórico e do choque</p><p>revolucionário” (1989, p. 61).</p><p>Relacionando as informações da pesquisa – as brincadeiras</p><p>existentes na Ilha de Santa Catarina, nas esculturas de Cascaes – com os</p><p>conceitos de Gagnebin e Matos, foi possível elaborar uma concepção</p><p>que focaliza e expande no interior de seu movimento – isto é, a mônada</p><p>arquitetada em Franklin Cascaes – e, a partir daí, estabelecer relações de</p><p>reciprocidade entre si e entre outros brinquedos e brincadeiras. Enfim,</p><p>traçar uma rede de relações amplas e passíveis de serem visualizadas.</p><p>Ao atentar para esse conceito na pesquisa, aproximo-me do</p><p>pensamento de Walter Benjamin, fazendo-o como possibilidade de</p><p>construir os alicerces/referências possíveis para a construção do texto,</p><p>da análise, do olhar sobre as brincadeiras infantis. E, assim procedendo,</p><p>costuro os diferentes momentos/fragmentos trabalhados e apanho a</p><p>história inteira como algo que aconteceu e que está aqui, agora.</p><p>É um momento de pausa, na pesquisa, mas que se comporta</p><p>também como passagem, com o caráter de uma construção. Benjamin</p><p>caracteriza-a como jetztzeit, como “elemento primordial de uma nova</p><p>interpretação do passado, da tradição, como ‘construção’” (Matos 1989,</p><p>p. 32).</p><p>É desse modo que, articulando categorias dialéticas, construí a</p><p>imagem de mônada, que deu forma ao espaço que foi percorrido, o</p><p>universo de Franklin Cascaes. É que a mônada apanha “a história inteira</p><p>como ‘presente’. Tal qual a recordação (...) a mônada histórica</p><p>concentra o pensamento não naquilo que ‘ocorreu alguma vez’ e</p><p>desapareceu, partiu, mas em algo que ainda está aqui, agora” (ibidem).</p><p>Além do significado de construção, destaco o de tradição para</p><p>compor o projeto arquitetônico desse espaço monadológico:</p><p>A tradição é, para Benjamin, a dimensão na qual se aloja a “aura” do tempo. É a</p><p>consolidação da experiência coletiva, a sanção, a autoridade que garante o acesso</p><p>do indivíduo à dimensão de sua ancestralidade, tradição que pulsa em cada instante</p><p>do “agora”. A repetição em um sentido preciso garante a “recordação coletiva”,</p><p>substância mesma da tradição: recordação (Eingedenken) é a anamnese da</p><p>experiência coletiva na sua forma social. (Ibidem, p. 31)</p><p>Contextualizando Franklin Cascaes, geo-histórica e culturalmente,</p><p>estabelecendo relações de reciprocidade entre o local e o universal,</p><p>entre ilhas e metrópoles, desenvolvidas por meio da configuração do</p><p>herói-ilhéu, em “A modernidade, uma visão ísola/ilhada”, de 1994, pude</p><p>concluir, pela formação do imaginário luso-açoriano, negro e indígena</p><p>que as brincadeiras infantis contêm, por meio de um específico</p><p>itinerário de magia, configurado como uma “pedagogia da imagem”, o</p><p>caminho da construção dessas brincadeiras infantis, na Ilha de Santa</p><p>Catarina.</p><p>A “pedagogia da imagem”, entendida como a intenção de que a</p><p>imagem falasse por si mesma, apresentou diferentes etapas: a primeira</p><p>delas foi identificar a presença da criança na obra de Franklin Cascaes</p><p>que, entre esculturas e cerâmicas, “soma-se a umas seis mil peças”</p><p>(Cascaes 1981, p. 82). Tendo acesso a uma parcela considerável,</p><p>selecionei as esculturas das brincadeiras infantis,[3] considerando o</p><p>critério proximidade das imagens com o ato de brincar. Agrupei as</p><p>brincadeiras infantis e criança e trabalho e confeccionei o álbum-relato,</p><p>formando um acervo fotográfico da temática no Museu Universitário.</p><p>As esculturas fotografadas[4] passaram pela primeira etapa de</p><p>reprodução em cópia xérox, na busca de uma forma apropriada para que</p><p>a imagem se dissesse, sem indicação verbal ou escrita, enfim, buscando</p><p>uma pedagogia própria. A cópia da cópia xérox, momento subsequente</p><p>do processo de elaboração do material para o trabalho teórico, para ser</p><p>utilizado como original, apoiou-se, para comprovação de sua eficácia</p><p>científica, no texto de Benjamin “A obra de arte na era de sua</p><p>reprodutibilidade técnica”, de 1936, publicado em 1955. O resultado foi</p><p>o álbum-relato utilizado para o estudo das brincadeiras infantis na Ilha</p><p>de Santa Catarina, posteriormente usado na investigação da presença</p><p>das brincadeiras infantis no cotidiano das crianças, nas escolas de</p><p>Florianópolis.[5]</p><p>Devo destacar a artimanha</p><p>proposital com que, no procedimento</p><p>metodológico, em diferentes etapas – deslocamento da imagem de</p><p>origem (escultura) através da fotografia para a etapa final, xérox do</p><p>xérox e visualização sem interferência oral ou escrita –, foi usada a cor</p><p>para o destaque dos brinquedos e brincadeiras, mantendo intacta a obra</p><p>de Cascaes, apesar de retrabalhada para que falasse por si mesma.</p><p>Finalmente, aponto o salto específico de Franklin Cascaes e sua</p><p>ligação interna, fora do contexto científico, com Walter Benjamin. Ao</p><p>iniciar, a partir dos anos 40 do século XX, as esculturas em terracota</p><p>como reprodução das brincadeiras infantis de Santa Catarina, Cascaes</p><p>documentou os sonhos de uma época, de sua gente, registrando o que</p><p>temia que desaparecesse. E mesmo que não seja declarado, seu gesto</p><p>pode ser aproximado, por esta pesquisa, de um Walter Benjamin que,</p><p>em setembro daquele ano, em Port-Bou, na Catalunha, fronteira entre</p><p>Espanha e Portugal, morre fugindo das forças nazistas, deixando um</p><p>legado imprescindível para os estudos sobre brincadeiras infantis, ou</p><p>mais, sobre uma antropologia da infância.</p><p>Panofski: As ligações internas</p><p>A pesquisa refere-se a imagens de infância presentes em três</p><p>fragmentos: o primeiro estuda o putto, a partir do Renascimento</p><p>Italiano; o segundo, a boneca, desde o período paleolítico; e, por último,</p><p>as brincadeiras infantis na Ilha de Santa Catarina. A união desses</p><p>fragmentos está centrada no especificamente infantil, que é o brincar, e</p><p>destaco, ainda, que esses fragmentos anunciam um sentimento moderno</p><p>de infância.</p><p>Isso significa que não estou circunscrevendo esse sentimento às</p><p>idades de vida, nem a uma periodização fixada pelos ciclos da natureza</p><p>ou da organização social que sinteticamente se refere a infância,</p><p>juventude e velhice, nem à ideia de dependência, mas a uma</p><p>sensibilidade àquilo que corresponde à consciência da particularidade</p><p>infantil, presente nas obras de arte que reproduzem imagens de infância,</p><p>ou nos objetos que podem ser considerados especificamente infantis</p><p>como o brinquedo, e aqui selecionei a boneca, para estudar a história</p><p>social de um brinquedo e, ainda, as atividades próprias das crianças,</p><p>como as brincadeiras infantis.</p><p>Para acompanhar a imagem do putto como um amplo movimento</p><p>em favor da infância, que atravessa séculos como memória da</p><p>Antiguidade e permanece entre nós, nos museus, nas ruas, nos interiores</p><p>e nas pessoas, como joias ou camisetas, escrevendo uma história</p><p>peculiar, e da boneca, desde o paleolítico até se transformar em</p><p>brinquedo de criança, selecionei em Panofski (1978) o procedimento:</p><p>para analisar as ações e criações humanas, precisamos nos empenhar em</p><p>um processo mental de caráter sintético e subjetivo, que nos levará a</p><p>refazer as ações e recriar mentalmente as criações. Nesta chamada</p><p>investigação humanística, utilizo-me de dois momentos organicamente</p><p>incorporados: a recriação estética intuitiva e a pesquisa arqueológica,</p><p>que, interligadas, formam uma situação orgânica, em que os três níveis</p><p>– descrição pré-iconográfica, análise iconográfica e interpretação</p><p>iconológica – apresentam-se como um processo orgânico e indivisível.</p><p>O termo putti (no singular putto) designa os meninos alados e nus</p><p>que foram trazidos da Arte Antiga. Personificam várias espécies de</p><p>espíritos, tais como o espírito do amor – e, nesse caso, chamam-lhe de</p><p>cupido –, geralmente de maneira alegre e brincalhona. Aqui, estou</p><p>utilizando o termo no seu sentido amplo, por constatar que essas</p><p>imagens atravessaram séculos e se encontram ainda entre nós.</p><p>O putto é um retorno ao passado, o passado de uma imagem de</p><p>infância, um tempo marcado mais pela intensidade do que pela</p><p>cronologia, uma narrativa que se reconhece na rememoração, por meio</p><p>de uma prática metodológica como a prática de um colecionador:</p><p>percorre-se a coleta de informações, separação e exposição de</p><p>elementos, e encontram-se as imagens que reinventam o passado.</p><p>Identifiquei imagens no Renascimento Italiano, como memória da</p><p>Antiguidade, e pude comprovar que é Donatello quem primeiro vai</p><p>desenvolver um sentimento de infância presente na consciência</p><p>coletiva, como o gênio da escultura que foi. Mais tarde, tais imagens</p><p>estiveram presentes na obra de Mantegna e Tiziano, na pintura.</p><p>Tinha a informação de que as imagens se apresentam a meio</p><p>caminho entre o sagrado e o profano,[6] mas não era suficiente para</p><p>uma leitura de seu significado numa historiografia da infância;</p><p>estabeleci critérios que tornassem possível uma leitura de imagens de</p><p>outras épocas, outra cultura. Foram criadas “convenções</p><p>representativas” selecionadas em Michael Baxandall (1991) e Pierre</p><p>Francastel (1993), porque possibilitam uma aproximação de</p><p>experiências extraídas de ambientes outros, capazes de visualizar</p><p>representações ainda que com informações não completas, porém</p><p>momentâneas, próximas da temática.</p><p>O olho que “bate” na imagem como uma lente fotográfica pode</p><p>fazer a leitura com variações do olhar de uma outra época, entendendo</p><p>que, se a “mecânica” do olhar é a mesma nos diferentes tempos, “cada</p><p>um (...) reproduz as informações transmitidas pelo olho servindo-se de</p><p>instrumentos diferentes” (Baxandall 1991, p. 38).</p><p>Mesmo reconhecendo que possíveis interpretações estão ligadas a</p><p>culturas de experiências extraídas de outros ambientes, capazes de</p><p>visualizar representações ainda que com informações incompletas,</p><p>como via de abordagem teórico-metodológica, foi garantido um</p><p>momento rico na busca de dados.</p><p>Entre as “convenções” suscetíveis de favorecer a leitura das</p><p>imagens infantis que pesquisei, está o reconhecimento de que nossa</p><p>cultura é mais próxima do Quattrocento estudado e, por isso, podemos</p><p>entender mais facilmente parte do patrimônio: estamos mais próximos</p><p>da mentalidade da época.</p><p>O transporte da bagagem cultural de uma época para outra está</p><p>alicerçado nos contornos da literatura, da dança, das liturgias sacras e</p><p>profanas, do teatro, enfim, do mundo intelectual do século XV, da época</p><p>estudada.</p><p>Mas é necessário acrescentar o alerta sobre as representações que os</p><p>artistas davam aos personagens; esses personagens não eram</p><p>estabelecidos com base em modelos reais, mas com base em modelos</p><p>derivados da experiência de pessoas reais.</p><p>O destaque a essa referência deve-se à preocupação quanto à</p><p>visualização da imagem infantil em Donatello, primeiro, e nos demais</p><p>artistas, como Mantegna e Tiziano e outros, constatando que as figuras</p><p>não representavam apenas modelos vivos, prática iniciada naquela</p><p>época, portanto, crianças da época, mas a experiência das crianças</p><p>daquela época. E a leitura da imagem ultrapassa o limite do linear,</p><p>superada pelo esforço pedagógico desse direcionamento, advindo dessa</p><p>“convenção representativa”.</p><p>É significativa a percepção de Marcel Reymond (1916, pp. 35-36),</p><p>para uma historiografia da infância baseada em imagens infantis:</p><p>Donatello quis anunciar, na observação da criança, essa luminosa inteligência que</p><p>brilha na menor de suas obras. A ideia essencial que nos passa é a de que a criança</p><p>é um ser que se movimenta e que cria. Lá onde tantos outros não veem mais que</p><p>uma bela boneca rósea sempre graciosa e risonha, Donatello observa a vida</p><p>nascente, a atividade de um organismo jovem, o barulho e a ação. Como elas</p><p>correm, como elas saltam nesta longa farândula que se desenrola no Púlpito de</p><p>Prato e na Cantoria de Florença; como elas cantam bem as músicas de Pádua;</p><p>como elas têm medo em Siena; como elas choram nas Pietà; como elas são</p><p>atrevidas ou tímidas nas cornijas de Santa Croce! Que mundo turbulento e que</p><p>variedade! O segredo do gênio de Donatello está na intensidade de suas</p><p>observações, de sua fidelidade à natureza e no acordo íntimo entre a obra e o</p><p>pensamento. Colocar crianças numa cornija? Ele pensa também nos diferentes</p><p>sentimentos que fará nascer essa situação anormal: nuns, o medo; noutros, o</p><p>atrevimento, e, no lugar de uma obra banal, nós temos uma obra que tem todo o</p><p>encanto da vida.</p><p>Outra “convenção”: se a pintura daquele período estava</p><p>comprometida com o universo cultural da época, de uma maneira</p><p>bastante forte, talvez até determinante, a escultura possuía uma margem</p><p>de liberdade maior.</p><p>Existia uma diferença entre o pintor e o escultor no Renascimento.</p><p>O pintor estava exposto a uma relação mais direta com o cliente e os</p><p>estudos apontam um cidadão, o prior de uma confraria ou de um</p><p>mosteiro, um príncipe ou o mandatário de um príncipe ou rei. Isso quer</p><p>dizer que ele normalmente trabalhava para alguém, que teve a iniciativa</p><p>da obra, escolheu o artista, possuía a ideia do resultado e acompanhava</p><p>a obra até o fim. Já o escultor era diferente: geralmente, trabalhava para</p><p>organizações comunitárias. Donatello, por exemplo, pertencia à</p><p>Confraria da Lã, que administrava os trabalhos da Catedral de Florença.</p><p>Pode-se aferir, por isso, que Donatello pôde aliar seu gênio criador</p><p>ao espírito da época, dando à imagem da criança – putto – uma</p><p>configuração que ultrapassou o universo intelectual em que vivia,</p><p>mesmo que condicionado por ele.</p><p>Outra “convenção representativa” é observar o homem do</p><p>Renascimento. E, com base nessa observação, traçar um quadro da vida</p><p>cotidiana da época; o resultado é a possibilidade de conciliar os dois</p><p>olhares na visualização da imagem infantil. Um “traço” para esse</p><p>quadro é a explicitação do estilo cognitivo da época: esmera-se em</p><p>encontrar o talento do artista, sabe julgar essa habilidade e expressar</p><p>verbalmente esse julgamento.</p><p>Se esse tipo humano representa uma parcela restrita, em</p><p>contrapartida é uma parcela significativa da população. Era a que dava</p><p>direções, a responsável pela concepção de mundo da época, era o</p><p>público culto:</p><p>tratava de negócios, freqüentava a igreja, levava uma vida social; através de todas</p><p>essas atividades, adquiria capacidades relevantes à observação de uma pintura (...),</p><p>e aquilo que o pintor visava satisfazer era o maior denominador comum das</p><p>capacidades de seu público (Baxandall 1991, pp. 41-42).</p><p>Sabia matemática, dominava as regras de três, sabia medir, para</p><p>usar nos negócios e nos jogos e adivinhações, para abordar</p><p>“experiências visuais”, frequentava liturgias sociais e o teatro, as danças</p><p>e os torneios, conhecia a literatura: estes são os “traços” marcantes de</p><p>um retrato em branco e preto do homem do século XV.</p><p>Esse retrato serviria para uma aproximação com o imaginário do</p><p>mundo infantil? Poderia remeter à ideia de como seria a infância desse</p><p>homem? Serviria para expressar o cotidiano infantil, seus gestos, suas</p><p>brincadeiras, suas histórias e seus segredos? Não, não seria suficiente.</p><p>Precisei somar, então, uma outra direção para completar as</p><p>“convenções representativas” com outros paradigmas relevantes</p><p>comprometidos com os “modos de ligação intelectual de uma época,</p><p>isto é, das estruturas psicológicas particulares nos homens de um tempo</p><p>determinado” (Francastel 1993, p. 295).</p><p>Não que as “convenções” apresentadas como arcabouço de uma</p><p>bagagem cultural que leve para a viagem da leitura das imagens infantis</p><p>não contemplem uma abordagem psicológica. Mas selecionei outras que</p><p>considerei auxiliares sensíveis à composição do quadro psicológico da</p><p>época, num claro acréscimo da contribuição da bagagem do “olho” de</p><p>minha época.</p><p>Chegam até nós esclarecimentos sobre as funções da imagem no</p><p>Quattrocento. Nas pinturas religiosas, as imagens tinham a função de</p><p>instruir as pessoas mais simples, de agir sobre a memória e de suscitar</p><p>sentimentos de devoção. Se os pintores deveriam transmitir uma</p><p>expectativa de contar uma história de maneira clara e de fácil</p><p>memorização para os simples, o uso de recursos emocionais era muito</p><p>frequente.</p><p>Ora, o pintor e especialmente o escultor, pelas características já</p><p>apontadas, introduziam na história que deveria ser contada elementos da</p><p>história cotidiana, atingindo as dimensões profanas que ultrapassam os</p><p>limites da arte religiosa. Essa atitude pode ser confirmada em</p><p>declarações como “foram cenas populares de rua que serviram de</p><p>modelo à pintura religiosa do Quattrocento”; as festas populares, com</p><p>seu material alegórico e as “máquinas” (talvez os primórdios dos carros</p><p>alegóricos de nosso carnaval), desempenharam um papel nunca visto na</p><p>vida social.</p><p>Acrescenta-se o dado de que os artistas eram fiéis ao que viam: “a</p><p>cultura do Quattrocento é uma cultura vivida, não uma cultura de</p><p>gabinete”; as manifestações culturais são, pois, linguagens “simultâneas</p><p>de um mesmo estado de espírito” (Francastel 1993, pp. 226-228).</p><p>No interior desse “estado de espírito” pode ser encontrada uma</p><p>outra “convenção representativa” que, mesmo estando por trás do visto</p><p>ou do não visto, se expressa de uma forma visível: a dimensão que</p><p>atingiu o gesto, no século XV.</p><p>Se “os olhos são a janela da alma”, máxima aceita como verdade</p><p>eterna ou como senso comum, a arte do gesto representava mais que um</p><p>movimento externo, o próprio movimento da alma; a representação da</p><p>dor, da alegria, do medo, do desejo (as afeições, nos movimentos da</p><p>alma) e os movimentos do corpo (crescer, sofrer, sarar, mover-se de um</p><p>lugar para outro), mostrados como movimentos do espírito por meio das</p><p>várias partes do corpo.</p><p>Existe um arcabouço teórico riquíssimo, desde Leonardo da Vinci,</p><p>que sugeria observar os oradores e os mudos para o desenho dos gestos,</p><p>como também o Espelho do mundo, edição inglesa de 1520, que traduz</p><p>os principais gestos tradicionais e os catálogos de sinais usados pelos</p><p>beneditinos nos períodos de silêncio, preciosas informações que a arte</p><p>nos dá, para uma investigação científica desta temática.</p><p>Como essas “convenções representativas” podem ensinar o olhar</p><p>que vê a partir da imagem? No embate com elas, as imagens infantis</p><p>ultrapassam os limites não só da diferença entre o sagrado e o profano,</p><p>no que se refere ao gesto, como também ao próprio significado do gesto</p><p>para a época.</p><p>Trata-se de que as imagens estudadas representam a criança, tanto</p><p>no cenário religioso como no profano, manifestando sua universalidade,</p><p>por meio do gesto infantil do brincar que, no próprio ato de brincar,</p><p>ultrapassa a si mesmo, como nos ensina Walter Benjamim.</p><p>Trata-se de uma criança, apesar da retórica da época que apresenta</p><p>a infância mediada entre o sagrado e o profano. Num contexto em que a</p><p>temática infantil propriamente dita é ambivalente, em que a infância</p><p>ainda não é efetivamente autônoma e, ao mesmo tempo, carrega a</p><p>ambiguidade do humano, os artistas insistiram na sua identidade e</p><p>personalizaram-na de forma segura. Há uma diferença entre o mundo</p><p>infantil e o mundo adulto, mesmo que a criança seja representada no</p><p>interior da vida adulta.</p><p>Os pintores, notadamente Mantegna e Tiziano, seguiram os passos</p><p>de Donatello, mas, se as “convenções representativas” permitem</p><p>visualizar o contexto, não nos definem, de imediato, o mundo infantil.</p><p>Ainda se pode atestar, na leitura das imagens infantis, que,</p><p>principalmente o escultor Donatello, como repórter de sua época e</p><p>visionário de um mundo novo, de um tempo novo, superou os limites</p><p>que a manifestação cultural e artística lhe impunha e se antecipou, por</p><p>meio de uma linguagem que nos possibilita uma leitura solta, imediata e</p><p>significativa de suas representações de infância.</p><p>Essas “convenções” possibilitam aproximar ou afastar o olhar,</p><p>dependendo das exigências ou das solicitações nossas diante das</p><p>imagens.</p><p>O uso de um recurso de nosso tempo extraído do cinema, a</p><p>“montagem”, permite localizar, selecionar, identificar e registrar um</p><p>sentimento de infância que se expressa por meio de imagens infantis,</p><p>ainda que de modo fragmentário e seguindo caminhos labirínticos. Pode</p><p>ser uma orientação “artística” do olhar, somada a uma preocupação</p><p>“científica”.</p><p>Explicando o conjunto do texto ou o texto no contexto</p><p>Para o estudo do putto e o da boneca de como imagens de infância</p><p>percorrendo os três níveis de Panofski, as imagens significativas</p><p>tiveram um estudo específico, ao passarem por um tratamento de</p><p>escaneamento, como as demais imagens, mas, pela peculiaridade do</p><p>assunto, sofreram diferenças em respeito à relação forma e conteúdo e</p><p>teoria e prática.</p><p>Para se ter uma ideia geral da pesquisa e de como Panofski foi</p><p>trabalhado,</p><p>ao todo foram 298 imagens – 109 de crianças putti no texto</p><p>e 32 nos anexos; 80 de bonecas e mais 3 nos anexos; 68 de brincadeiras</p><p>infantis, 32 de Franklin Cascaes e mais 6 no anexo específico. Para a</p><p>situação atual, fiz um levantamento fotográfico em diferentes espaços</p><p>geoculturais, abrangendo metrópoles e ilhas: na Europa – Itália / França</p><p>/ Alemanha / Portugal / Áustria / República Tcheca (ainda</p><p>Tchecoslováquia); no Canadá – Quebec / Toronto / Montreal / Güelf /</p><p>Ottawa; nos Estados Unidos da América – Nova York; no México –</p><p>Cidade do México / Taxco / Cuernavaca; e, no Brasil – Ilha de Santa</p><p>Catarina e uma imagem da Ilha de São Francisco do Sul.</p><p>O fragmento boneca, como expressão de uma trajetória que se</p><p>insere na história de um brinquedo, baseia-se na hipótese de que é a</p><p>passagem do ídolo ao brinquedo infantil que forma as bases para traçar</p><p>a genealogia da boneca, uma vez que essa passagem não cancelou o</p><p>significado contido no objeto, pois a boneca tornou-se para a criança o</p><p>que o ídolo foi para quem o criou: o espelho de uma invisível realidade.</p><p>A antropologia e os arqueólogos deram os dados desde o paleolítico.</p><p>Mas como os dados de Gicca Palla estavam cercados de excelentes</p><p>interpretações psicanalíticas, tive o cuidado de traçar um caminho</p><p>próprio através de um roteiro arqueológico, uma passagem pela</p><p>iconografia criada para a especificidade do assunto, isto é, levantamento</p><p>fotográfico em diferentes espaços geoculturais e, entre esses momentos,</p><p>uma parada semântica, pesquisada na literatura disponível.</p><p>Duas importantes contribuições do século XX para a história da</p><p>boneca: se essa história registra as modificações que ocorreram em toda</p><p>a sociedade, pode-se aferir que é no momento em que os estudos dão</p><p>conta do aparecimento da reprodução simbólica, permeada pela</p><p>recuperação da essência lúdica do brincar, com panos enrolados,</p><p>madeira ou diferentes objetos, que as crianças das classes pobres</p><p>reinventam seus espaços, dão asas à imaginação e se aproximam de</p><p>todas as crianças, por meio do sonho ou da admiração a distância, como</p><p>fez Cosette, magistralmente narrado por Victor Hugo em Os miseráveis,</p><p>mas sempre definindo novas situações.</p><p>O princípio educativo, agora, difere dos precedentes: não somente o</p><p>aprendizado do existente para cumprir um papel na sociedade, mas a</p><p>criação de “mundos imaginários” indefinidos e incontroláveis. Pela</p><p>história da boneca pode-se concluir que sua evolução é resultado de</p><p>transformações que ocorreram também na concepção de infância, em</p><p>diferentes sociedades.</p><p>Quanto às brincadeiras infantis, foram parcialmente tratadas na sua</p><p>especificidade na referência ao método como desvio, na ligação Walter</p><p>Benjamin e Franklin Cascaes, porém, é necessário fazer uma nova</p><p>pausa.</p><p>Pontes foram construídas, na ligação entre os diferentes</p><p>dados/objetos de pesquisa; a reciprocidade entre as diferentes partes</p><p>exigiu a criação de “passagens” – que as atravessam e as interligam.</p><p>Acompanhando os sinais de infância, as passagens formam “labirintos”,</p><p>caminhos possíveis de recuperação do passado para construir o</p><p>presente, demarcados pelo significado de infância com a particularidade</p><p>de um sentimento que expressa a graça, a beleza e a diferença do mundo</p><p>infantil.</p><p>Mas se é o brincar o gesto que ultrapassa o próprio limiar, e o</p><p>referencial benjaminiano que circunscreve a ideia da infância situada na</p><p>fronteira da geração natural, da biografia e da época histórica, são as</p><p>“passagens labirínticas” que demonstram que são as crianças que</p><p>rompem limites e conquistam espaços próprios.</p><p>É como contar uma história de infância utilizando-se de uma</p><p>narrativa que se reconhece na rememoração, na retomada da imagem no</p><p>passado para, assim, assegurar uma travessia que desemboca nos nossos</p><p>tempos.</p><p>São “passagens labirínticas”: nem linhas retas e simples (passagens</p><p>que, em Benjamin, são parisienses e protagonistas de possíveis viagens</p><p>surpreendentes) nem simplesmente labirinto – volta sem saída sobre si</p><p>mesmo. Referem-se a um “tempo qualitativo”, em que nos colocamos</p><p>numa atitude de espera, de uma espera em ação.</p><p>O “movimento da coisa em si” sintetizado: os contornos de</p><p>passagens labirínticas que trago podem ser delineados por meio da</p><p>observação cuidadosa do passado e do reconhecimento do sentimento</p><p>de infância que permanece. Mas é o sentimento de infância que é</p><p>trazido para o cenário; com esse gesto, cria-se uma tensão – e é a de</p><p>uma espera em ação, que se reconhece nas imagens dialéticas (aqui,</p><p>imagens de infância), que cresce como mônada que sabe de seu passado</p><p>aurático (aqui, a criança) e que percorre labirinticamente ruas de</p><p>contramão diante do reconhecido pelo jogo infantil (aqui, a brincadeira)</p><p>– jogo que transcende a linearidade do visto e permitido (a linha</p><p>geométrica racionalista) e, por ser assim, tem bifurcação: qual janela</p><p>podemos abrir para o infinito? A que não pode transcender ainda e</p><p>espera em ação – mônada tensa – ou outra que, cheia de esperança</p><p>(princípio – esperança), pode construir uma aura inteiramente nova,</p><p>talvez apontar para uma outra sociedade?</p><p>Enfim, as passagens no labirinto das imagens de infância estão</p><p>delineadas pelo traçado: uma introdução geral; uma passagem primeira</p><p>pelas imagens de crianças putti; uma segunda passagem pela história</p><p>social de um brinquedo: a boneca; a passagem de dois para três; as</p><p>brincadeiras infantis da Ilha de Santa Catarina; e o retorno no labirinto.</p><p>Pude concluir que os brinquedos e as imagens de infância</p><p>permanecem na vida das crianças, dos homens e das mulheres desde</p><p>tempos remotos. Localizei em diferentes espaços culturais uma imagem</p><p>de infância que atravessa séculos e permanece entre nós, mantendo uma</p><p>aura própria, apesar de tempos que dessacralizam essa imagem, mas não</p><p>destroem a aura da infância como um mundo próprio, criado pela</p><p>criança no limiar do sonho, do despertar e da sua realidade.</p><p>É que a criança, brincando no seu limiar, anula fronteiras,</p><p>ultrapassa limites, cria uma maneira própria de estabelecer relações</p><p>móveis entre seu mundo, um pequeno mundo no interior de um grande</p><p>mundo. Impregnada do que nós adultos consideramos magia e fantasia,</p><p>anula a diferença entre as coisas inanimadas e o mundo dos seres vivos.</p><p>Se tiver que comprovar resultados, posso afirmar que os estudos,</p><p>pela sua especificidade, demonstram que é o brincar, por meio do</p><p>brinquedo e das brincadeiras, que articula mais fortemente os diferentes</p><p>componentes do mundo da infância, e, ao proceder dessa forma, atesta a</p><p>existência de um mesmo sentimento em metrópoles e ilhas. E o faz</p><p>como sinais que, indiscutivelmente, não se apagaram, mas que estão</p><p>presentes no imaginário de todos nós, de nosso tempo, no chamado</p><p>imaginário do homem contemporâneo, reencantando o mundo.</p><p>Além da comprovação científica de que o imaginário da Ilha de</p><p>Santa Catarina é formado por um mosaico luso-açoriano, negro e</p><p>indígena explicitado nas brincadeiras infantis trazidas até nós por</p><p>Franklin Cascaes, presentes em outros tempos/imagens de Bruegel e de</p><p>outros artistas, a crítica de arte de Ferreira Gullar reforçou o que os</p><p>fragmentos de imagens de infância demonstraram na pesquisa, em</p><p>1995: a aura da infância na obra de arte continua, através dos tempos e</p><p>nos diferentes tipos de organização social, analisada por meio de</p><p>imagens. Diz Gullar (2004): “a aura que envolvia a obra de arte, em vez</p><p>de apagar-se, aumentou”. E conclui: “parece lógico admitir que, ao</p><p>contrário do que pensava Benjamin, envolver os objetos em aura é uma</p><p>necessidade do ser humano”.</p><p>Finalmente, a pesquisa também apontou para o traçado de caminhos</p><p>pedagógicos com identidades culturais. Num tempo de globalização, a</p><p>pedagogia requer o reconhecimento de diferenças étnicas, na</p><p>composição do imaginário cultural. Mais ainda, a pesquisa apontou para</p><p>a constatação de diferentes tempos (interno e externo) no mundo do</p><p>imaginário que o brinquedo traduz, na relação da criança com o brincar,</p><p>expressos aqui por meio de imagens de infância na arte universal e na</p><p>arte popular.</p><p>Referências bibliográficas</p><p>ARIÉS, Philippe (1981). História social</p><p>da criança e da família. 2ª ed. Rio de Janeiro:</p><p>Guanabara.</p><p>ARIÉS, Philippe e MARGOLIN, Jean-Claude (1982). Les jeux à la Renaissance. Paris:</p><p>Libraire Philosophique J.Vrin.</p><p>BAKHTIN, Mikhail (1987). 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O corpo, que em geral é compreendido como a</p><p>parte que se estende do pescoço para baixo, é considerado assunto</p><p>exclusivo da educação física. Por que, em regra, o indivíduo – o sujeito-</p><p>corpo – não é tratado em sua totalidade nas diversas outras áreas</p><p>educacionais? Afinal, é esse mesmo sujeito-corpo que constrói a</p><p>ciência, a política e a cultura, que aprende artes, matemática, história. É</p><p>esse mesmo sujeito-corpo que aprende a movimentar-se e, ao mesmo</p><p>tempo, conhece seus sentidos, emoções, desejos e limites.</p><p>Um fenômeno, porém, observado nas últimas décadas, vem</p><p>contrapondo-se a esse papel preponderante da escola. Os chamados</p><p>“meios de comunicação de massa” adquirem espaço destacado no</p><p>processo de interação social, notadamente por serem os principais</p><p>difusores de informações e de imagens em nossos dias. Em outras</p><p>palavras, as noções sobre o corpo presentes nos livros didáticos de</p><p>biologia, nas aulas de educação física, e principalmente o</p><p>disciplinamento escolar que incide sobre os corpos veem-se</p><p>aparentemente confrontados pela influência de toda sorte de</p><p>“patricinhas” e “bambans” produzidos e “turbinados” em série.</p><p>Em aparente oposição à noção expressa nos padrões educacionais</p><p>vigentes, emerge da cultura midiática contemporânea um modelo de</p><p>corpo em evidência. No entanto, outra constatação pode ser ainda mais</p><p>inquietante: de certa forma, a mídia também vê o corpo somente “do</p><p>pescoço para baixo”. Ao supervalorizar o formato, substitui-se o</p><p>conteúdo por uma retórica de exaltação de habilidades artísticas e</p><p>valores pessoais em um processo que se concretiza pela apresentação da</p><p>imagem.</p><p>Refletindo acerca desse “culto ao corpo”, observa-se que o</p><p>paradoxo se desconfigura pelo fato de serem ambos os conceitos</p><p>inerentes ao pensamento moderno. A desconstrução crítica da</p><p>hegemonia dessa forma de pensar, tendo como ponto de partida a</p><p>comparação entre as concepções teóricas que regem o corpo na escola e</p><p>na mídia, é um dos pressupostos da presente análise. Embora o “corpo</p><p>disciplinado” aparentemente se oponha ao “corpo espetacularizado”, ao</p><p>cotejar os fundamentos filosóficos de uma e de outra observamos tratar-</p><p>se de duas vertentes da mesma concepção. Essa hipótese baseia-se na</p><p>constatação de que, por trás de tanta ginástica, musculação, dietas para</p><p>todos os gostos e cirurgias estéticas cada vez mais especializadas,</p><p>esconde-se sutilmente o corpo sem expressão, dominado pela técnica e</p><p>pelo cálculo contra o risco de vida. O culto ao corpo, fomentado pela</p><p>mídia e presente</p><p>no processo de interação social da criança,</p><p>fundamentar-se-ia nos mesmos pressupostos da concepção que</p><p>caracteriza as práticas escolares vigentes.</p><p>Essas observações nos instigaram a buscar evidências sobre como</p><p>se dá esse processo de interação social, levando-nos à elaboração de</p><p>uma questão de pesquisa: quais são as representações e expressões</p><p>corporais de crianças construídas pela sua relação com a escola e a</p><p>mídia?[1] Pretendemos indicar algumas respostas ao analisar o</p><p>processo, considerando que a escola e a mídia são faces de uma mesma</p><p>moeda na configuração da corporeidade infantil. Exploramos ainda um</p><p>contraponto significativo: a arte pode constituir-se como um espaço de</p><p>deformação dessas imagens, permitindo que as crianças desenhem</p><p>outras corporeidades como parte de sua própria cultura. Ao colocarmos</p><p>as crianças como protagonistas, esperamos contribuir para retirá-las da</p><p>margem das pesquisas em ciências humanas e sociais, valorizando os</p><p>registros de sua passagem pela história. Essa atitude teria como</p><p>consequência a problematização da hegemonia do ponto de vista</p><p>adultocêntrico sobre as realidades sociais.</p><p>Um dos grandes desafios colocados para a pesquisa com crianças é</p><p>dar-lhes condições de participação como sujeitos ativos da investigação.</p><p>O problema é enfrentado por alguns no plano das diferenças entre</p><p>criança e pesquisador, assumindo-as com o fim de desvelar o mundo</p><p>com base em seus próprios olhares (Kosminsky 1998). Assim, o melhor</p><p>exercício para entrar no mundo das crianças seria conviver com elas e</p><p>aos poucos ir se educando para enxergá-lo de seu ponto de vista. Como</p><p>disse Fernandes (1979) em seu estudo clássico sobre a cultura infantil,</p><p>“As trocinhas do Bom Retiro”, através de um tempo prolongado de</p><p>observação e contato com as crianças, o pesquisador tende a adquirir</p><p>maior afinidade e domínio sobre a análise da realidade de um campo</p><p>social ao qual já pertenceu. Acreditamos que, para compartilhar e</p><p>compreender a natureza do que observa e analisa, o pesquisador precisa</p><p>sobretudo colocar a sua própria imaginação em confronto com a de seus</p><p>sujeitos.</p><p>O corpo como mito</p><p>“Eu queria tanto ser a Sandy...” – esse foi o comentário de um dos</p><p>sujeitos da pesquisa, uma menina de oito anos, sobre seu trabalho de</p><p>artes visuais. A obra traz a figura de uma menina usando roupas,</p><p>bijuterias e outros traços semelhantes à cantora pop-romântica infantil.</p><p>A simples observação do trabalho não deixa dúvidas de que sua autora é</p><p>fã da personagem, pois a representação está inundada de elementos</p><p>significativos e convincentes. Analisando a entrevista, a obra e mesmo o</p><p>comportamento da criança, poderíamos apostar que o trabalho</p><p>representava sua própria autora metamorfoseada em Sandy. O que</p><p>surpreendeu na pesquisa de campo é que este não se tratava de um caso</p><p>isolado, mas da regra. A maioria dos trabalhos sobre “figura humana” e</p><p>“autorretratos” lembrava mais os ícones da telinha do que as próprias</p><p>crianças.</p><p>Segundo trabalhos publicados pelo Núcleo de Pesquisa em Mídia</p><p>(Televisão e Infância) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul</p><p>(UFRGS), a receptividade infantil da mídia, em especial da televisão,</p><p>pode ser compreendida considerando-se sua capacidade de fabricar</p><p>narrativas mitológicas, por meio das quais as crianças conseguem</p><p>responder a algumas de suas tantas interrogações. Os mitos integram o</p><p>universo simbólico mais amplo de que as culturas dispõem para a</p><p>socialização e a formação de suas jovens gerações. Nas sociedades</p><p>contemporâneas, os mitos eletrônicos se destacam na rede simbólica,</p><p>em comparação, por exemplo, com brinquedos, histórias infantis e</p><p>músicas.</p><p>Tendo-se dedicado ao estudo desse fenômeno, Lévi-Strauss (1970)</p><p>concluiu que, ao contrário de tempos anteriores, nas sociedades</p><p>modernas, caracterizadas pela consolidação do sentimento de</p><p>individualismo, o mito deixou de ter o sentido coletivo, passando a se</p><p>localizar no indivíduo. Transformar-se-iam em mitos os indivíduos que</p><p>se destacassem na sociedade, por sua beleza, carisma ou função social,</p><p>como encarnação de seus ideais. Do ponto de vista antropológico, são</p><p>personagens que atravessam a linha do cotidiano, indo além de sua</p><p>cultura. Segundo essa tese, protagonistas da mídia, entre eles</p><p>personagens de histórias em quadrinhos e desenhos animados, seriam</p><p>tão adorados e reverenciados quanto deuses imortais. Os mitos</p><p>modernos, porém, continuariam representando o mesmo papel que os</p><p>antigos na formação da subjetividade de adultos e de crianças. Os novos</p><p>heróis “fazem parte, simultaneamente, da vida comum e de um mundo</p><p>distante. É esse duplo caráter que garante sua eficácia enquanto mitos,</p><p>pois despertam no indivíduo um processo de projeção-identificação,</p><p>tornando-se modelos de vida” (Meurer 1999, p. 3).</p><p>Destaque importante também merece a abordagem semiológica de</p><p>Roland Barthes (1993), compatriota de Lévi-Strauss e autor de</p><p>Mitologias. A obra, “um esboço sincrônico dos mitos contemporâneos”</p><p>– nas palavras do próprio Barthes –, interpreta fenômenos da sociedade</p><p>francesa de meados do século passado, como, por exemplo, “o mundo</p><p>do catch, saponáceos e detergentes, brinquedos, cozinha ornamental e o</p><p>striptease”, e elabora, em sua segunda etapa, uma sofisticada teoria dos</p><p>mitos.</p><p>Do ponto de vista semiológico, o mito é um tipo especial de</p><p>mensagem, melhor dizendo, um discurso definido pelo modo como é</p><p>proferido. O mito é definido pela forma, não pelo conteúdo nem pela</p><p>matéria-prima – linguagem-objeto – que lhe dão suporte no processo de</p><p>comunicação. Nesse sentido, qualquer ideia, conceito ou objeto pode vir</p><p>a se tornar um mito, desde que dotado de significação. Do mesmo</p><p>modo, a palavra oral, a escrita, o esquema, o desenho, a fotografia, o</p><p>cinema, a reportagem, o esporte, os espetáculos ou ainda a publicidade</p><p>podem constituir matéria-prima da fala mitológica. Todos esses suportes</p><p>se reduzem ao estatuto da linguagem, por mais diferentes que sejam.</p><p>Para o autor, apesar de se apresentar tridimensionalmente, como a</p><p>língua, o mito é um sistema comunicacional derivado de uma cadeia</p><p>que já existe antes dele. “O que é signo (...) no primeiro sistema,</p><p>transforma-se em simples significante no segundo” (Barthes 1993, p.</p><p>136). A natureza linguística própria do mito se caracteriza pelo fato de</p><p>que o significante já é constituído pelos signos da linguagem – escrita</p><p>ou visual. Em distinção à linguagem-objeto, denominou-se de</p><p>metalinguagem o esquema composto pela tríade “forma” (significante),</p><p>“conceito” (significado) e “significação” (signo), termos</p><p>correspondentes da primeira e da segunda cadeia.</p><p>Como, no mito, as formas são motivadas pelo conceito que</p><p>representam, sem contudo atingirem a representação completa desse</p><p>conceito, a decifração do mito revelará uma história ao mesmo tempo</p><p>verdadeira e irreal. “(...) O que se investe no conceito é menos o real do</p><p>que um certo conhecimento do real. (...) De fato, o saber contido no</p><p>conceito mítico é um saber confuso, constituído por associações moles,</p><p>ilimitadas” (Barthes 1993, p. 141). Enfim, os conceitos míticos são</p><p>essencialmente efêmeros, alteram-se, constroem-se e desfazem-se ao</p><p>sabor da história. Considerado como sistema semiológico, o mito se</p><p>realiza, portanto, como modo de significação, isto é, como forma num</p><p>dado contexto histórico-social, o campo privilegiado das significações</p><p>míticas. Nas palavras de Barthes (idem, p. 132), “(...) é a história que</p><p>transforma o real em discurso, (...) visto que o mito é uma fala escolhida</p><p>pela história: não poderia de modo algum surgir da ‘natureza’ das</p><p>coisas”.</p><p>O terceiro termo da tríade, denominado “significação”, é o único</p><p>pleno e efetivamente consumido, pois resulta da relação entre a forma e</p><p>o conceito. Um elemento da significação que merece destaque é a</p><p>motivação, pois dá ao mito aquela aparência natural, tão cara à sua</p><p>perpetuação. Ao contrário do esquema comunicacional linguístico</p><p>calcado na arbitrariedade do signo, o sistema semiológico mítico opera</p><p>a significação envolvendo-a por certa motivação, contendo</p><p>irremediavelmente uma parte de analogia entre o sentido</p><p>a corporeidade</p><p>infantil, discutindo as representações e expressões construídas pelas</p><p>crianças e sugerindo que o espaço da arte possibilite desenhar outras</p><p>corporeidades.</p><p>Se pensar a infância de hoje nos remete a pensar a juventude de</p><p>amanhã, Maria Luiza Belloni traz indicadores importantes para esse</p><p>empreendimento no Capítulo 6, “Os jovens e a internet:</p><p>Representações, usos e apropriações”. Analisando dados de uma</p><p>pesquisa internacional e também em uma capital brasileira, a autora nos</p><p>oferece um panorama de como os jovens incorporam a internet no</p><p>cotidiano em diferentes contextos socioculturais, destacando não apenas</p><p>as representações, os usos e as apropriações que eles fazem da rede de</p><p>computadores, como também o lugar e o papel da escola nesse cenário.</p><p>Os três últimos capítulos procuram pensar aspectos da produção</p><p>cultural infantil e da participação das crianças no contexto escolar.</p><p>O texto “Ciranda de sentidos: Crianças, consumo cultural e</p><p>mediações”, de Maria Isabel Orofino, no Capítulo 7, faz um</p><p>mapeamento das contribuições dos estudos de mídia e comunicação à</p><p>compreensão da vida cultural das crianças de hoje. Tomando por base,</p><p>principalmente, os Estudos Culturais, a autora lembra que o consumo</p><p>cultural precisa ser pensado com base na diversidade dos contextos</p><p>socioculturais, e delineia uma pedagogia dos meios a ser realizada na</p><p>escola, envolvendo produção e recepção crítica.</p><p>No Capítulo 8, “Produção cultural infantil diante da tela: Da TV à</p><p>internet”, Gilka Girardello discute o quanto a brincadeira narrativa das</p><p>crianças pequenas diante dos computadores segue algumas das mesmas</p><p>regras de interatividade e fantasia que regem toda brincadeira infantil. O</p><p>texto recupera conclusões das pesquisas de recepção de televisão com</p><p>crianças, investigando o que muda e o que permanece quando</p><p>comparamos o ver TV com a relação com os computadores,</p><p>principalmente do ponto de vista da produção imaginária infantil.</p><p>Começamos o livro com uma Estação Memória e o terminamos</p><p>com a ideia de uma escola que seja também uma Estação Cultura, no</p><p>texto de Monica Fantin. “Do mito de Sísifo ao voo de Pégaso: As</p><p>crianças, a formação de professores e a Escola Estação Cultura”</p><p>problematiza o papel da mídia na relação entre infância, cultura e</p><p>escola. A autora discute algumas possibilidades da mídia-educação na</p><p>formação de crianças e professores, no contexto de uma Escola Estação</p><p>Cultura, sugerindo algumas figuras mítico-poéticas que possam inspirar</p><p>nosso fazer educativo.</p><p>Esperamos que o diálogo com as reflexões que este livro traz possa</p><p>instigar a abertura de novas trilhas e a construção de outras trajetórias</p><p>que nos aproximem de uma vida cultural mais rica e significativa para</p><p>as crianças de hoje e de amanhã.</p><p>Monica Fantin</p><p>Gilka Girardello</p><p>1</p><p>ESTAÇÃO MEMÓRIA: NOVOS CAMINHOS DA</p><p>MEDIAÇÃO E DA APROPRIAÇÃO</p><p>CULTURAL[*]</p><p>Edmir Perrotti</p><p>Coordeno um programa de pesquisas, na Escola de Comunicações e</p><p>Artes (ECA) da Universidade de São Paulo (USP), que estuda as</p><p>relações entre a informação e a educação no mundo contemporâneo, em</p><p>particular no Brasil. No quadro de tais trabalhos, nossa equipe se ocupa</p><p>de diferentes questões inscritas na problemática da apropriação da</p><p>informação, em especial aquelas relativas aos dispositivos</p><p>informacionais e às aprendizagens socioculturais.</p><p>Tais questões foram por nós agrupadas em um campo científico e</p><p>epistemológico que designamos “infoeducação” e que deu origem ao</p><p>Centro de Pesquisas em Infoeducação, da ECA-USP. Ali, tratamos de</p><p>modo sistemático e permanente tanto das novas questões culturais e</p><p>educacionais colocadas pela emergência das chamadas “sociedades da</p><p>informação” ou “do conhecimento”, como das tradicionais, redefinidas</p><p>no contexto atual da globalização.</p><p>Nesse sentido, como projeto científico, interessa-nos, de um lado,</p><p>compreender uma problemática e, de outro, atuar sobre ela, construindo</p><p>referências teóricas e metodológicas, capazes de dar sustentação a ações</p><p>educativas e socioculturais de nossa época.</p><p>Nossas questões de pesquisa são, em decorrência, vastas e variadas;</p><p>por outro lado, são pesquisas “emergentes”, situadas na intersecção de</p><p>diferentes ciências, em particular as da informação, da comunicação e</p><p>da educação, bem como de diferentes saberes e fazeres teóricos e</p><p>práticos. Interessa-nos, assim, uma gama múltipla de questões</p><p>relacionadas aos processos de produção, distribuição e recepção das</p><p>informações, em suas diferentes modalidades. Nesse sentido, vários</p><p>estudos sobre a apropriação da escrita na sociedade brasileira já foram</p><p>por nós realizados, assim como outros a respeito dos dispositivos</p><p>institucionais, tecnológicos e cognitivos necessários ao acesso e à</p><p>apropriação de informações nas sociedades atuais.</p><p>Essa diversidade de perspectivas e objetos próprios à infoeducação</p><p>exige a constituição de equipes multifacetadas, que atuam segundo</p><p>premissas da “pesquisa colaborativa” e que consistem na articulação de</p><p>pesquisadores provenientes de diferentes formações acadêmicas, com</p><p>profissionais do “terreno”. Nossas investigações, assim, tanto</p><p>apresentam uma dimensão interdisciplinar, como injetam nesta uma</p><p>outra categoria: a dos intersaberes e dos interfazeres. Desse modo, ainda</p><p>que preservado em seus aspectos específicos e singulares, o</p><p>conhecimento científico ilumina outras modalidades de conhecimento –</p><p>e é iluminado por elas –, passando a ser visto não como saber superior</p><p>aos demais, mas como modo distinto de olhar e nomear a realidade.</p><p>Os distintos pontos de vista implicados na metodologia</p><p>colaborativa possuem, no entanto, um ponto de convergência comum: a</p><p>problemática de apropriação simbólica, em suas dimensões</p><p>socioculturais, tomada como objeto teórico do nosso programa de</p><p>pesquisas. Da mesma forma, tal convergência se dá em torno de objetos</p><p>empíricos precisos, ou seja, de dispositivos educativo-culturais voltados</p><p>à participação cultural afirmativa, nas chamadas “sociedades do</p><p>conhecimento”. Por outro lado, há, também, um objetivo comum que</p><p>liga todos os projetos: o desenvolvimento de recursos de diferentes</p><p>ordens que estimulem o “protagonismo cultural” na sociedade</p><p>brasileira.</p><p>Fica bem evidente nessa formulação que nossa hipótese básica</p><p>considera a existência de um intrincado e dinâmico quadro de</p><p>mediações de todo tipo e natureza, atuando nas relações dos sujeitos</p><p>com a cultura. Com base nesse princípio, essas relações não são jamais</p><p>imediatas, naturais, espontâneas; elas são construídas no cotidiano, por</p><p>meio de práticas e interações efetivas entre sujeitos e significados. Por</p><p>outro lado, se as características e as composições particulares e</p><p>específicas dos sujeitos e dos próprios objetos culturais desempenham</p><p>um papel estruturante em nossas relações com a cultura, uma terceira</p><p>categoria desempenha um papel de tipo idêntico: os dispositivos</p><p>socioculturais, com suas configurações, suas linguagens, seus</p><p>instrumentos, suas concepções, seus modos de ação e de articulação,</p><p>suas histórias, seus objetivos e suas práticas. Como dizia Robert</p><p>Escarpit (1975) a propósito da promoção da leitura, o leitor erudito não</p><p>está jamais isolado – ele é sustentado por um circuito, um tecido de</p><p>objetos e de relações socioculturais de que em geral o leitor de massa</p><p>não dispõe. Diante disso, se o acesso à informação é condição</p><p>necessária, ele não é condição suficiente para sua apropriação, para sua</p><p>transformação em conhecimento e ferramenta efetiva de ação. A</p><p>apropriação das informações é, sem dúvida alguma, produzida no</p><p>interior de quadros que exigem vontade, interesse e ação dos</p><p>indivíduos; ao mesmo tempo, porém, tal processo exige domínio de</p><p>meios intelectuais e socioculturais complexos, envolvendo,</p><p>especialmente em nossa época, além das ferramentas especiais que lhe</p><p>são próprias, ações educacionais e culturais orgânicas e sistemáticas,</p><p>compatíveis com tal complexidade. Mais que uma operação que se</p><p>esgota na dimensão individual, apropriar-se da informação é, portanto,</p><p>uma negociação mobilizadora de forças provenientes tanto de</p><p>dimensões pessoais irredutíveis, como do jogo histórico-cultural</p><p>e a forma. O</p><p>mito tem forte caráter ambíguo, pois “(...) todo o sistema semiológico é</p><p>um sistema de valores; ora, o consumidor do mito considera a</p><p>significação como um sistema de fatos: o mito é lido como um sistema</p><p>fatual, quando é apenas um sistema semiológico” (idem, p. 152).</p><p>A relação entre a concepção moderna de corpo e o conceito de mito</p><p>nos instiga ao aprofundamento da análise da primeira, considerando-se</p><p>o seu processo de construção social, forjado, entre outros agentes, pela</p><p>escola e pela mídia. Curioso notar que o mito é uma linguagem que</p><p>transforma a cultura em natureza, enquanto o corpo, que possui como</p><p>realidade uma dimensão biológica determinante, oferece uma zona de</p><p>desenvolvimento conveniente para a fala mítica, transformando-se</p><p>assim em um mito forte, capaz de orientar uma visão política</p><p>abrangente.</p><p>Na civilização moderna, o corpo foi mitificado, em primeiro nível,</p><p>por sua natureza animal, e à escola coube a missão de seu</p><p>disciplinamento. Desprezou-se, no processo, a influência cultural sobre</p><p>a dimensão corporal. Entretanto, paradoxalmente se observa que o culto</p><p>ao corpo, fenômeno surgido no final do século XX, também é uma</p><p>modalidade de disciplinamento corporal, exercida pela mídia. Esta, em</p><p>virtude de seu formato,[2] torna a ideia de culto transparente para o</p><p>receptor de suas mensagens, criando um mito de segundo nível.</p><p>O que cabe ressaltar neste trabalho é que, no processo atual de</p><p>“educação do corpo”, observamos nitidamente o papel preponderante</p><p>dos chamados meios de comunicação de massa, que adquirem,</p><p>momento a momento, espaço destacado no processo de interação social,</p><p>notadamente por serem os principais difusores de imagens. Observa-se</p><p>claramente a valorização suprema do formato – moldado, sarado e</p><p>padronizado – em detrimento do conteúdo, que é substituído pela</p><p>retórica de exaltação de habilidades artísticas e valores pessoais. Em</p><p>outras palavras, o fútil e o vazio dominam a cena, em um processo que</p><p>se concretiza, basicamente, pela apresentação da imagem, seja na ilha</p><p>paradisíaca da revista, seja na profusão de traseiros nus sacudidos, ou</p><p>no layout equalizado da fisionomia das âncoras do noticiário noturno.</p><p>A crítica à concepção moderna recai especialmente sobre a forte</p><p>tendência à naturalização e à universalização da dimensão corporal. Em</p><p>nossa análise, o corpo humano é, pelo contrário, plástico e educável.</p><p>Assim, a concepção que norteia o trabalho é a de um corpo desenhado</p><p>tanto por fatores biológicos quanto por fatores sociais, históricos e</p><p>culturais. O corpo, analisado em relação a seu enquadramento no tempo</p><p>e no espaço, revela uma expressão que retrata uma cultura e ao mesmo</p><p>tempo a produz.</p><p>Um encontro com a infância: “Respostas” de crianças e cultura</p><p>corporal</p><p>Ao mesmo tempo em que assumimos uma posição crítica diante da</p><p>qualidade da oferta que a cultura coloca para as crianças nas mídias, é</p><p>preciso também, do ponto de vista teórico, avançar em direção à</p><p>complexidade do processo comunicacional que acontece. Por isso,</p><p>visando consolidar uma perspectiva crítica de pesquisa, perguntamo-nos</p><p>que ideias de corpo as crianças gerariam e produziriam com base</p><p>naquilo que a mídia coloca para elas.</p><p>Os denominados “estudos culturais” se situam nessa tendência.</p><p>Pesquisadores como Martín-Barbero (1998; 2004) e Buckingham</p><p>(2000a; 2000b) dedicam-se a estudar o fenômeno da comunicação</p><p>inserido no processo cultural mais abrangente. Para Martín-Barbero</p><p>(1998), o importante é a comunicação como produção de sentido,</p><p>comunicação como cultura. O espaço privilegiado de reelaboração do</p><p>que acontece na mídia é o espaço da cultura, incluindo-se a própria</p><p>escola, mas também a família etc. Esses estudos estão interessados</p><p>naquilo que as pessoas fazem com as mídias e não se restringem apenas</p><p>ao ponto de vista de análise daquilo que as mídias fazem com as</p><p>pessoas. Muitas pesquisas recentes, por conseguinte, dedicam-se ao</p><p>estudo das “respostas” dos sujeitos à comunicação, considerando-se a</p><p>complexidade do fenômeno, como é o caso de Tobin (2000) e</p><p>Girardello e Orofino (2002). Esses estudos buscam conhecer as</p><p>condições e possibilidades de as crianças ressignificarem o que recebem</p><p>da mídia, enfocando, portanto, a produção que acontece no plano da</p><p>recepção.</p><p>Nesse sentido, a nossa pesquisa desenvolveu-se por meio de um</p><p>trabalho de campo, ao longo de sete meses. A imagem e a expressão</p><p>corporal infantil foram monitoradas por acompanhamento sistemático</p><p>do comportamento de crianças entre sete e nove anos – sujeitos centrais</p><p>da pesquisa – em ambiente escolar: uma “Escola-Parque”,[3] localizada</p><p>em Brasília (DF). O sítio da pesquisa, ressalte-se, não é uma escola</p><p>comum, embora faça parte do sistema público de educação. Trata-se de</p><p>uma instituição da rede que compõe o currículo fundamental, por meio</p><p>do ensino da arte – artes visuais, música, teatro e dança – e da educação</p><p>física. Essa característica peculiar oportunizou o uso privilegiado da</p><p>expressão artística, por meio do desenho, da pintura, do recorte e da</p><p>colagem, do jogo dramático, da música, da dança e das brincadeiras, no</p><p>processo de pesquisa com crianças. As atividades de ensino da Escola-</p><p>Parque foram, portanto, aproveitadas para a investigação. Sempre que</p><p>possível, integramos as diversas modalidades e, por consequência, as</p><p>várias linguagens. Complementamos o trabalho de campo com</p><p>observação, entrevistas[4] e um questionário dirigido aos pais dos</p><p>alunos (os aos responsáveis por eles) da escola.</p><p>Um exemplo da peculiaridade de Brasília, a Escola-Parque</p><p>apresenta, além das especificidades curriculares, outras características</p><p>importantes para a contextualização de nossos dados. A unidade</p><p>pesquisada abriga crianças de diferentes classes sociais, pois, além de</p><p>atender, conforme o proposto no planejamento da cidade, os residentes</p><p>nas quadras circunvizinhas, recebe também filhos de empregados e</p><p>empregadas que trabalham no Plano Piloto[5] e deslocam-se das</p><p>cidades-satélites para lá desenvolver seus estudos. Além disso, vários</p><p>alunos residem em orfanatos e abrigos de menores localizados no Plano</p><p>Piloto. Podemos constatar a diferença entre as crianças pesquisadas</p><p>pelos vários dados obtidos por meio do questionário aos responsáveis.</p><p>Entre os dados socioeconômicos, destacamos, por exemplo, a “renda</p><p>familiar bruta”. Os resultados obtidos indicam que 6,6% dos</p><p>participantes recebiam até um salário mínimo, 19,7% recebiam entre</p><p>dois e três salários mínimos e, nas faixas entre quatro e quinze salários</p><p>mínimos, observou-se uma recorrência entre 13 e 15% das respostas, o</p><p>que denota uma heterogeneidade do grupo pesquisado. Outros dados</p><p>reforçam essa característica, como os referentes a grau de escolaridade,</p><p>profissão, situação no mercado de trabalho, modalidade e tipo de</p><p>residência.</p><p>A experiência de convívio com as crianças na Escola-Parque,</p><p>especialmente com as matriculadas no 2° e no 3° ano do ensino</p><p>fundamental, constituiu, como assinalado anteriormente, a essência de</p><p>nosso método de pesquisa. O corpo a corpo com as crianças</p><p>participantes da pesquisa se deu por meio de uma multiplicidade de</p><p>técnicas de produção de dados, conforme acima mencionado. Entre</p><p>essas técnicas destacaram-se sobretudo os desenhos de figura humana.</p><p>Além de terem marcado a entrada em campo – pois se evidenciou nos</p><p>corredores da escola, nos primeiros dias de observação, uma coleção de</p><p>figuras humanas –, esses desenhos possibilitaram que nosso objeto – as</p><p>representações e expressões corporais infantis – se tornasse um</p><p>fenômeno concretamente pesquisável.</p><p>A figura humana: Quando o corpo se desenha</p><p>O desenho pode ser visto como uma gestualidade infantil? A ideia</p><p>da linguagem corporal como elemento fundamental do desenho é</p><p>evocada por meio das características peculiares dos primeiros desenhos</p><p>infantis: “Na criança, o desenho é antes de mais nada motor; a</p><p>observação de uma criança pequena desenhando mostra bem que o</p><p>corpo inteiro funciona e que a criança sente prazer nesta gesticulação”</p><p>(Mèredieu 1997, p. 6).</p><p>A maior parte dos estudiosos do desenho infantil afirma que os</p><p>primeiros</p><p>desenhos de uma criança provavelmente se circunscrevem no</p><p>âmbito de sua experiência motora: “Expressão de um ritmo biopsíquico</p><p>próprio de cada indivíduo, o rabisco aparece com a aprendizagem do</p><p>andar e do sentido do equilíbrio. Seu estudo articula-se em torno de uma</p><p>análise psicomotora do gesto gráfico, que depende de apreensão do</p><p>gesto corporal” (Mèredieu 1997, p. 25). A criança rabisca e aos poucos</p><p>se surpreende com os traços e as marcas como extensão de seu</p><p>movimento.</p><p>O traço, por sua vez, configura-se como uma inesgotável fonte de</p><p>alegria, um verdadeiro fascínio para as crianças que persistem em riscar</p><p>o papel com o lápis, o vidro com o dedo, a areia com o pauzinho.</p><p>Ressalte-se que as primeiras experiências com o desenho podem ser</p><p>localizadas antes ainda, quando o bebê mistura os alimentos com o</p><p>dedo. A partir de então, aos poucos, as crianças percebem que seu</p><p>movimento está deflagrando os resultados gráficos da superfície.</p><p>Logo o prazer cinestésico de movimentar os ombros e os braços</p><p>forçando uma ponta sobre uma superfície resulta na descoberta, por</p><p>parte da criança, de formas produzidas por ela própria. O momento</p><p>determinante “é aquele em que a criança reconhece entre a marca e o</p><p>gesto uma relação causal e começa a longa aprendizagem que</p><p>paralelamente ao desenvolvimento motor a conduzirá a disciplinar seu</p><p>gesto” (Widlöcher 1971, p. 34).</p><p>A experiência da forma e dos contornos parece constituir uma</p><p>necessidade também em relação aos objetos. Assim, compreendemos o</p><p>ato recorrente de “serrar” ou de martelar tudo em volta, muito comum</p><p>entre as crianças pequenas. No desenho, a criança igualmente repete os</p><p>movimentos testando a força e a direção dos traços sobre o suporte. “O</p><p>corpo inteiro da criança desenha, concentrado na pontinha do lápis, que</p><p>lhe abre a possibilidade da experiência da conquista das formas”</p><p>(Derdyk 1990, p. 104). Surgem, então, formas longitudinais e circulares,</p><p>indicando maior controle do movimento.</p><p>O desenho da figura humana, uma chave para compreender o</p><p>grafismo infantil, já foi amplamente analisado. Entretanto, concorrem</p><p>para essa discussão diferentes enfoques. Uma perspectiva importante é</p><p>aquela que situa a figura humana como uma ruptura do processo gráfico</p><p>infantil, pois representaria a primeira forma que indicaria para a criança</p><p>a possibilidade do desenho como figuração. Segundo essa visão, uma</p><p>das primeiras associações feitas pela criança entre imagem e realidade</p><p>seria a da forma circular com a forma da figura humana. Concordam</p><p>com essa análise, entre outros autores, Lowenfeld e Brittain (1970),</p><p>Winner (1982) e também Mèredieu (1997, p. 37), que afirma: “com o</p><p>desenho do boneco a criança passa do traço, simples índice de uma ação</p><p>que ele prolonga e cuja persistência assegura, para o signo que supõe ao</p><p>mesmo tempo distinção e aproximação entre um significado e um</p><p>significante”. Com essa descoberta se instalaria o “começo do fim” do</p><p>rabisco, continua a mesma autora: “assim que descobre a possibilidade</p><p>de representar o real por meio de signos, a criança contenta-se</p><p>geralmente em desenhar objetos e não recorre com freqüência à</p><p>abstração. Seus desenhos narram, procuram transmitir uma mensagem”</p><p>(idem, p. 38).</p><p>Esse processo encontra eco em nossa cultura, na qual, durante</p><p>muito tempo, a arte foi predominantemente figurativa, influenciando a</p><p>atitude de pais e educadores. O desenho, portanto, que fora uma</p><p>descoberta do bebê, transforma-se numa brincadeira prazerosa e depois</p><p>em um foco de socialização. Tal situação se configura especialmente na</p><p>cultura escolar, onde ainda prevaleceria, como padrão do desenho</p><p>didatizado, o valor plástico do realismo visual e do desenho em</p><p>perspectiva, a partir do olhar de um ponto de vista único. Essa</p><p>necessidade culturalmente produzida no adulto de enxergar figuras nos</p><p>desenhos das crianças denota ainda a ideia de que a figuração seria</p><p>“sinônimo de maturidade intelectual e de habilidade motora”. Em</p><p>contrapartida, Derdyck (1990, p. 141) observa que “desenhos não</p><p>figurados também podem indicar grau elevado de desenvolvimento</p><p>infantil, pois existem desenhos de crianças de dois, três e quatro anos</p><p>com estruturas geométricas e abstratas elaboradíssimas”.</p><p>O rabisco tende certamente a desaparecer da produção infantil. (...) Fica assim</p><p>ignorado e rejeitado o valor gestual e dinâmico desse tipo de grafismo que a arte</p><p>contemporânea tende a reencontrar. Essa desgestualização é um eco daquela</p><p>rejeição do corpo praticada pelo Ocidente. Como encenação do corpo que se</p><p>exprime e se solta no gesto, o rabisco possui um valor dinâmico. (Mèredieu 1997,</p><p>p. 39)</p><p>De acordo com algumas teorias, o desenho da figura humana</p><p>representa, como vimos anteriormente, uma espécie de apoteose do</p><p>grafismo. Outras, contudo, aquelas que consideram que a imagem da</p><p>figura humana é consubstanciada por meio da linguagem corporal desde</p><p>os primeiros traços feitos pela criança, defendem que o desenho da</p><p>figura humana, mais do que um ponto de passagem entre o desenho</p><p>gestual e o desenho figurativo, configura-se como um resíduo do gesto</p><p>que produz o primeiro rabisco e se perpetua ao longo de toda a</p><p>atividade gráfica infantil. Isso provavelmente ajuda a esclarecer o fato</p><p>de que todas as crianças desenham figuras humanas – é raro depararmos</p><p>com um desenho onde elas não estejam presentes. Nem sempre</p><p>reconhecíveis aos olhos dos adultos, “os humanos aparecem sob várias</p><p>formas: (...) a menina-flor, o homem-baleia, o homem-foguete, o</p><p>menino-sol, a mulher-voadora, a casa que olha, o rio que anda, o gato</p><p>que ri, a nuvem brincalhona...” (Derdyk 1990, p. 119). Vale enfatizar</p><p>que a figura humana, se vista como elemento permanente, produziria</p><p>não uma segmentação, mas uma continuidade no processo do grafismo</p><p>infantil. Ressaltamos por fim que o desenho, destacadamente uma</p><p>manifestação típica da infância,[6] é um ato estritamente humano. O seu</p><p>produto, portanto, surge como efeito da integração da ação – prática que</p><p>torna visível a ideia – e do pensamento – a imaginação.[7] Nesse</p><p>sentido, o desenho da figura humana, a modalidade que se destacou em</p><p>nossa pesquisa, pode ser visto como aquele em que o próprio corpo se</p><p>desenha.</p><p>Meninos e meninas: Corpos, gestualidades e imagens</p><p>evidenciadas</p><p>Selecionamos para esta publicação parte dos resultados obtidos na</p><p>pesquisa de campo, neste caso aqueles observados por meio dos</p><p>desenhos das figuras humanas feitos pelas crianças. Trata-se de uma</p><p>modalidade de desenho privilegiada em nossa investigação. Solicitou-se</p><p>aos alunos que desenhassem figuras humanas ou autorretratos, por meio</p><p>de técnicas e uso de suportes variados. Foi coletado um total de 614</p><p>desenhos, sendo que sua análise permitiu a sistematização de uma</p><p>tipologia de figuras encontradas: a menina-mulher, a loira imaginária, a</p><p>engraçadinha, a magrela, o homenzinho, o fortão, o bad boy, o skatista</p><p>e o herói virtual. Descrevemos e analisamos a seguir uma parcela dos</p><p>dados suficientemente representativa, a nosso ver, para demonstrar, no</p><p>espaço deste texto, a conclusão geral obtida, expressa na figura da</p><p>“criança lúdica”, um tipo comum ao espectro de configurações de</p><p>corpos infantis.</p><p>Instigou-nos, na análise dos dados levantados em campo, a</p><p>presença marcante da figura humana de cabelos loiros, olhos azuis e</p><p>pele clara, na coleção de desenhos e autorretratos das crianças,</p><p>especialmente das meninas, mesmo quando o modelo não</p><p>correspondesse a esse padrão. Muitas meninas morenas desenharam-se</p><p>loiras, de pele e olhos claros. Ou então mantiveram a pele morena em</p><p>contraste com o cabelo loiro artificial. Podemos afirmar que a</p><p>quantidade de crianças loiras que frequentam a escola é muito pequena,</p><p>desproporcional em relação ao número das figuras humanas desenhadas</p><p>como tal. Notamos, sobretudo, durante as entrevistas, uma naturalização</p><p>do ato e uma certa falta de pudor em apresentar um autorretrato</p><p>absolutamente incoerente com o modelo do autor, mas de acordo com o</p><p>padrão difundido na mídia. Neste caso não se trata de conceitos</p><p>subjetivos da personalidade, mas de dados físicos corporais, visíveis a</p><p>olho nu, como</p><p>a cor do cabelo, dos olhos e da pele. Questionadas, as</p><p>crianças não se cansam em repetir: “Porque eu gosto de cabelo loiro”;</p><p>“Olhos azuis porque eu quis”; “Olhos azuis e loira, eu gosto, eu acho</p><p>bonito”.</p><p>Como hipótese explicativa, poderíamos acreditar que as meninas</p><p>consideram bonita a figura loira, sem que isso signifique que elas</p><p>próprias desejem ser assim. No entanto, algumas alunas não</p><p>esconderam que esse desejo existe e pode interferir na própria</p><p>consciência corporal: “Porque eu queria ter cabelo loiro”; “Eu prefiro</p><p>usar lentes de contato verde do que óculos”; “Porque meu olho é</p><p>castanho, mas parece com azul”.</p><p>O depoimento de outra aluna, relatando o seu desenho de uma</p><p>boneca loira e de olhos bem azuis, denota dois aspectos que podem</p><p>explicar essa preferência: “Cabelo loiro porque mais me chama a</p><p>atenção. É difícil a gente ver uma adolescente loira, a gente vê mais</p><p>uma adulta. Na rua, quando a gente olha, o que me chama a atenção é o</p><p>cabelo loiro”. Por um lado, a mulher loira destacar-se-ia na multidão por</p><p>ser uma exceção no contexto da população brasileira. Por outro, torna-</p><p>se objeto de desejo como efeito de um processo de dominação cultural</p><p>que se verificou a partir da segunda metade do século XX, e que se</p><p>acentuou no Brasil a partir da chamada “Era Xuxa”.</p><p>Outro aspecto que se destacou em nossa pesquisa de campo é a</p><p>constatação de que o top parece ser o traje preferido das meninas. A</p><p>miniblusa colada ao corpo, que deixa a barriga à mostra, é geralmente</p><p>acompanhada de short, minissaia ou calça comprida justa. Adereços,</p><p>tamanquinhos de salto e batom completam o figurino. Essa hipótese</p><p>confirmou-se nos autorretratos e também na atividade em que as</p><p>crianças vestiram o desenho de um boneco com retalhos de tecido.</p><p>Também ali essa foi a roupa preferida. Uma das meninas radicalizou o</p><p>modelo e se vestiu com o paninho da Feiticeira, outra com o shortinho</p><p>do Tchan, grupo musical em que Carla Perez – mais uma loira, esta</p><p>oxigenada – consagrou-se como dançarina, e outra ainda desenhou um</p><p>piercing no umbigo aparente. A engraçadinha também usa, na visão das</p><p>meninas pesquisadas, vestido tomara que caia curto e sapato de salto.</p><p>Essa moda é adotada aparentemente de maneira muito natural pelas</p><p>crianças. Tanto que se tem a falsa impressão de que o corpo infantil</p><p>estaria isento das consequências do processo de construção das imagens</p><p>de beleza da mulher, que tem levado a um desnudamento progressivo do</p><p>corpo feminino, colocando em xeque de certa forma “a garantia do que</p><p>culturalmente foi colado à imagem da mulher: a retidão do seu</p><p>comportamento, a pureza da sua alma e a beleza de seu corpo”</p><p>(Goellner 2001, p. 51). A grande oferta de produtos infantis ligados a</p><p>personagens de imagem erotizada, como a Feiticeira e Carla Perez, pode</p><p>fazer acreditar que esses modelos, quando aplicados à infância,</p><p>perderiam seu valor socialmente negativo. Uma explicação para esse</p><p>fenômeno se encontra facilmente nas teorias de mercado, pois “o</p><p>fascínio que essas personagens exercem sobre o público infantil é</p><p>manifesto na fabricação e na venda de produtos para crianças inspirados</p><p>nelas: a máscara e o chicotinho da Tiazinha, botinhas e shortinhos da</p><p>Carla Perez, tamanquinho da Sheila” (Martins 2003, p. 3). Mas outra</p><p>hipótese considera a procura de uma certa legitimação para esses</p><p>modelos perante a sociedade, pois, “se até as crianças usam, por que</p><p>não os adultos também?”. Assim, as crianças podem tornar-se vorazes</p><p>consumidoras de bugigangas da indústria da moda, como brinquedos,</p><p>roupas, músicas e danças. São produtos que trazem a imagem da mulher</p><p>coisificada, sugerindo uma erotização vulgar e precoce. Quando</p><p>produtos erotizados penetram o universo infantil sem um filtro, de certa</p><p>forma se processa a aceleração da mudança da condição de menina-</p><p>criança para a de menina-mulher. Novas imagens de meninas são</p><p>visíveis nas roupas insinuantes, no sapato alto, na maquiagem, nas</p><p>músicas, nas danças-cópula, na linguagem e em outras manifestações da</p><p>cultura dita pós-moderna (Silva 2000).</p><p>Essa cultura parece se movimentar ciclicamente em torno do</p><p>conceito de mercado de corpos. Se, por um lado, o desejo comum de ser</p><p>top leva ao consumo desenfreado de práticas corporais cada vez mais</p><p>sofisticadas e agressivas, como implante de silicone, cirurgias plásticas,</p><p>lifting, lipoaspiração, por outro, torna a própria mulher um objeto de</p><p>consumo, por meio da exposição de seu corpo em diversos níveis de</p><p>nudez e por diversas mídias, como TV, outdoors etc. De acordo com</p><p>essa lógica, se hoje o objeto de desejo em alta no mercado é o corpo da</p><p>jovem, não nos surpreenderemos se a necessidade desenfreada de novos</p><p>produtos de consumo logo transformar aquela menina engraçadinha,</p><p>“infantilmente” vestida de top e minissaia, no protótipo da menina-</p><p>objeto, que poderíamos imaginar como o próximo ícone da cultura</p><p>burguesa do corpo.</p><p>As imagens femininas da loira imaginária e da engraçadinha</p><p>afirmaram-se em outra imagem evidenciada entre os meninos. A</p><p>elevada estatura e a musculatura avantajada seriam, em nossa cultura</p><p>corporal contemporânea, invocações e atributos masculinos do novo</p><p>homem, correspondente à mulher erotizada. Nesse sentido, destacamos</p><p>a imagem do “fortão”, expressão usada pelos próprios alunos</p><p>pesquisados, que está representada no desenho de um menino que</p><p>valoriza o volume aumentado do tórax, marca principal da</p><p>representação de figura humana dessa criança. O padrão do tórax</p><p>volumoso e forte é uma referência que pode ser reconhecida também</p><p>em muitos outros desenhos, provável espelho do body-builder, aquilo</p><p>que Courtine (1995, p. 83) chamou de forma extrema “de uma cultura</p><p>visual do músculo”.</p><p>Tais desenhos são destaques da coleção produzida pelas crianças,</p><p>mas o “fortão” também foi muito explorado durante atividades de</p><p>desenhar e vestir, com retalhos recortados de tecido, um boneco com</p><p>sua roupa preferida. Um exemplo é o trabalho feito por um menino de</p><p>oito anos, morador do Plano Piloto, que declarou ser sua roupa preferida</p><p>uma blusa colorida, dada pela mãe. Destaca-se na blusa a parte que</p><p>cobre os músculos peitorais, os ombros e os bíceps, formando um bloco</p><p>corporal homogêneo e volumoso. Completam o traje desse “fortão” a</p><p>calça, os sapatos e um boné “transado”.</p><p>Outra forma encontrada foi a de Johnny Bravo, personagem de</p><p>canal de TV por assinatura. O menino de sete anos utilizou barbante</p><p>para caracterizar o personagem: “O topete dele é grande e ele tem esses</p><p>cabelos debaixo do braço. Eu só tenho um pouco, nem dá pra aparecer”.</p><p>Quanto ao traje, continuou: “Eu gosto dessa camisa cinza porque ela é</p><p>muito bonita. Eu gosto de preto, mas eu achei essa cor, achei bonito e</p><p>coloquei”. É interessante observar como o desenvolvimento do trabalho</p><p>artístico modificou de certa forma os conceitos preliminares da criança,</p><p>neste caso, em relação à cor utilizada na obra. A boca desenhada, grande</p><p>e de lado, e os braços abertos completam a expressão irreverente do</p><p>personagem.</p><p>Outro desenho coletado, contudo, caracterizou-se pela expressão</p><p>facial ameaçadora, que, em contraste com o romantismo de delicadas</p><p>flores desenhadas na base do suporte, produziu uma coerência</p><p>monolítica com o estilo que constitui, conforme Courtine (1995), uma</p><p>resposta ao desenvolvimento da violência. O autor desse desenho</p><p>contou-nos acerca de sua figura:</p><p>Não sei quem é... Ele não está fazendo nada... Os olhos dele são vermelhos... é a</p><p>lente. Ele está usando brinco em forma de cruz numa única orelha. Não lembro</p><p>quem usa brinco na televisão... é da novela “O anjo que caiu do céu”... Eu acho</p><p>que é da “A padroeira”... sei lá! Não consigo lembrar... Ganhei esta pulseira</p><p>“Redley” do meu amigo de 16 anos [o garoto usava uma igual à do desenho]. Eu</p><p>não tenho relógio, só pulseira mesmo.</p><p>A afirmação de passividade do personagem indica um paradoxo em</p><p>relação ao estilo de vida dos body-builders, que no campo profissional</p><p>foi encarnado pelos yuppies.[8]</p><p>O fortão, assim como o homenzinho, o skatista e o bad boy,</p><p>representa para os meninos uma espécie de herói. Outros heróis,</p><p>contudo, são ofertados amplamente</p><p>como conteúdo da programação</p><p>televisiva. Observamos, entre os signos que emolduram os autorretratos</p><p>produzidos pelas crianças pesquisadas, uma forte influência da</p><p>televisão. Em alguns casos, o próprio objeto aparece desenhado, mas</p><p>em geral as crianças preferem as imagens de seus ídolos midiáticos</p><p>compondo o cenário de seu autorretrato, que representa efeitos dos</p><p>desenhos animados japoneses. É uma figura de proporções equilibradas,</p><p>com rosto angulado e expressivo. O fundo foi pintado em duas cores</p><p>(vermelho e azul), proporcionando boa noção de espaço. Quatro</p><p>monstrinhos estão representados, entre eles um dinossauro, criatura que</p><p>aguça sobremaneira a imaginação infantil e que faz parte do enredo.</p><p>Para não deixar dúvidas quanto à sua intenção narrativa, o menino de</p><p>oito anos, morador da Asa Norte, escreveu “Pokémon” no cenário e</p><p>também na sua camiseta, integrando-se simbolicamente na trama dos</p><p>“monstros de bolso”. O pequeno artista afirmou que a camiseta lhe fora</p><p>dada pela avó, mas lamentou não possuir os brinquedos temáticos.</p><p>No período em que foram coletados os dados, mesmo não sendo</p><p>mais o preferido da maioria, o Pokémon era um desenho animado que</p><p>parecia manter-se vivo nas mentes dos alunos, mais em virtude da</p><p>respectiva febre de consumo, que costumeiramente acompanha os</p><p>produtos midiáticos, do que propriamente pelo fato de estar sendo</p><p>exibido na televisão. Levantamos essa hipótese com base na observação</p><p>da verdadeira “epidemia” que se alastrou entre as crianças ao longo de</p><p>toda a pesquisa de campo, girando em torno dos produtos de consumo.</p><p>Na escola, tornava-se visível, principalmente na hora do recreio, os</p><p>meninos se espalhando em pequenos grupos pelo pátio, para disputar o</p><p>“bafo” com as figurinhas do Pokémon, distribuídas como brindes em</p><p>pacotes de salgadinhos. Enquanto comiam os salgadinhos,</p><p>conquistavam mais figurinhas. Cada coleção era composta de 50</p><p>cromos, e tivemos a oportunidade de conhecer meninos que se gabavam</p><p>de possuir quatro coleções completas. Fanáticos pelo Pokémon,</p><p>conheciam todos os detalhes da trama emaranhada e rica em detalhes.</p><p>Ressalte-se que o autor denominou os monstros desenhados com toda</p><p>segurança e naturalidade durante a entrevista, embora o nome deles não</p><p>fosse de fácil pronúncia.</p><p>Outros desenhos trazem versões mais intensas de integração das</p><p>imagens da televisão às figuras humanas. Trata-se da forma corporal do</p><p>mito como padrão para o desenho do autorretrato. Em outras palavras, o</p><p>autor fantasia-se fisicamente de herói. No caso, um garoto com sete</p><p>anos, morador de Sobradinho, vestiu seu desenho com uma roupa de</p><p>retângulos nas pernas, de bolinhas nas mangas e de triângulos no</p><p>tronco. Os sapatos parecem aparelhos voadores. Segundo o depoimento,</p><p>o herói estaria saindo da história e apontando para uma torre sobre um</p><p>fundo amarelo, lembrando diretamente uma cena de filme ou desenho</p><p>animado. A violência como pano de fundo de desenhos japoneses tem-</p><p>se tornado objeto constante de reclamações e de análises. Ressaltamos</p><p>que esse cenário de luta se desenrola de uma maneira muito especial. As</p><p>lutas entre personagens e monstros são estratégias pessoais em busca de</p><p>um sentido objetivo para a existência: “evolução”. As crianças</p><p>percebem essa mensagem e por isso enfatizaram nas entrevistas: “O</p><p>Dragon Ball Z é legal porque tem luta, dá poderes, se transforma em</p><p>Super Sayajin, está voando”. E mais: “O dragão ressuscita todos os</p><p>Dragon Ball Z”.</p><p>O auge dessas transformações atinge o âmago dos personagens, ou</p><p>seja, o seu próprio corpo, como pudemos ver no desenho de um menino</p><p>de 8 anos, morador do Plano Piloto. Perguntado sobre o que havia</p><p>colocado no centro da camiseta, respondeu: “Um robô com rodas e</p><p>tomada misturado com uma pessoa qualquer. Vi um robô e depois um</p><p>cara Digimon e misturei para ver o que dava. Ele tem um canhão com</p><p>bola e raio laser”. A própria professora da escola observou como essa</p><p>descrição do ser híbrido correspondia ao padrão dos desenhos animados</p><p>das séries japonesas e dos brinquedos equivalentes. As crianças</p><p>divertem-se com os bonecos, desmontando e articulando novas formas,</p><p>sugerindo os processos de “evolução” pelos quais se desencadeiam as</p><p>lutas e competições. Essa imagem nos leva a analisar o seu impacto</p><p>sobre os conceitos de corpo das crianças, em comparação com os</p><p>processos de virtualização do corpo.</p><p>Essa concepção de corpo virtualizado pode ser constatada nas lutas</p><p>“de brincadeira”, que os meninos chamam de “brincar de lutinha”. Duas</p><p>formas de luta foram observadas. A primeira, de contato corporal,</p><p>consiste em meninos rolando no chão, empurrando-se, dando rasteira e</p><p>às vezes até chutes e socos. As crianças não costumam se machucar</p><p>nessas brincadeiras porque logo chega um adulto para “atrapalhar”. Por</p><p>outro lado, entre os pequenos, sempre algum sai chorando e reclamando</p><p>do colega. Sentimentos passageiros, pois em poucos minutos eles</p><p>podem ser vistos jogando futebol ou “bafo”, lado a lado.</p><p>Observamos em campo que as “lutinhas” também foram objeto de</p><p>dramatização teatral. Os desenhos de ninjas produzidos coletivamente</p><p>na aula de artes visuais foram representados corporalmente na aula de</p><p>teatro. Um grupo de ninjas entra em cena, numa casa imaginária, um a</p><p>um pulando uma cadeira e promovendo um verdadeiro massacre do</p><p>morador, representado por um menino que estaria dentro da casa.</p><p>Alguns deles imitam sons de tiros e gritam “AA-ta-caaar!”. O que se vê</p><p>são imagens de golpes e pancadaria em geral, em nada semelhantes às</p><p>lutas meticulosamente travadas pelos heróis dos desenhos japoneses.</p><p>Outro grupo de ninjas, entretanto, dramatiza as “lutinhas” por meio</p><p>da capoeira, representando essa forma de luta sem toque, mas com</p><p>muito controle corporal. Alguns meninos narram a dramatização</p><p>enquanto a vivenciam: “Aí, você morreu!” – assemelhando-se, nesse</p><p>aspecto, a outra forma que imita as lutas típicas do Dragon Ball Z,</p><p>orientada por um brado – “Kame, Hame, Haaa” –, que é emitido junto</p><p>com a movimentação dos braços. Os meninos ficam algum tempo</p><p>envolvidos com a brincadeira de Dragon Ball Z, lutando sem nenhum</p><p>contato corporal, esforçando-se para derrotar o “inimigo” com brados e</p><p>gestos a distância. Um desenho muito comum entre as crianças</p><p>demonstra o espírito desse tipo de luta: nele não é possível visualizar os</p><p>lutadores, mas apenas seus raios e a luz provocada pelo encontro desses</p><p>raios. A luta visual sinaliza para o conceito de corpo virtual.</p><p>Por fim, uma última pintura: uma boneca delicada está usando um</p><p>vestido curto, ornamentado com flor, presilha, colar e brincos: “Foi a</p><p>minha mãe que deu”, disse a autora. No entanto, verificando de perto a</p><p>figura, surpreendeu-nos vê-la desenhada sobre uma balança. “Sou eu, e</p><p>estou me pesando”, confirmou a entrevistada. “Tem uma balança na sua</p><p>casa?”, perguntei-lhe. “Não, aqui é uma farmácia. Lá na minha quadra,</p><p>que eu morava, tinha pertinho”, respondeu, indicando os detalhes das</p><p>prateleiras de remédio e a placa ao fundo avisando: “Sorria, você está</p><p>sendo filmado”.</p><p>É verdade que, entre os cuidados dedicados às crianças, aparece</p><p>com destaque o monitoramento do peso e da altura. O objetivo é</p><p>alcançar o crescimento da estatura e o aumento do peso, dentro de</p><p>parâmetros considerados normais para cada faixa etária. Porém, aquela</p><p>criança de apenas sete anos tinha outro objetivo com a prática de se</p><p>pesar diariamente: “Porque se eu pesar mais de 30 kg eu vou ter que</p><p>comer só um doce por dia, é que eu acho que se pesar mais de 30 já é</p><p>pesado demais”.</p><p>Caso se tratasse de uma garota obesa, sua justificativa poderia ser</p><p>considerada coerente com os padrões médicos, que também são</p><p>culturais. No entanto, ela era delicada e magrinha. A explicação para tal</p><p>conceito de corpo pode ser referenciada na ideologia de nossa época –</p><p>fruto das políticas do corpo –, fortemente caracterizada pela lipofobia,</p><p>isto é, a obsessão pela magreza e a rejeição maníaca à gordura, que se</p><p>exacerba no caso do corpo feminino.</p><p>Para as crianças, essa imagem é divulgada de diversas formas.</p><p>Entre elas, as denominadas bonecas-manequim, como a Barbie,</p><p>inspiradas</p><p>em famosas modelos, como Gisele Bündchen. Brougère</p><p>(2000) alerta, entretanto, para a noção de que a boneca, mais do que</p><p>uma representação da realidade, refletiria uma certa imagem social da</p><p>realidade. Na visão desse estudioso, o mundo que cerca as bonecas trata</p><p>mais de significar do que de representar a realidade. A boneca-</p><p>manequim refletiria sobretudo a imagem da infância ideal para nossa</p><p>sociedade.</p><p>Três aspectos do depoimento da aluna em foco devem ser</p><p>considerados em nosso comentário: a autonomia corporal, a</p><p>preocupação em não engordar e uma tendência à deturpação da imagem</p><p>corporal.</p><p>Demonstrando uma certa autonomia em relação ao trato com o seu</p><p>próprio corpo, a garota salientou: “Ninguém falou isso pra mim”. Isso</p><p>pode indicar que ela tirou suas conclusões por conta própria, sem que a</p><p>mãe, a professora ou mesmo uma colega o dissesse. Seu depoimento</p><p>nos remete à análise de Elias acerca de uma permissividade crescente na</p><p>sociedade ocidental, como produto da crise de autoridade, que, no</p><p>entanto, indicaria “não um declínio das coações sociais, mas uma</p><p>transferência para o indivíduo das coações antes exercidas pelas</p><p>autoridades exteriores, e que agora devem ser assumidas pelo próprio</p><p>indivíduo” (Courtine 1995, p. 113). Esse aspecto foi reforçado, no</p><p>desenho, pelos tamancos, representados ao lado da balança. Tal ato,</p><p>apesar da sua simplicidade, indica a seriedade da garota diante da</p><p>prática de se pesar. Em estágios mais radicais da busca pelo corpo ideal,</p><p>essa falsa autonomia se traduz no conceito de self-built-women –</p><p>escultoras, diretoras, propagandistas e comerciantes de sua própria</p><p>anatomia.</p><p>A autoproibição do doce e a ideia de que 30 kg significam uma</p><p>extrapolação do peso corporal de uma menina de sete anos podem</p><p>representar, conforme o desenrolar formativo de sua representação</p><p>acerca do corpo, riscos de uma patologia cada vez mais frequente entre</p><p>jovens: a anorexia. Nesse sentido, arriscamos dizer que o desenho em</p><p>análise, embora exemplar único da coleção, pode ser considerado um</p><p>sinal de nossos tempos, no sentido de que a representação corporal</p><p>embutida nas cores da pintura antecipa com muita veemência a</p><p>exacerbação da cultura corporal adulta burguesa, que vem ampliando</p><p>seu domínio desde meados do século passado e difundindo-se como</p><p>senso comum entre diferentes faixas etárias, classes sociais, etnias e</p><p>culturas. Nesse sentido, cabe a observação de Zizek em entrevista a</p><p>Polidori (2000): na anorexia, o sujeito não está simplesmente deixando</p><p>de comer, pois o que ele realmente deseja é “comer o nada”.</p><p>As “crianças lúdicas”</p><p>Enfim, acreditamos que esses tipos refletem algumas das principais</p><p>imagens de corpo entre as crianças pesquisadas, revelando ainda as</p><p>influências sociais e culturais mais marcantes nas quais as crianças</p><p>estavam envolvidas e que contribuiriam fundamentalmente para forjar a</p><p>sua cultura corporal. No entanto, revelam, sobretudo, as interações</p><p>observadas entre as crianças e os processos que afetam suas relações</p><p>sociais. Salientamos que, de um ponto de vista histórico, os desenhos</p><p>das crianças não estariam aprisionados ao determinismo social. Eles</p><p>dariam às crianças, sendo uma linguagem, a possibilidade de</p><p>(res)significar, (re)inventar e virtualmente transgredir a própria</p><p>realidade na qual se inserem. O desenho das crianças, ao mesmo tempo</p><p>em que se realiza numa dada realidade social, poderá modificá-la, pois</p><p>também é expressão de uma cultura instituinte, o campo social aberto de</p><p>possibilidades (Gusmão 1999). Nesse sentido, observamos que o</p><p>espectro de configurações dos corpos infantis elencado, por meio de</p><p>desenhos de figuras humanas produzidos pelos sujeitos participantes,</p><p>parece orientar-se em um tipo comum aos anteriores: a criança lúdica.</p><p>Observamos que uma parcela considerável da coleção de figuras</p><p>humanas reunidas na escola pesquisada, incluindo algumas que se</p><p>encaixam também nos outros tipos, traz explicitamente a representação</p><p>da criança lúdica. As respostas das crianças à cultura corporal, reveladas</p><p>em forma de imagens, demonstram que a brincadeira é um dos seus</p><p>traços mais marcantes. Constatamos essa resposta nas figuras humanas</p><p>– especialmente nos autorretratos –, em atividades de expressão</p><p>corporal propriamente dita e na observação do comportamento das</p><p>crianças em várias situações do cotidiano escolar. A insistência, por</p><p>exemplo, em desenhar brincadeiras para ornamentar ou contextualizar</p><p>os autorretratos parece confirmar esse sentimento de infância presente</p><p>no imaginário das crianças pesquisadas.</p><p>Os autorretratos foram feitos, em grande parte, no formato 3x4.</p><p>Alguns deles, podemos dizer, foram emoldurados pela composição</p><p>rítmica de uma constelação de pontos, estrelas e outros signos, da</p><p>preferência do autor. Além desses, outros tipos destacaram-se: os signos</p><p>românticos, os desenhos de monstros e heróis e ainda os desenhos de</p><p>brinquedos, como patinetes, carrinhos, bolas e bonecas. Os pequenos</p><p>desenhos flutuam ao redor dos autorretratos configurando-os histórica e</p><p>socialmente. Reconhecemos facilmente nos desenhos a valorização do</p><p>universo lúdico pelos próprios sujeitos, caracterizando a criança lúdica.</p><p>Enfim, o que os desenhos nos dizem é que brincar é uma atividade</p><p>muito significativa na perspectiva cotidiana das crianças pesquisadas.</p><p>Mas a criança lúdica está consubstanciada sobretudo na presença do</p><p>corpo como elemento fundamental da manifestação artística. Assim, o</p><p>próprio corpo torna-se um objeto de arte, condição que lhe permitiria</p><p>libertar-se da influência imediata do mundo empírico. Lembramos que a</p><p>arte não seria “mera repetição da vida e da natureza, mas sim uma</p><p>espécie de transformação que depende de um ato autônomo e específico</p><p>da mente humana e que é gerado pelo poder da forma estética”</p><p>(Cassirer, apud Koudela 1998, p. 31). Na mão das crianças, o corpo</p><p>desenhado pode transformar-se numa brincadeira, configurando-se</p><p>assim a perspectiva do corpo lúdico. Por esse aspecto, a atividade</p><p>artística pode ser comparada a um espelho mágico, através do qual as</p><p>crianças percebem e recriam aquelas noções de corpo difundidas pelo</p><p>sistema cultural, principalmente a escola e a mídia.</p><p>Referências bibliográficas</p><p>BARTHES, Roland (1993). Mitologias. 9ª ed. Rio de Janeiro: Bertrand.</p><p>BROUGÈRE, Gilles (2000). Brinquedo e cultura. 3ª ed. São Paulo: Cortez.</p><p>BUCKINGHAM, David (2000a). After the death of childhood. Cambridge: Polity Press.</p><p>________ (2000b). “Studying children’s media cultures: A new agenda for cultural studies”.</p><p>Atas do Congresso Internacional “Os mundos sociais e culturais da infância”, vol. 1.</p><p>Braga, pp. 19-32.</p><p>COURTINE, Jean-Jaques (1995). “Os stakhanovistas do narcisismo: Body-building e</p><p>puritanismo ostentatório na cultura americana do corpo”. In: SANT’ANNA, Denise</p><p>Bernuzzi (org.). Políticas do corpo. 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Nesse contexto e nessa</p><p>conjuntura, faz todo o sentido a consideração de Habermas (1973) sobre</p><p>o par “técnica e ciência” como ideologia que tem concretude, pois</p><p>inspira e modela a realidade material, transformando-se em força</p><p>produtiva importante, às vezes determinante, com consequências</p><p>fundamentais para a socialização e, portanto, para os sistemas</p><p>institucionalizados de educação.</p><p>A integração das tecnologias de informação e comunicação (TICs)</p><p>aos processos educacionais é uma das transformações necessárias à</p><p>escola para que esteja mais em sintonia com as demandas geradas pelas</p><p>mudanças sociais típicas da sociedade contemporânea de economia</p><p>globalizada e cultura mundializada. A perspectiva de nosso trabalho é a</p><p>luta pela efetiva implantação do Estatuto da Criança e do Adolescente</p><p>(ECA), que assegura, entre outros, o direito de todas as crianças e de</p><p>todos os adolescentes a uma educação de qualidade, que, a nosso ver,</p><p>tem que incluir a mídia-educação como parte essencial da formação</p><p>para a cidadania. Embora seja um truísmo, vale relembrar que a</p><p>qualidade da educação implica a centralidade do aprendente e uma</p><p>formação de professores atualizada que torne possíveis a valorização</p><p>dos saberes do aluno e a apropriação crítica e criativa das tecnologias de</p><p>informação e comunicação disponíveis na sociedade.</p><p>Os jovens e as crianças incorporam fácil e rapidamente as novas</p><p>tecnologias quando têm acesso a elas, simplesmente porque estão</p><p>incorporando todos os elementos de seu universo de socialização: para</p><p>eles, tudo é novo e está no mundo para ser apreendido, apropriado, seja</p><p>o conhecimento científico, os gadgets tecnológicos ou a violência sem</p><p>limites nem perdão dos morros.</p><p>Por outro lado, o computador não é igual ao livro, e a internet é</p><p>ainda mais fascinante que a telinha da TV. Cada um desses meios de</p><p>comunicação e informação tem suas especificidades técnicas e</p><p>semiológicas, “regras da arte” que precisamos conhecer, apropriar e</p><p>colocar a serviço da educação das novas gerações. Acredito que a</p><p>melhor, e talvez a única, maneira de fazer isso seja conhecer os modos</p><p>como os próprios jovens se apropriam dessas TICs e as integram em seu</p><p>cotidiano, como eles as representam e como percebem suas relações</p><p>com elas.</p><p>A integração das TICs aos processos educacionais</p><p>institucionalizados exige difíceis mudanças nos modos de ensinar e de</p><p>formar professores. É preciso considerar as duas dimensões</p><p>indissociáveis dessas TICs: elas devem ser ao mesmo tempo “objetos de</p><p>estudo” multifacetados e complexos e “ferramentas pedagógicas”</p><p>capazes de potencializar as situações educativas. A desconsideração da</p><p>primeira leva ao uso meramente instrumental dos meios técnicos como</p><p>apoio a “velhas pedagogias”. Do mesmo modo, a desconsideração do</p><p>uso das TICs como ferramentas pedagógicas, ou seja, a consideração</p><p>exclusiva da dimensão “objeto de estudo”, em geral reduzida à simples</p><p>discussão dos conteúdos considerados inadequados (em geral, violência</p><p>e sexualidade, valores) e à decorrente valorização dos aspectos</p><p>“educativos” das TICs, pode levar a práticas pouco eficazes por</p><p>absoluta dissonância com os modos de perceber e pensar dos sujeitos do</p><p>processo, isto é, as crianças e os jovens (Belloni 2001a e 2001b).</p><p>As pesquisas relatadas a seguir buscam compreender como ocorrem</p><p>os processos de apropriação e domínio dessas novas “máquinas</p><p>maravilhosas” (Friedman 1979), pelo público jovem, com a intenção de</p><p>contribuir para que a escola consiga dar o salto qualitativo que</p><p>possibilitará a mudança profunda no sentido da formação plena do</p><p>cidadão da contemporaneidade. Os dados da pesquisa brasileira são aqui</p><p>apresentados de forma sintetizada e sem detalhes metodológicos, com o</p><p>objetivo de pôr em relevo as informações mais pertinentes, procurando,</p><p>assim, deixar o leitor tirar delas suas próprias conclusões.</p><p>Essas informações se referem a duas pesquisas realizadas em</p><p>espaços e realidades muito diferenciados, como diferentes foram</p><p>também a abrangência e as condições de sua realização. A primeira</p><p>parte trata de uma pesquisa internacional, realizada em vários países do</p><p>“Primeiro Mundo” por um grupo de pesquisadores ligados a várias</p><p>instituições oficiais.[1] A segunda parte relata alguns resultados de uma</p><p>pesquisa de abrangência muito menor, realizada em Santa Catarina,</p><p>mais especificamente em quatro municípios da Grande Florianópolis.</p><p>Pesquisa internacional: Países ricos</p><p>Uma pesquisa realizada ao final dos anos 1990, em seis países</p><p>europeus e em Québec (Canadá francês), com jovens de 12 a 18 anos,</p><p>mostrou que, para eles, o impacto da disseminação da rede mundial de</p><p>computadores é grande, mas não exagerado, não maior do que o foi o da</p><p>televisão. A pesquisa, cujo objetivo foi “conhecer a atitude dos</p><p>adolescentes vis-à-vis da internet” e produzir dados precisos sobre “a</p><p>relação que eles entretêm com esta nova mídia”, trouxe à luz muitas</p><p>informações preciosas sobre como os jovens percebem e usam a rede</p><p>mundial de computadores.</p><p>Combinando metodologias quantitativas e etnográficas, numa</p><p>abordagem qualitativa, a pesquisa buscou estudar as interações entre os</p><p>jovens e a internet, considerando principalmente três dimensões dessas</p><p>relações: as representações (a imagem que o jovem faz da internet), a</p><p>utilização (as condições reais de uso da internet num dado período), e as</p><p>apropriações (o grau e o tipo de integração da internet nos hábitos de</p><p>vida</p><p>e nas práticas cotidianas do jovem, de sua família e do grupo de</p><p>seus pares). A pesquisa foi realizada nos locais de uso mais frequente da</p><p>internet: a escola e a casa.</p><p>Os dados sobre as “representações” que os jovens têm da internet</p><p>revelam uma percepção moderada, sem a esperada fascinação muitas</p><p>vezes apregoada pela publicidade, nem apocalíptica, nem deslumbrada.</p><p>Embora qualifiquem a rede mundial de computadores como</p><p>“revolucionária”, os jovens europeus e canadenses não a percebem</p><p>como tendo revolucionado sua própria vida. Consideram a rede uma</p><p>ferramenta tecnicamente extraordinária, mas facilmente integrada ao</p><p>cotidiano, sem maiores perturbações. Alguns jovens, estimulados pela</p><p>pesquisa, mostram-se facilmente críticos, e questionam as limitações da</p><p>rede. Na França, onde a comunicação é vista pelos jovens como o</p><p>aspecto mais revolucionário da internet, muitas meninas criticam o</p><p>anonimato e a despersonalização, por exemplo. Ficou bastante claro</p><p>também que as representações que os jovens têm da internet estão</p><p>intrinsecamente ligadas aos discursos sociais veiculados pelas mídias,</p><p>pelos pais e pelos pares. Também foi possível perceber que, quanto mais</p><p>o uso da rede se torna forte e habitual, mais a força dessas</p><p>representações se reduz.</p><p>Dessas informações podemos inferir que as relações entre os</p><p>indivíduos (jovens) e as tecnologias são sempre referidas ao meio</p><p>social. A consideração dessa dimensão social da circulação das</p><p>tecnologias é fundamental para a compreensão dos modos de</p><p>apropriação das TICs.</p><p>As principais representações encontradas pela pesquisa são: i) a</p><p>internet serve para divertir e comunicar; ii) a internet serve para</p><p>informar; iii) a informação é confiável (pelo menos tão confiável quanto</p><p>a de outras mídias); iv) a rede é imensa e infinita.</p><p>Os jovens não questionam espontaneamente a credibilidade e a</p><p>confiabilidade da informação: para eles, a questão se coloca para todas</p><p>as mídias. Interrogados sobre os perigos da rede, estimulados a refletir</p><p>sobre o tema, eles admitem que se deveria informar melhor os jovens</p><p>sobre sites perigosos, embora sejam contra proibições. No entanto, é</p><p>interessante notar que há diferenças entre países: na França e em</p><p>Portugal, por exemplo, os jovens consideram menos preocupante a</p><p>presença de sites pornográficos ou pedófilos do que a de sites racistas.</p><p>Uma representação bastante difundida entre os adultos,</p><p>especialmente entre grandes utilizadores e especialistas, de que o inglês</p><p>predomina, sendo a língua usada por todos na rede, foi desmentida</p><p>pelos jovens pesquisados: eles tendem a “surfar” em sua própria língua,</p><p>embora considerem importante saber inglês, mas não essencial.</p><p>Quanto à integração da internet ao cotidiano das pessoas, ela é</p><p>percebida pelos jovens como mais um meio de comunicação e lazer,</p><p>como um complemento e não como um concorrente de outros meios e</p><p>instituições (de comunicação e de educação): a maioria desconfia e não</p><p>usa o comércio on-line. Em nenhum país a internet é percebida como</p><p>uma alternativa à escola: mais de dois terços dos jovens não concordam</p><p>com a ideia de que a internet poderia substituir a escola. Quanto à</p><p>possibilidade de a internet substituir a televisão, as opiniões são mais</p><p>divididas: os grandes utilizadores tendem a estar de acordo, enquanto</p><p>aqueles que fazem um uso mais esporádico da rede consideram que ela</p><p>não vai substituir a TV. Uma constatação obviamente objetiva em</p><p>relação ao tempo é a de que, na maioria das vezes, o tempo livre, antes</p><p>dedicado à televisão, vai sendo consagrado à nova telinha.</p><p>A pesquisa mostrou que, em relação à utilização da internet relatada</p><p>pelos jovens, há variações importantes de um país a outro: os maiores</p><p>índices de uso estão no Canadá, onde 99% dos jovens declaram já ter</p><p>utilizado a internet ao menos uma vez. Os menores estão na Espanha</p><p>(37%). A média dos seis países europeus estudados (Bélgica, França,</p><p>Espanha, Itália, Portugal, Suíça) é de 71%, e, em Portugal, ao contrário</p><p>da Espanha, 82% dos jovens já usaram internet.</p><p>Quando perguntados sobre o que fazem na internet, a maioria dos</p><p>jovens declara em primeiro lugar que busca informações de seu</p><p>interesse pessoal ou para trabalhos da escola, e só em segundo lugar</p><p>menciona a comunicação e o divertimento. Embora os jovens ressaltem</p><p>ver na internet “uma possibilidade infinita de comunicação e lazer”, eles</p><p>parecem usá-la mais para atividades de pesquisa. Essas tendências</p><p>variam segundo os países, mas é possível observar uma inclinação</p><p>comum: as atividades mais “interativas” (chat, download, jogos on-line,</p><p>participação em fóruns, resposta a pesquisas, grupos de discussão,</p><p>criação de páginas etc.) são menos frequentadas do que as atividades</p><p>mais passivas, como consulta a bancos de dados, visita a sites etc. Essa</p><p>tendência não se confirmou na replicação da mesma pesquisa em</p><p>2005/2006: com o aparecimento dos blogs e a explosão do MSN</p><p>(messenger), as práticas de uso tendem a ser cada vez mais interativas.</p><p>Há muitas semelhanças entre comportamentos de meninas e</p><p>meninos. Observam-se porém duas diferenças importantes: as meninas</p><p>preferem o chat e os meninos, o download de músicas ou imagens. No</p><p>Canadá, de longe o país mais “tecnificado” da amostra, tendências se</p><p>esboçam: os meninos menores jogam e copiam jogos, enquanto os</p><p>maiores frequentam sites e navegam buscando informações. Em todos</p><p>os países, nota-se uma diferença pequena mas significativa: as meninas</p><p>frequentam menos a internet do que os meninos. Outra generalização</p><p>possível: o uso mais intensivo modifica e melhora (aperfeiçoa) as</p><p>práticas.</p><p>O uso mais frequente da internet por parte dos jovens se dá com</p><p>eles sozinhos diante da telinha – sozinhos mas não solitários, já que</p><p>metade deles diz usar a rede com amigos. Não há muito controle por</p><p>parte dos pais: apenas um terço exerce alguma vigilância, e mesmo</p><p>assim mais em relação ao tempo (por razões econômicas e/ou de</p><p>organização) do que propriamente ao tipo de uso, seja relativo ao</p><p>conteúdo ou a atividades de ordem comunicacional (chats, fóruns,</p><p>listas, e-mail). Como no caso de outras mídias (desenvolvemos também</p><p>pesquisas sobre televisão), os jovens partilham suas vivências com os</p><p>amigos e irmãos, e não com os pais. A pesquisa praticamente não</p><p>registrou casos de utilização compulsiva e extrema – a maioria dos</p><p>jovens declara um consumo moderado e razoável e uma tendência a</p><p>privilegiar atividades de tipo “enciclopédico” ou “comunicacional”,</p><p>permanecendo em terrenos conhecidos, sem explorar novos setores da</p><p>rede. A navegação se faz ao acaso e os modos de “surfar” variam muito;</p><p>uma maioria significativa (76%) diz descobrir novos sites graças aos</p><p>amigos, mas também por meio das mídias audiovisuais e impressas</p><p>(70%). Apenas no Canadá, muitos jovens (43%) declararam conhecer</p><p>sites por intermédio de professores. A família não parece importante</p><p>nesse processo, em nenhum dos sete países estudados.</p><p>Segundo os dados dessa pesquisa, estamos bem longe da imagem</p><p>de um jovem internauta que, graças à conexão domiciliar à internet,</p><p>comunica-se com correspondentes do mundo inteiro ou passa seu tempo</p><p>explorando novos domínios de conhecimento. Esse tipo de usuário</p><p>existe e aparece na pesquisa, mas trata-se claramente de uma minoria.</p><p>As novas gerações, pelo menos nos países ricos, parecem estar</p><p>integrando a seu dia a dia, de modo menos acelerado do que previam os</p><p>especialistas e esperavam os produtores, essa nova máquina de</p><p>comunicar que, em que pesem suas imensas virtualidades, não é</p><p>percebida por elas como uma grande revolução. Os jovens consideram a</p><p>internet simplesmente mais um meio – talvez o melhor – de fazer mais</p><p>as mesmas coisas que fazem com outros meios. É preciso lembrar que a</p><p>idade dos jovens da amostra varia de 12 a 18 anos, ou seja, alguns deles</p><p>já nasceram com a internet em casa, o que a faz tão familiar quanto o</p><p>rádio ou a TV.</p><p>Muitos jovens relatam modos de uso bastante livres e autônomos: o</p><p>que eles mais gostam na internet é o “poder de pilotar”, de agir e dirigir</p><p>o modo de consulta, de escolher os programas, ao contrário do que</p><p>fazem com</p><p>a televisão, na qual os programas são impostos. Muitos</p><p>acreditam que podem fazer o que quiserem e modificar o que está na</p><p>rede.</p><p>Quanto às formas de apropriação, definida como “integração da</p><p>internet aos hábitos de vida e às práticas cotidianas dos jovens”, a</p><p>pesquisa revela uma nítida diferença entre os países da Europa e</p><p>Québec: no Canadá francês, um dos países mais ricos do Novo Mundo,</p><p>“a internet aparece como integrada, sem perturbações, ao meio</p><p>ambiente normal e cotidiano do jovem”, sendo considerada apenas mais</p><p>uma atividade entre outras, sem substituí-las. Segundo o relatório, ela</p><p>provoca mais um deslocamento do que uma substituição dos hábitos e</p><p>do tempo dos jovens. Nos países europeus, a prática da internet</p><p>permanece uma atividade fora do comum para muitos jovens, e os</p><p>hábitos de uso ainda estão pouco estáveis, o que gera uma tendência a</p><p>representações idealizadas das práticas reais, diferente da visão mais</p><p>estandardizada, voltada ao lazer e ao consumo, mais característica dos</p><p>jovens canadenses.</p><p>O fator mais determinante das relações entre o adolescente e a</p><p>internet é sem dúvida a presença ou não da conexão em casa. Se ela</p><p>existe, o jovem usa a internet com mais frequência e regularidade; à</p><p>medida que o tempo de uso aumenta, tende a aumentar a sofisticação de</p><p>uso. A utilização em domicílio é radicalmente diferente da que se pode</p><p>fazer na escola: é “mais autônoma, mais livre, mais individual”. Em</p><p>média, como vimos, o acesso é grande e tende a aumentar em todos os</p><p>países estudados. No entanto, a pesquisa mostrou, por meio das</p><p>entrevistas em profundidade, que muitas vezes a conexão não funciona</p><p>muito bem, nem o tempo todo. Problemas técnicos e também</p><p>econômicos (preço da conexão telefônica) acabam por tornar esse</p><p>acesso bem mais virtual e intermitente do que supúnhamos,</p><p>principalmente na Europa. As representações, todavia, são totalmente</p><p>positivas, e a conexão com a rede continua sendo um objeto de desejo</p><p>da grande maioria dos jovens.</p><p>A presença da internet em casa não exclui ou diminui a importância</p><p>das outras mídias, ou seja, “a internet convive com as outras mídias”,</p><p>incorporando-se sem perturbação aos usos midiáticos dos jovens: o</p><p>prazer de navegar não substituiu o prazer da televisão, do cinema ou da</p><p>leitura. Melhor ainda, a internet combina bem com a música: pode-se</p><p>escutar enquanto se navega ou “baixá-la” para escutar depois.</p><p>O lugar e o papel da escola são importantes no que se refere à</p><p>iniciação técnica: mais da metade dos jovens descobriu a internet na</p><p>escola. Todavia, a integração da internet às práticas pedagógicas, como</p><p>objeto de estudo (e não apenas como ferramenta de ensino), é ainda</p><p>muito irregular e incipiente, mesmo nos países europeus. Os jovens</p><p>percebem e criticam essa utilização convencional e demasiadamente</p><p>escolar (sem a dimensão da mídia-educação: “objeto de estudo”),</p><p>característica de seu uso na escola, tão diferente do uso muito mais livre</p><p>e lúdico. Pode-se dizer que, ao não discutir a mídia e suas</p><p>características, a escola não ajuda os jovens a compreender suas</p><p>experiências lúdicas e a desenvolver modos autônomos e críticos de</p><p>apropriação da técnica e de relações com as estruturas simbólicas</p><p>atuantes na rede (os conteúdos).</p><p>Embora os jovens desejem uma presença muito mais forte da</p><p>internet na escola, cientes de que é preciso dominar completamente essa</p><p>ferramenta essencial para seu futuro, eles estão também conscientes de</p><p>que a internet não vai substituir fisicamente a escola em sua estrutura</p><p>clássica (classe, professor e quadro), que é, para eles, “uma ocasião de</p><p>socialização que a virtualidade da rede não pode substituir”.</p><p>A pesquisa revelou alguns traços dominantes e variações</p><p>importantes que não permitem desenhar um retrato do jovem internauta:</p><p>o acesso em casa e o uso na escola são determinantes nas práticas dos</p><p>jovens e geram abordagens muito diferenciadas entre eles; o sexo, a</p><p>idade, o nível de prática e de familiarização com a internet são variáveis</p><p>que influenciam os modos de uso e os objetivos; as meninas são menos</p><p>consumidoras de internet que os meninos. A pesquisa também mostrou</p><p>que, por detrás da banalização e da disseminação progressiva, se</p><p>desenha a desigualdade de acesso e uso.</p><p>Essa pesquisa foi replicada, em 2005/2006, em nove países</p><p>europeus e no Canadá francês, com resultados que confirmam a</p><p>impressionante rapidez de difusão dessas novas TICs (agora incluindo o</p><p>telefone celular) entre os jovens dos países ricos e os aspectos positivos</p><p>e negativos das transformações socioculturais decorrentes de tal</p><p>difusão. Entre os resultados mais importantes, cabe ressaltar mudanças</p><p>significativas com relação a: diferenças expressivas entre os usos</p><p>domiciliares e escolares; o significativo papel das redes de comunicação</p><p>com relação a identidade social e relações na família, na escola e no</p><p>grupo de pares; atitudes com relação a riscos e perigos, experiências</p><p>negativas, comportamentos antissociais e regulação das novas TICs;</p><p>atitudes como consumidores e a forma de considerar o futuro; a maneira</p><p>de os jovens aprenderem e agirem como jogadores com internet,</p><p>telefones celulares e videogames. Os resultados dessa pesquisa de</p><p>grande abrangência devem ser aplicados em políticas e ações de mídia-</p><p>educação e difundidos como recomendações para professores,</p><p>educadores, pais, políticos e industriais, e também para futuros</p><p>pesquisadores (Mediapro 2006).</p><p>Pesquisa nacional: Florianópolis[2]</p><p>Em Santa Catarina, em quatro municípios da Grande Florianópolis,</p><p>encontramos muitas semelhanças e algumas diferenças essenciais nas</p><p>relações entre jovens e internet, em comparação com os jovens dos</p><p>países ricos. Trabalhando também com metodologias quantitativas e</p><p>etnográficas, numa abordagem geral de ordem qualitativa, nossa</p><p>pesquisa buscou estudar, ainda, as interações entre os jovens e a</p><p>internet, incluída como uma tecnologia de informação e comunicação,</p><p>numa investigação que procura saber como os jovens se apropriam das</p><p>TICs e aprendem com elas.</p><p>Nossa primeira descoberta é que o acesso à internet é muito mais</p><p>extensivo do que supúnhamos: 73% de nossos 373 jovens dizem já ter</p><p>utilizado a internet pelo menos “algumas vezes”, enquanto a média do</p><p>jovens europeus é de 71% (declarando ter utilizado “ao menos uma</p><p>vez”). Ou seja, os índices de nossa amostra são superiores à média</p><p>europeia, e muito acima da média da Espanha (37%), embora estejam</p><p>bem abaixo daquela do Canadá (99%) no final dos anos 1990. Como</p><p>país periférico do Novo Mundo, o Brasil incorpora rapidamente as</p><p>inovações técnicas na medida de suas possibilidades socioeconômicas:</p><p>sendo campeão de desigualdade social,[3] o acesso às novas tecnologias</p><p>é profundamente marcado por essa realidade.</p><p>Nossa amostra inclui adolescentes da capital de um estado do Sul</p><p>que está entre os mais ricos do país, e, embora tenhamos incluído</p><p>escolas públicas de bairros periféricos em nossa amostra, não tivemos</p><p>um número significativo de jovens muito carentes, que, no entanto, em</p><p>escolas públicas de outras capitais, formam verdadeira legião. Um olhar</p><p>mais atento nos revela, no entanto, que os maiores utilizadores da</p><p>internet (os que “costumam utilizar todos os dias”) estão entre os alunos</p><p>das escolas particulares. Por outro lado, a parte da pesquisa qualitativa</p><p>que trabalhou com crianças e adolescentes em situação de risco, ou seja,</p><p>muito carentes, revelou-nos que o acesso às TICs ainda está longe de</p><p>uma distribuição democrática e que operar um computador (mesmo sem</p><p>internet) é um objeto de forte desejo (experiência piloto, 1ª etapa da</p><p>pesquisa, 2002).</p><p>Para tentar compreender as representações dos jovens quanto à</p><p>internet, começamos por perguntar genericamente “o que é internet?”.</p><p>Sendo uma pergunta aberta de resposta bastante difícil, obtivemos 40%</p><p>de não respostas. Entre os 225 jovens (60% da amostra) que</p><p>responderam à questão, mais da metade (51%) apresenta respostas que</p><p>destacam a função de comunicação da rede mundial de computadores,</p><p>enquanto 28% indicam a função de acesso ao conhecimento e à</p><p>educação (meio de pesquisa ou de estudo).</p><p>Apenas 22% apontam a</p><p>função de informação, e um grupo ainda menor (9%) indica a função de</p><p>lazer (meio de diversão ou jogos).</p><p>Encontramos respostas diferentes à pergunta “por que a internet é</p><p>importante na vida das pessoas?”. Entre os 70% de jovens que</p><p>responderam a essa questão, há um alto percentual (41%) que enfatiza a</p><p>função de informação, enquanto 26% consideram que a internet é</p><p>importante para o acesso ao conhecimento e à educação. Apenas 15%</p><p>dos jovens destacam a função comunicação interativa, que, no entanto,</p><p>é a mais presente nas práticas dos jovens, como veremos a seguir. Um</p><p>número reduzido de jovens (0,6%) aponta a função lazer/diversão</p><p>(jogos) como fator explicativo da importância da rede na vida cotidiana,</p><p>enquanto 19% lembram a utilidade geral da rede.</p><p>Ainda para conhecer as representações e opiniões dos jovens,</p><p>apresentamos várias afirmações sobre a rede e solicitamos que</p><p>declarassem seu acordo ou desacordo com elas. Tratando-se de</p><p>perguntas fechadas, obtivemos altos índices de respostas que nos</p><p>permitem melhor discernir o que pensam esses jovens. Assim foi</p><p>possível observar que uma grande maioria (58%), por exemplo,</p><p>considera mais fácil aprender com a internet do que com os livros. A</p><p>facilidade com que os jovens aprendem a operar os aparelhos</p><p>eletrônicos é também percebida por grande parte deles: 81% concordam</p><p>que é fácil aprender a utilizar a internet.</p><p>A quase totalidade dos sujeitos dessa pesquisa (92%) não concorda</p><p>com a frase “Internet é perda de tempo”, revelando que, assim como</p><p>ocorre em relação à televisão, os jovens têm uma opinião muito positiva</p><p>sobre a rede mundial de computadores. No entanto, essa opinião</p><p>positiva não os impede de ter também uma visão crítica tanto sobre os</p><p>modos de uso (76% concordam com a frase “a internet pode viciar</p><p>quem usa muito”, da qual apenas 21% dos jovens discordam), quanto</p><p>sobre a confiabilidade das informações encontradas na rede (52% não</p><p>concordam com a frase “Podemos confiar nas informações que achamos</p><p>na internet”).</p><p>Também a quase totalidade dos jovens (93%) concorda com a</p><p>afirmação “A internet é um meio de diversão”, e mais de um terço deles</p><p>(34%) concorda com a previsão de que a internet vai substituir a</p><p>televisão. A grande maioria (64%), porém, não concorda com esse</p><p>prognóstico; como vimos em outra parte da pesquisa, a frequência à</p><p>rede não faz diminuir significativamente a frequência à televisão – as</p><p>duas telinhas são complementares na ocupação do tempo livre de nossos</p><p>jovens.</p><p>As virtudes pedagógicas e as possibilidades educacionais da rede</p><p>ainda não são percebidas pelos jovens: a grande maioria (79%) não</p><p>concorda com a frase “A internet vai substituir a escola”. É importante</p><p>ressaltar, todavia, que existe já uma minoria significativa (18%) que</p><p>concorda com essa possibilidade, minoria que, provavelmente, tende a</p><p>crescer.</p><p>Como vimos, 73% de nossa amostra costuma utilizar a internet pelo</p><p>menos “algumas vezes”, revelando um índice bastante alto de acesso a</p><p>essa tecnologia de informação e comunicação. Para melhor</p><p>compreensão da acessibilidade e dos modos de uso da rede por nossos</p><p>jovens, os dados que seguem referem-se a esses 271 jovens utilizadores</p><p>mais ou menos regulares da rede.</p><p>A instituição escolar, ao contrário de alguns dos países ricos,</p><p>desempenha um papel pífio no processo de democratização da internet:</p><p>apenas 20% dos jovens utilizadores dizem ter conhecido a rede mundial</p><p>de computadores na escola. Os pares, por outro lado, parecem jogar um</p><p>papel mais importante: 25% dos jovens dizem ter utilizado a internet</p><p>pela primeira vez “em casa de um amigo”; a maioria dos jovens (35%)</p><p>declara que isso se deu em casa; e 8% dizem ter acessado a rede pela</p><p>primeira vez no trabalho do pai ou da mãe. A acessibilidade tem a ver,</p><p>pois, principalmente com a família, ou seja, com classe social.</p><p>Uma significativa maioria (61%) usa a internet há mais de dois</p><p>anos (em 2003), na média dos jovens. Esse percentual é, no entanto, de</p><p>92% nas escolas particulares, revelando mais uma vez, claramente, as</p><p>clivagens de classe no que diz respeito à acessibilidade.</p><p>A importância do grupo de pares e das mídias, bem como o papel</p><p>menor da escola e da família, aparece muito claramente nas respostas</p><p>quanto à descoberta de novos sites: 76% dos jovens dizem descobrir</p><p>novos sites graças aos amigos, 47% mencionam as mídias (TV e rádio,</p><p>25%; revistas e jornais, 22%), enquanto um grupo muito menor indica</p><p>os professores (8%) ou os pais (3%) como fonte de informação sobre</p><p>novos sites.</p><p>No entanto, segundo a percepção dos jovens, um grupo</p><p>significativo de pais (44% dos jovens que se declaram utilizadores)</p><p>tenta controlar o uso que os filhos fazem da internet, mas há um grupo</p><p>maior (48% desses jovens), cujos pais não exercem sobre isso nenhum</p><p>controle – sempre segundo a percepção dos jovens respondentes –,</p><p>revelando que a internet não é percebida pela família como algo</p><p>negativo ou perigoso. Ao contrário, as restrições que são feitas se</p><p>referem ao tempo gasto e ao custo da conexão.</p><p>Os hábitos de uso mostram uma tecnologia já bastante integrada no</p><p>cotidiano dos jovens alunos da escola básica: 34% declaram utilizar a</p><p>internet “todos os dias ou quase todos os dias”, enquanto 37% dizem</p><p>usar “muitas vezes”, o que nos revela um percentual muito significativo</p><p>de usuários frequentes (71%).</p><p>As práticas mais frequentes (“sempre ou quase sempre”) revelam</p><p>usos mais voltados à comunicação: uma maioria significativa frequenta</p><p>os bate-papos (46%; 25% de meninos e 21% de meninas) e pratica a</p><p>interação por e-mail (46%, metade meninos, metade meninas), o que</p><p>contraria de certo modo as representações e opiniões relatadas acima,</p><p>que destacam mais as funções de informação e acesso ao conhecimento</p><p>e à educação.</p><p>A escola não parece estimular muito o uso da rede para pesquisa:</p><p>apenas 23% dos jovens dizem usar sempre a rede para pesquisa escolar.</p><p>Um número maior (34%) declara navegar ao acaso, visitando sites,</p><p>enquanto 30% dizem “fazer download de jogos ou programas”, usos</p><p>tipicamente de divertimento.</p><p>Há uma minoria de 10%, quase todos meninos, que costuma jogar</p><p>on-line sozinha ou com amigos, e uma grande maioria (51%) que usa a</p><p>internet para ouvir (ou “baixar”) música (28% do sexo masculino e 23%</p><p>do sexo feminino).</p><p>Os modos de uso mostram que os jovens não navegam ao acaso;</p><p>provavelmente porque o tempo é reduzido ou controlado, a maioria</p><p>(52%) visita sites conhecidos, escrevendo o endereço, enquanto um</p><p>número bem menor (23%) navega ao acaso, “clicando em palavras e</p><p>imagens”. Poucos utilizam sites de busca (18%) ou</p><p>marcadores/favoritos (19%), o que revela um uso ainda reduzido de</p><p>todas as possibilidades da rede.</p><p>O interesse pelo tema e a familiaridade com as TICs que os jovens</p><p>de todos os grupos que estudamos nesse survey e nas partes mais</p><p>qualitativas de nossa pesquisa, bem como, para aqueles mais carentes,</p><p>que não têm acesso às TICs, o fascínio e o desejo que elas inspiram,</p><p>revelam que essas técnicas podem ser meios preciosos e efetivos de</p><p>melhorar a qualidade da educação e democratizar realmente seus</p><p>benefícios.</p><p>Nosso relatório final (Belloni et al. 2007) mostra que o ingresso</p><p>nessas tecnologias é maior do que o esperado, o que significa que a</p><p>disseminação do acesso aos equipamentos é bastante significativa</p><p>mesmo entre jovens de origem modesta; tal constatação, válida para a</p><p>Grande Florianópolis, é provavelmente generalizável pelo menos para</p><p>grande parte das cidades médias e grandes das regiões Sul e Sudeste. Há</p><p>uma estrutura mais ou menos comum de gostos, preferências e</p><p>frequência em relação a sites/jogos/horários: a maioria dos jovens</p><p>desenvolve na internet práticas interativas (correio eletrônico, bate-papo</p><p>e programa de mensagens instantâneas) e de acesso a bens culturais</p><p>(principalmente copiar música); usa a internet e o computador para</p><p>jogar sozinha ou com amigos (raramente on-line); e também busca</p><p>informações para fazer os deveres escolares; os sites mais citados são de</p><p>diversão e de busca.</p><p>Também observamos que a utilização dessas máquinas é fonte de</p><p>autoestima e</p><p>motivação para a aprendizagem, especialmente para jovens</p><p>desfavorecidos. Embora o uso mais comum das TICs (computador e</p><p>rede telemática) seja para entretenimento (fenômeno semelhante à TV,</p><p>porém com maior poder de atração, em razão da maior interatividade),</p><p>para os jovens mais pobres o acesso à informática pode ser o melhor,</p><p>senão o único, caminho para a recuperação e a consolidação de uma</p><p>escolarização problemática e para o ingresso no mercado de trabalho.</p><p>Referências bibliográficas</p><p>BELLONI, Maria Luiza (2001a). O que é mídia-educação. Campinas: Autores Associados.</p><p>________ (2001b). “A integração das TIC aos processos educacionais”. In: BARRETO,</p><p>Raquel G. (org.). Tecnologias educacionais e educação a distância: Avaliando políticas e</p><p>práticas. Rio de Janeiro: Quartet.</p><p>BELLONI, Maria Luiza, GOMES, Nilza G. e CARRARO, Dilceane (2007). “Caracterização</p><p>do público jovem das TIC”. Relatório final apresentado ao CNPq.</p><p>BEVORT, Emilie e BRÉDA, Isabel (2001). Les jeunes et l’internet. Paris: Clemi.</p><p>BUARQUE, Cristovam (1999). O que é apartação. São Paulo: Brasiliense.</p><p>CARMO, Hermano (1997). O ensino superior a distância. Lisboa: Universidade Aberta.</p><p>FRIEDMAN, Georges (1979). Ces merveilleux instruments. Paris: Denoël-Gonthier.</p><p>HABERMAS, Jürgen (1973). La technique et la science comme idéologie. Trad. francesa.</p><p>Paris: Denoël-Gonthier.</p><p>MEDIAPRO (2006). A European research project: The appropriation of the new media by</p><p>youth. Bruxelas: European Commission Information Society and Media.</p><p>7</p><p>CIRANDA DE SENTIDOS: CRIANÇAS,</p><p>CONSUMO CULTURAL E MEDIAÇÕES</p><p>Maria Isabel Orofino</p><p>Por uma crise das ideologias diante da reflexividade social</p><p>Este é um texto otimista, apesar de a mídia insistir em nos mostrar</p><p>os tantos conflitos que assombram o mundo contemporâneo e a despeito</p><p>do sentimento de impotência que resulta disso e que muitas vezes nos</p><p>assola. Assistimos todos os dias pela tela da TV a fragmentos dispersos</p><p>de retratos do mundo que falam de: um crescimento contínuo do abismo</p><p>social, pelas vias do atual modelo econômico de capitalismo global;</p><p>crescente exclusão, agora mais visível em continentes inteiros que não</p><p>participam da nova ordem mundial; guerra; armas; estranhamento;</p><p>intolerância; xenofobia; exploração do trabalho, inclusive infantil;</p><p>problemas ambientais; crescimento exponencial do tráfico e do</p><p>consumo de drogas; violência urbana. As leituras muitas vezes precisam</p><p>necessariamente ser nas entrelinhas. Posso mudar de textualidade,</p><p>formato ou gênero, mas o retrato de um mundo torto parece que se</p><p>mantém, seja pelo direito ou pelo avesso do texto que escolho para</p><p>usufruir um pouco daquilo que a mídia contemporânea me oferece para</p><p>o consumo diário.</p><p>Parece que estamos enfrentando dificuldades enormes para</p><p>conseguir construir sociedades viáveis, do ponto de vista do acesso</p><p>igualitário às riquezas materiais e simbólicas e do desenvolvimento</p><p>qualitativo e sustentável. Mesmo assim, este é um texto otimista. Isso</p><p>porque ainda acredito na nossa possibilidade de provocar cada vez mais</p><p>uma crise das “ideologias” por meio de nossa intervenção em processos</p><p>que acelerem e intensifiquem a “reflexividade social”.</p><p>Ao tratar de ideologias, refiro-me àqueles sistemas de pensamento,</p><p>ou ao uso de formas simbólicas que servem para criar ou manter</p><p>relações de dominação, isto é, relações assimétricas, desiguais, injustas</p><p>(Thompson 1990). Quando falo de reflexividade social, quero destacar</p><p>as múltiplas formas de intervenção crítica, na ampla circulação de</p><p>informação, que constantemente desafiam as estruturas, sobretudo as</p><p>simbólicas, que são reproduzidas ou transformadas no contexto sócio-</p><p>histórico (Giddens 1991). Ao enfocar a questão da reflexividade social,</p><p>necessariamente estou me referindo às “mediações”:[1] ou seja, às</p><p>práticas de negociação e produção de sentidos nos cenários midiáticos</p><p>contemporâneos. As mídias de hoje, em especial a grande rede mundial</p><p>de computadores (www) e todas as plataformas de convergência, estão</p><p>muito presentes e provocam uma intensa circulação de significantes e</p><p>significados. Porém, mais do que unívocos e uníssonos, os sentidos</p><p>sociais são cada vez mais conflitantes, negociados e negados, numa</p><p>realidade em que as possibilidades de produção e distribuição se</p><p>amplificam e tudo fica mais acessível à cópia, ao uso e à apropriação.</p><p>Em tempos de YouTube, Google e de internet também a Teoria Crítica</p><p>precisa de renovações e de desafios aos seus clássicos. E precisa</p><p>também da nossa contribuição na identificação daquelas hipóteses que,</p><p>apesar dos pesares e das mudanças em curso, sabiamente se mantêm na</p><p>ordem do dia.</p><p>Um dos desafios que as teorias críticas contemporâneas em estudos</p><p>de comunicação colocam é que a presença das mídias na vida cotidiana</p><p>desempenha um papel fundamental não apenas na reprodução das</p><p>ideologias (como fora amplamente debatido pelas grandes correntes</p><p>clássicas, como a Escola de Frankfurt e o estruturalismo marxista, por</p><p>exemplo), mas também na construção de novos espaços de visibilidade</p><p>abertos a processos de negociação de sentido e de ampliação da</p><p>reflexividade social. Eis aí um novo campo de possibilidades.</p><p>E já que estamos, neste capítulo, problematizando aspectos das</p><p>relações das crianças com os meios, permitam-nos falar de mediações</p><p>como “ciranda de sentidos”, essa característica da cultura</p><p>contemporânea que faz com que precisemos, conscientemente e cada</p><p>vez mais, intervir, ou melhor, “meter o bedelho”.</p><p>A importância dos estudos sobre infância e consumo cultural</p><p>Nos últimos dez anos, com o acelerado desenvolvimento dos</p><p>sistemas digitais, nossa sensação em relação às tecnologias de</p><p>comunicação e informação parece a de estarmos perdidos na selva, no</p><p>breu da noite. Martín-Barbero foi muito generoso e nos ofereceu um</p><p>mapa noturno, já nos anos 80:</p><p>Mapa noturno: um mapa para indagar a dominação, a produção e o trabalho, mas a</p><p>partir de um outro lado: o das brechas, o do consumo e do prazer. Um mapa não</p><p>para a fuga mas sim para o reconhecimento da situação a partir das mediações e</p><p>dos sujeitos. Para mudar o lugar de onde se fazem as perguntas, para assumir as</p><p>margens não como tema, mas como enzima. Porque os tempos não estão para</p><p>sínteses e são muitas as zonas na realidade cotidiana que ainda estão por ser</p><p>exploradas, em cuja exploração não podemos avançar se não tentarmos, sem</p><p>mapas, a menos que seja um mapa noturno. (Apud Canclini et al. 1998, p. 8)</p><p>Há chances de negociação, é certo. Mas o apelo do mercado se</p><p>intensificou e ampliou o fosso entre as possibilidades de consumo. Há</p><p>um gigantesco balcão de ofertas, uma infinidade de itens e peças que</p><p>têm por trás grandes negócios, corporações transnacionais produzindo</p><p>incessantemente uma enorme quantidade de equipamentos eletrônicos</p><p>de todos os tipos, formatos e tamanhos. Como destaca Naomi Klein em</p><p>seu livro No logo:</p><p>A IBM celebra o fato de que sua tecnologia cubra o globo, e certamente o faz, mas</p><p>com freqüência esta presença internacional assume a forma do uso de mão-de-obra</p><p>barata no Terceiro Mundo na produção dos chips e fontes para mover as nossas</p><p>máquinas. Na periferia de Manila, por exemplo, eu encontrei uma garota de 17</p><p>anos que monta drives de CD-ROM para a IBM. Eu disse a ela que estava</p><p>impressionada com o fato de que uma pessoa tão jovem estivesse desempenhando</p><p>um tipo de trabalho assim hi-tech. “Nós montamos computadores”, ela me disse.</p><p>“Mas não sabemos como operá-los.” Esta é uma aldeia global em que algumas</p><p>multinacionais, longe de nivelarem os espaços comunitários com trabalho e</p><p>tecnologia para todos, estão em um processo que mina os países mais pobres para</p><p>atingir seus lucros inimagináveis. (2000, p. xvii)</p><p>Esse mesmo modelo de produção por vezes também faz com que</p><p>nos sintamos pressionados por uma constante obsolescência de</p><p>equipamentos. Há uma crescente “descartabilidade” de produtos e</p><p>também de personagens e celebridades, reais ou ficcionais. É a</p><p>ideologia da vida curta. Muito mais do que memória social, nossa</p><p>cultura contemporânea produz também um acelerado processo de</p><p>esquecimento.[2]</p><p>Vivemos</p><p>amplo,</p><p>que extrapola muito o universo de cada sujeito social, tomado</p><p>isoladamente. É preciso, pois, agir sobre os dispositivos socioculturais,</p><p>analisá-los, compreendê-los, criticá-los e reinventá-los para que novos</p><p>atores possam se integrar aos circuitos culturais contemporâneos de</p><p>modo afirmativo, sem subordinação e em condição de negociação</p><p>autônoma de significações; é preciso definir um quadro de</p><p>conhecimentos teóricos e práticos necessários às diferentes ações de</p><p>mediação cultural preocupadas com a apropriação e a participação</p><p>afirmativa de todos na educação e na cultura.</p><p>Nossos projetos têm, consequentemente, um objetivo abrangente,</p><p>ao mesmo tempo em que buscam ser afirmativos diante das</p><p>problemáticas da sociedade brasileira. De um lado, trata-se de</p><p>compreender as condições socioculturais impostas pela globalização à</p><p>apropriação da informação; de outro, ao mesmo tempo, trata-se de</p><p>construir referências científicas indispensáveis aos projetos de inclusão</p><p>e de participação de crianças e jovens na educação e na cultura em uma</p><p>sociedade marcada por impressionantes desigualdades históricas.</p><p>Em tal contexto, cabia e era preciso pensar nos repertórios</p><p>apresentados às crianças e aos jovens pelos dispositivos culturais</p><p>contemporâneos, bem como no modo como tais repertórios são</p><p>mostrados às novas gerações. Era necessária uma interrogação sobre as</p><p>histórias contadas às crianças nos/pelos dispositivos culturais.</p><p>Seguindo, contudo, as lições de Robert Escarpit, era preciso que tal</p><p>interrogação não se dirigisse apenas aos “objetos culturais”</p><p>desconectados da ordem histórico-cultural em que estão imersos. Ao</p><p>contrário, era preciso vinculá-los aos “fatos” culturais, tomá-los em sua</p><p>complexidade, integrar os processos de significação numa trama</p><p>intrincada de elementos dinâmicos de diferentes naturezas.</p><p>Nesse sentido, nossas pesquisas trabalham com um modelo</p><p>triangular de apropriação da informação, que articula num mesmo</p><p>processo as esferas da produção, da mediação e da recepção cultural,</p><p>sem contudo reduzir uma à outra e considerando suas especificidades e</p><p>demandas particulares. Essa adoção pareceu-nos indispensável para</p><p>escapar a certa espécie de naturalismo cultural que considera os</p><p>processos de significação produzidos pelos sujeitos como um dom, uma</p><p>operação cognitiva pura, mecânica, quase mágica; da mesma forma,</p><p>permitiu-nos escapar ao “essencialismo cultural” que atribui aos objetos</p><p>simbólicos sentidos intrínsecos, independentemente das mediações e</p><p>dos sujeitos sociais. O modelo triangular (produção-mediação-</p><p>apropriação), tomado em perspectiva dinâmica e articulada, permitiu-</p><p>nos, assim, considerar em nossas análises tanto os objetos culturais e</p><p>seus conteúdos, como as diferentes condições de sua recepção e os</p><p>diferentes aspectos dos dispositivos de mediação sociocultural que</p><p>agem nessas relações de produção e de recepção do discurso. Além</p><p>disso, permitiu-nos articular diferentes interesses e pesquisas sobre, por</p><p>exemplo, a literatura para crianças e jovens, as condições de leitura e</p><p>apropriação social e individual dos textos, os novos conceitos de</p><p>dispositivos educacionais e culturais, compatíveis com condições e</p><p>necessidades sempre renovadas de desenvolvimento do “protagonismo</p><p>cultural” como atitude de base diante do mundo histórico e social.</p><p>É, portanto, nesse quadro de preocupações gerais, que concebemos</p><p>e lançamos a Estação Memória, voltada a crianças e jovens. Trata-se de</p><p>um projeto de pesquisa científica e, ao mesmo tempo, da criação de um</p><p>ambiente novo de informação e cultura, de caráter intergeracional,</p><p>constituído por meio da coleta, da organização e da disseminação das</p><p>experiências de vida de pessoas com 70 anos de idade ou mais,</p><p>residentes no bairro de Pinheiros, onde se encontra a Biblioteca Álvaro</p><p>Guerra, que acolhe o projeto. Instalada em cooperação com uma</p><p>biblioteca municipal infantojuvenil, a Estação Memória, como</p><p>laboratório de pesquisa e serviço público gratuito, é mantida pela</p><p>Prefeitura de São Paulo.</p><p>Concebida como recurso de informação e de comunicação</p><p>intergeracional, desde sua implantação, em 1997, a Estação trabalha na</p><p>preparação de condições que tornem possível a comunicação direta e</p><p>indireta entre crianças, jovens e pessoas de idade. As memórias dos</p><p>idosos são, assim, coletadas, registradas, reelaboradas e disseminadas</p><p>por meio de diferentes suportes e linguagens, como fitas cassetes, fotos,</p><p>vídeos, CD-ROMs, textos manuscritos, textos eletrônicos, entre outros.</p><p>São promovidos também encontros que reúnem as mais variadas idades</p><p>para trocas de diferentes naturezas, como debates, passeios pelo centro</p><p>histórico, realização de tarefas comuns, como a criação de um blog.[1]</p><p>A configuração da Estação Memória tem sido marcada por sua</p><p>dupla função de laboratório científico e de serviço público de</p><p>informação e cultura. De um lado, busca-se sistematizar as referências</p><p>teóricas e práticas necessárias a sua criação e a seu desenvolvimento; de</p><p>outro, procura-se realizar uma intervenção direta na cultura, ou seja,</p><p>criar um ambiente intergeracional original e único, tanto no Brasil como</p><p>no exterior, capaz de agir de modo afirmativo na “crise da experiência”</p><p>de que nos fala Benjamin (1993). Em um mundo no qual o consumo se</p><p>tornou critério privilegiado de organização social, a categoria da</p><p>permanência é subestimada e ameaçada. Em decorrência disso, a</p><p>memória, a história, a experiência tendem a ser consideradas somente</p><p>em suas dimensões funcionais e econômicas. A globalização, nesse</p><p>aspecto, tem maltratado a “duração” em todos os seus aspectos. Ela a</p><p>quer enquadrada, subordinada à nova ordem do mundo transformado</p><p>em um grande mercado. A memória nesse quadro tende a se objetivar, a</p><p>se reduzir, a se transformar em produto vendável nos mais diversos</p><p>formatos. Basta olhar como o turismo “vende” os sítios históricos a</p><p>apressados viajantes para ter uma noção clara das transformações por</p><p>que a memória vem passando em nosso mundo.</p><p>Se nossa época vem redefinindo, assim, nossas relações com a</p><p>memória e a história, é preciso tanto compreender as novas definições</p><p>quanto criar novos dispositivos responsáveis por sua produção,</p><p>comunicação e conservação por meio de outras lógicas e de outros</p><p>critérios. Nesse sentido, se o tempo e os espaços tradicionais das</p><p>relações intergeracionais tornam-se cada vez mais raros e</p><p>problemáticos, se os jovens, assim como os idosos, desconfiam dos</p><p>discursos da “experiência” em face de outros discursos, se a própria</p><p>“experiência” mudou de natureza e de estatuto histórico, é preciso rever</p><p>essas condições, para que as novas gerações possam entrar em contato</p><p>com a herança que lhes é devida, apossando-se dela, como condição</p><p>indispensável aos processos de apropriação das informações em geral.</p><p>Como notou J. Bruner (1997), apesar das inovações de todo tipo em</p><p>nossa época, a narração da “experiência” – da sabedoria acumulada e</p><p>refinada pelo tempo – continua sendo indispensável à sobrevivência</p><p>individual e coletiva, à formação das novas gerações e à preparação do</p><p>futuro. É preciso, portanto, trabalhar pela criação de espaços capazes de</p><p>acolher essa espécie singular de memória social; é preciso permitir que</p><p>as novas gerações entrem em contato sistemático, crítico e criativo com</p><p>os repertórios de histórias vividas, a fim de alargá-los, recriá-los, refazê-</p><p>los, articulando-os a outros conteúdos e modalidades culturais</p><p>provindos de outras fontes. É preciso, pois, que as histórias procedentes</p><p>de diferentes origens dialoguem, alimentem-se, afirmem-se e neguem-</p><p>se, num processo fértil e dinâmico que enriquece nossa capacidade de</p><p>compreensão e de construção de sentidos para o mundo.</p><p>Como por toda parte, a sociedade brasileira atual reorganiza sua</p><p>ordem discursiva. As narrativas nascidas da experiência, em geral</p><p>transmitidas em circuitos reduzidos, como, por exemplo, os domésticos,</p><p>perdem espaço e quase sempre prestígio diante de outras manifestações</p><p>discursivas produzidas e veiculadas nas mídias, nas universidades, nas</p><p>escolas, nas bibliotecas, na internet. Desse modo, mesmo</p><p>sob uma permanente pressão de vendas em uma terra</p><p>aparentemente de ninguém, mas comandada por essa entidade</p><p>supostamente abstrata, definida por “mercado”: “compre conosco e</p><p>ganhe o equivalente a $ 50 mil em prêmios: 1 PC multimedia; 1</p><p>camcorder digital; 1 TV 25 polegadas; Hi-Fi stereo; 1 videodisc digital</p><p>etc.”. São inúmeras vantagens que se apresentam diante de nossos olhos</p><p>como se “mercado” não fosse a tradução maior da ideologia do</p><p>capitalismo global que, nas palavras de Zygmunt Baumann, “separa na</p><p>medida em que une” (1998, p. 29). Nós estamos todos em uma mesma</p><p>ordem mundial mas que nos separa cada vez mais em universos</p><p>absolutamente díspares.</p><p>Se, por um lado, a oferta é muita, por outro, as condições de</p><p>consumo são bastante diferenciadas, e a questão do acesso a esses</p><p>equipamentos, sobretudo o computador (PC ou MAC), tem-se tornado</p><p>um dos grandes indicadores dessa segmentação social, desse abismo</p><p>que “separa na medida em que une”.</p><p>Vejam, por exemplo, nos dois depoimentos que selecionei, a que</p><p>ponto chega a ideologia da oferta em confronto com a desigualdade de</p><p>consumo. A primeira é uma fala de Bill Gates, em seu livro The road</p><p>ahead (1995), em que ele defende as vantagens de uma carteira do</p><p>futuro, a wallet PC. A segunda traz o depoimento do menino Jonas,</p><p>morador da favela Chico Mendes, em Florianópolis.</p><p>Bill Gates (p. 17; trad. do autor) tenta persuadir seu público com a</p><p>seguinte defesa:</p><p>O que você traz em sua bolsa hoje? Possivelmente, pelo menos chaves, carteiras de</p><p>identificação, dinheiro, um relógio. Muito possivelmente você também traga</p><p>cartões de crédito, talões de cheque, um livro de endereços, cheques de viagem,</p><p>uma agenda, um bloco de anotações, livros, uma câmera, telefone celular, um</p><p>mapa, um gravador, tickets para um concerto de música, uma calculadora, um</p><p>cartão de entrada eletrônico, um bip, uma bússola, fotografias, talvez um apito bem</p><p>alto para pedir socorro!</p><p>Em muito pouco tempo você vai poder manter tudo isso e ainda mais em um novo</p><p>equipamento que nós chamamos de wallet PC. Um equipamento do tamanho de</p><p>uma carteira e que vai exibir suas mensagens e seus horários, você vai poder</p><p>receber e mandar seus e-mails e fax, monitorar o tempo e as ações da bolsa e</p><p>eventualmente brincar com joguinhos bem sofisticados. Em vez de usar papel-</p><p>moeda, o novo wallet PC vai armazenar dinheiro digital de modo inviolável. Hoje</p><p>o dinheiro não precisa mais ser expresso em papel. Cartões de crédito e fundos</p><p>eletrônicos são trocas de informações financeiras digitais. Amanhã o wallet PC vai</p><p>tornar fácil, para qualquer pessoa, gastar e receber fundos digitais. Seu wallet PC</p><p>vai poder ser conectado ao computador de uma loja e autorizar a transferência de</p><p>fundos sem qualquer troca física de dinheiro. O dinheiro digital será usado em</p><p>transações interpessoais também. Se o seu filho precisar de dinheiro, você</p><p>possivelmente vai soltar digitalmente uma nota de 5 dólares para o wallet PC dele.</p><p>Quando o wallet PC se tornar ubíquo, a gente vai poder eliminar a chatice da</p><p>espera nos aeroportos, nos teatros e cinemas onde as pessoas têm que fazer filas</p><p>para esperar uma identificação ou um ticket. Nos aeroportos, por exemplo, o seu</p><p>wallet PC poderá conectá-lo aos terminais do aeroporto que vão verificar que você</p><p>pagou a sua passagem. Você não vai precisar de chaves ou de cartões magnéticos</p><p>para atravessar as portas (…).</p><p>Que mundo é esse de que Bill Gates fala? Ele já existe? Quem faz</p><p>parte dele? Certamente a família de Jonas, menino morador do bairro</p><p>Chico Mendes em Florianópolis, não faz parte da lista de convidados</p><p>para a festa comercial e de alto padrão de consumo cultural e</p><p>tecnológico que Bill Gates ideologicamente difunde.</p><p>Quando estávamos realizando uma pesquisa sobre consumo cultural</p><p>entre crianças de diferentes níveis socioeconômicos (Girardello e</p><p>Orofino 2002), tivemos a oportunidade de ouvir o depoimento de Jonas,</p><p>que falava com todo o zelo da linha de sua pipa, seu único e mais</p><p>valioso pertence, do qual ele precisava cuidar muito bem para não ser</p><p>roubado a caminho da escola: “Os guris grandes sempre querem roubar</p><p>minha linha. Tenho que esconder embaixo da camiseta, senão eles</p><p>roubam”.</p><p>Pobreza e violência urbana. A realidade de Jonas não é muito</p><p>diferente da de uma grande parcela da população brasileira que vive na</p><p>periferia das grandes cidades. Jonas é um menino de sete anos que mora</p><p>com cinco pessoas em uma casa de papelão na periferia de</p><p>Florianópolis. O salário de seus pais certamente não permite que ele e</p><p>seus irmãos tenham um relógio, uma câmera fotográfica, um aparelho</p><p>de DVD, muito menos um computador. A única televisão que havia na</p><p>casa fora levada embora quando o namorado de sua irmã terminou tudo</p><p>com ela. É quase impossível imaginar que não se tenha nem mesmo um</p><p>aparelho de TV.</p><p>É este o contraste que quero destacar: a realidade social de hoje, em</p><p>que a disparidade nos padrões de consumo cultural ajuda a consolidar</p><p>uma barreira, uma fronteira cada vez maior entre as crianças de níveis</p><p>socioeconômicos distintos.</p><p>Tudo o que ressaltei até aqui pode facilmente ser contestado como</p><p>um modo de percepção da realidade fortemente influenciado pelo</p><p>determinismo econômico e tecnológico. Como se eu estivesse aqui</p><p>defendendo que a criança que não tiver acesso às novas tecnologias de</p><p>comunicação e informação estará inexoravelmente excluída da</p><p>possibilidade de ser feliz. Não acredito que as tecnologias sejam</p><p>determinantes para o acesso à felicidade, até porque o sentido mesmo de</p><p>felicidade não é unívoco, não é fixo; ele é cultural e, portanto,</p><p>diferenciado. E isso já é um exemplo para pensarmos a necessidade de</p><p>estudar o contexto em que o consumo cultural se processa. Esse</p><p>movimento de pensar as comunidades de apropriação e produção de</p><p>sentido torna o quadro de análise e reflexão menos determinista e muito</p><p>mais multifacetado; torna-o complexo.</p><p>Os contextos de recepção e consumo são notadamente</p><p>diferenciados. Em pesquisa com crianças e consumo cultural em</p><p>Florianópolis (Girardello e Orofino 2002), identificamos que os usos</p><p>sociais que as crianças fazem das mídias são extremamente</p><p>diferenciados em razão de suas condições de vida, e que os sentidos</p><p>desse uso não estão diretamente ligados às condições socioeconômicas,</p><p>e sim às questões de qualidade de vida, o que não significa pertencer às</p><p>classes altas. Numa sociedade de exclusão social, as mídias também, de</p><p>certo modo, preenchem espaços de carência, ajudam a recriar relações</p><p>sociais e, como destaca Roger Silverstone (1994), operam na construção</p><p>de uma segurança ontológica em cenários de crescente violência social</p><p>e urbana, de individualismo e de solidão.</p><p>O que os estudos de comunicação e da mídia têm buscado</p><p>demonstrar nos anos recentes, sobretudo com o desenvolvimento dos</p><p>estudos culturais, é que o consumo das mídias se faz no cotidiano e que,</p><p>portanto, as experiências de consumos culturais precisam ser pensadas</p><p>com base na diversidade de cenários e contextos sócio-históricos nos</p><p>quais essas mídias estão inseridas.</p><p>O caminho proposto pelos estudos culturais seria portanto uma</p><p>busca da superação de muitos outros limites já identificados em</p><p>pesquisas anteriores, como: a visão linear estímulo-resposta presente na</p><p>pesquisa dos efeitos; as visões individualistas das pesquisas cognitivas;</p><p>o determinismo econômico debatido pelos estudos de economia política</p><p>dos meios; e ainda o determinismo tecnológico (modelo de McLuhan),</p><p>em que a mídia se torna o centro, a causa, a fonte geradora de todas as</p><p>dinâmicas presentes no complexo e diversificado contexto social.</p><p>Por outro lado, é possível destacar que o risco maior que os estudos</p><p>culturais na área da comunicação enfrentam é a tendência de focar</p><p>excessivamente a esfera do consumo e perder de vista as outras</p><p>dimensões do processo de comunicação. Nesse sentido, as teorias das</p><p>mediações que vêm sendo desenvolvidas na América Latina têm sido</p><p>uma fonte inspiradora para os atuais estudos de comunicação, na</p><p>tentativa de superar visões fragmentárias da comunicação, visando</p><p>captar os nexos entre as diferentes</p><p>etapas de um mesmo conjunto, rumo</p><p>a um entendimento complexo das dinâmicas culturais contemporâneas.</p><p>É sobre a contribuição das teorias latino-americanas das mediações que</p><p>vou falar a seguir.</p><p>A teoria latino-americana das mediações: Sobre a originalidade e</p><p>as suas contribuições</p><p>Quando usei o termo “ciranda de sentidos”, estava querendo brincar</p><p>com o conceito de mediação, que em síntese se refere à circulação de</p><p>significados no cenário social e aos diferentes modos de tradução,</p><p>apropriação e consumo desses sentidos. Mas antes de falar do conceito</p><p>propriamente dito, gostaria de destacar algumas questões sobre a</p><p>comunicação social como campo do conhecimento científico. E aí nós</p><p>vamos encontrar uma outra ciranda. Isso pelo fato de a comunicação</p><p>social ser um campo muito novo, que se caracteriza como uma ciência</p><p>em formação. E também pelo fato de que a história da comunicação</p><p>como ciência é a história de outras disciplinas que não ela própria, um</p><p>somatório de experiências construídas em outros campos. Se pensarmos</p><p>em estudos sobre as relações entre crianças e as mídias, encontraremos</p><p>um elenco de recortes como:</p><p>estudos em psicologia (sejam behavioristas, cognitivistas,</p><p>psicanalíticos ou sociais);</p><p>a sociologia macroestrutural e a economia política, a sociologia</p><p>compreensiva voltada para aspectos interacionistas;</p><p>a crítica literária e as teorias da estética, os estudos da arte, a</p><p>semiologia, a retórica;</p><p>a antropologia e os estudos etnográficos, a teoria da cultura.</p><p>Enfim: que ciranda! Isso dificulta para nós, pesquisadores da</p><p>comunicação social, a delimitação dos problemas, a compreensão da</p><p>multiplicidade de enfoques teórico-metodológicos e a realização das</p><p>escolhas metódicas e técnicas que melhor atendam às perguntas que a</p><p>pesquisa busca responder. Isso também nos deixou uma herança</p><p>absolutamente fragmentária do processo de comunicação, visto que</p><p>grande parte da história dos estudos sobre a mídia privilegia um ou</p><p>outro aspecto de um problema processual maior. Os enfoques tendem ao</p><p>modelo tripartite, que divide o processo de comunicação, centrando-se</p><p>ora na produção, ora na análise do texto, ora no estudo de recepção e</p><p>consumo.</p><p>É aí que as novas teorias latino-americanas que trabalham a relação</p><p>entre comunicação e cultura têm sido muito criativas, na medida em que</p><p>buscam também superar essas dificuldades relativas à herança</p><p>multidisciplinar e fragmentária dos estudos da mídia. Elas nos oferecem</p><p>uma abordagem que enfoca a complexidade dos processos de</p><p>comunicação social por meio do conceito de “mediações”, isto é, em</p><p>sua dimensão de processo social e histórico.</p><p>Jesús Martín-Barbero, cujo trabalho ganhou visibilidade no Brasil</p><p>com o livro Dos meios às mediações (1997), e Guillermo Orozco, que,</p><p>inspirado no trabalho de Martín-Barbero, desenvolveu o “enfoque</p><p>integral da audiência”, são os principais autores dessa corrente. Desde</p><p>os anos 1980 do século XX, há uma série de pesquisadores na América</p><p>Latina que vêm realizando pesquisas inspiradas nas teorias das</p><p>mediações. São estudos que problematizam além das mídias e</p><p>trabalham os processos de relação e interação com os meios em</p><p>diferentes contextos de apropriação.</p><p>A escola é um local de apropriação da mídia. O conteúdo midiático</p><p>a que as crianças e os adolescentes têm acesso é trocado, debatido,</p><p>discutido, confrontado em inúmeras experiências no cotidiano da</p><p>escola, seja no pátio, na cantina, nos corredores, ou mesmo do lado de</p><p>fora dos muros, nas calçadas, antes e depois da aula. A mediação escolar</p><p>é aquela ação institucional planejada de modo participativo pelos</p><p>professores a fim de que a escola tenha um espaço formal para que o</p><p>debate sobre a mídia possa ocorrer de forma sistematizada, para além</p><p>das mediações que informalmente já ocorrem no cenário escolar.</p><p>Em síntese: nós sabemos que a mídia contemporânea é muito mais</p><p>um espaço de ambiguidades do que de dominação coercitiva, como</p><p>denunciava a Teoria Crítica da era do rádio e dos primórdios da TV. Isso</p><p>não exclui, entretanto, a necessidade de mantermos nossa crítica</p><p>permanente ao incessante movimento de oferta de mercadorias que</p><p>insiste em nos dopar com tanta vantagem de produtos descartáveis e</p><p>muitas vezes inúteis.</p><p>O espaço escolar pode e deve intensificar a reflexão crítica sobre os</p><p>conteúdos da mídia e ampliar os espaços de produção e difusão de</p><p>novos modos de significar o mundo com o auxílio das tecnologias que</p><p>esse mesmo perverso mercado coloca à nossa disposição.</p><p>Ampliando a ciranda de sentidos ou intensificando a luta pelo</p><p>significado</p><p>O autor Roger Silverstone (1999, p. 89) descreve a presença da TV</p><p>na vida cotidiana por meio da seguinte ilustração:</p><p>Uma garotinha, que não tem mais que cinco ou seis anos, chega em casa da escola,</p><p>em uma tarde de verão. Ela entra correndo na sala de estar de sua casa na periferia,</p><p>joga a lancheira vazia no sofá, liga a televisão e coloca-se em frente ao aparelho,</p><p>ajoelhada no chão. Depois de alguns minutos, o quintal lhe acena, e para lá ela</p><p>corre. Para o balanço. A televisão, lá dentro, continua ligada. A mãe, de sua</p><p>observação panóptica na cozinha, ao perceber que a garotinha já não mais assiste à</p><p>TV, desliga o aparelho. A menina reage imediatamente e assim que a mãe deixa a</p><p>sala de estar, volta correndo, liga a TV e retorna para seu balanço, onde o áudio do</p><p>aparelho sequer alcança.</p><p>Roger Silverstone, ao narrar-nos essa cena que se passa em uma</p><p>casa de subúrbio na Inglaterra, fala muito mais de um balanço do que de</p><p>uma TV. Com isso, quer nos mostrar outros aspectos da vida social e</p><p>cotidiana que competem com a onipresença dos meios. Ele quer,</p><p>generosa e poeticamente, fazer-nos ver que há muito mais do que</p><p>mídias no cotidiano de todos nós. E, por mais poderosas que sejam,</p><p>parece que hoje o seu feitiço está mesmo se voltando contra o feiticeiro.</p><p>À medida que aumentam as vendas, contraditoriamente se abrem mais</p><p>espaços para as comunidades subalternas, para os sujeitos sociais</p><p>criativos, engajados e sonhadores de um outro mundo possível.</p><p>E a escola, como instituição social, pode desempenhar um papel</p><p>estratégico como espaço de crítica ao consumo social das mídias. Pode</p><p>e deve desempenhar tal papel. Tanto mais presente e consistente for a</p><p>crítica que a escola endereçar às mídias, tanto mais forte será a resposta</p><p>social à sua produção. Por meio de uma “pedagogia dos meios” –</p><p>recepção e produção crítica –, a escola pode trazer contribuições para a</p><p>construção de valores e consciências abertas a oferecer respostas que</p><p>contribuam para o desenvolvimento do consumo cultural reflexivo,</p><p>questionador e educativo, tão importante para a construção de uma</p><p>sociedade cidadã.</p><p>Para concluir, gostaria de destacar os principais argumentos</p><p>apresentados neste texto e fornecer alguns exemplos que possam ajudar</p><p>a visualizar de que modo nossas práticas de mediações podem ser mais</p><p>efetivas com relação às crianças e aos meios de comunicação a que elas</p><p>tenham acesso (ou não).</p><p>1. Ainda acredito na nossa possibilidade de provocar cada vez</p><p>mais uma crise das ideologias a partir de nossa intervenção em</p><p>processos que acelerem e intensifiquem a reflexividade social.</p><p>2. Vivemos sob uma permanente pressão de vendas, em uma terra</p><p>aparentemente de ninguém, mas comandada por essa entidade</p><p>supostamente abstrata, definida como “mercado”.</p><p>3. Se, por um lado, a oferta é muita, por outro, as condições de</p><p>consumo são bastante diferenciadas, e a questão do acesso a</p><p>esses equipamentos, sobretudo o computador (PC ou MAC),</p><p>tem-se tornado um dos grandes indicadores dessa segmentação</p><p>social, desse abismo que “separa na medida em que une”. Daí a</p><p>importância de trabalhar (pesquisar, problematizar) o consumo</p><p>cultural entre as crianças.</p><p>4. Neste sentido, as novas teorias latino-americanas que trabalham</p><p>a relação entre comunicação e cultura têm sido muito criativas</p><p>na medida em que buscam também superar as dificuldades</p><p>relativas à herança multidisciplinar e fragmentária dos estudos</p><p>da mídia. Elas nos oferecem uma abordagem que contempla a</p><p>complexidade dos processos de comunicação social por</p><p>um</p><p>enfoque integral da audiência e da recuperação histórica, do uso</p><p>e do desenvolvimento do conceito de “mediações”.</p><p>Em síntese, o que procurei argumentar aqui é que a pesquisa sobre</p><p>a relação entre os meios de comunicação e as crianças precisa</p><p>necessariamente promover uma virada, um deslocamento, uma</p><p>renovação dos quadros teóricos que nós conhecemos. Se a pesquisa</p><p>sobre comunicação atravessa um momento de questionamentos e</p><p>redirecionamento do foco, de mudança do lugar das perguntas, então</p><p>assim também precisa acontecer com a pesquisa sobre mídias e</p><p>crianças. Nós precisamos levar em conta o fato de que os sentidos</p><p>produzidos pelas crianças são construídos socialmente e que esse</p><p>movimento (do consumo cultural) é um processo complexo e</p><p>multifacetado, em que diferentes instâncias sociais competem entre si:</p><p>as próprias crianças dotadas de suas subjetividades, a família, a cultura</p><p>de bairro, a religião, a escola e as próprias mídias entre si ou em seus</p><p>discursos internos.</p><p>Visto que o cenário do consumo das mídias tem mudado</p><p>substantivamente para as práticas mediadas pelo computador, agora de</p><p>modo mais individualizado do que coletivo (como o modo de recepção</p><p>do rádio e da TV, por exemplo), nossas pesquisas também precisam</p><p>repensar os contextos e modos de apropriação dessas novas tecnologias.</p><p>A questão do computador precisa da nossa intervenção como</p><p>mediadores, no mínimo, por dois motivos: primeiro, pelo fato de que há</p><p>muitas crianças excluídas do acesso a essa nova tecnologia e, segundo,</p><p>porque aquelas que têm acesso estão também expostas a uma gama</p><p>enorme de informações que precisam de uma contínua negociação, uma</p><p>sucessiva problematização, um contínuo diálogo e um permanente</p><p>debate. A worldwide web (www) é hoje um oceano, muito mais vasto do</p><p>que nós poderíamos imaginar, de referências não apenas educativas,</p><p>mas também e muitas delas anti-humanistas e antiéticas.</p><p>O desafio de “meter o bedelho nesta ciranda” é grande e solicita, na</p><p>minha compreensão, a nossa capacidade de luta para que as crianças</p><p>tenham acesso igualitário a essas novas mídias. Não apenas aos meios,</p><p>mas sim (e fundamentalmente) às mediações, ou seja, a um consumo</p><p>reflexivo, pautado pelo diálogo, pelo debate social franco, cada vez</p><p>mais aberto, saudável e democrático.</p><p>Referências bibliográficas</p><p>BAUMANN, Zygmunt (1998). O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.</p><p>CANCLINI, Néstor García (1995). Consumidores e cidadãos: Conflitos multiculturais da</p><p>globalização. Rio de Janeiro: Ed. da UFRJ.</p><p>________ (1998). Culturas híbridas. São Paulo: Edusp.</p><p>CANCLINI, Néstor García et al. (1998). Mapas nocturnos: Diálogos con la obra de Jesús</p><p>Martín-Barbero. Bogotá: Siglo Del Hombre.</p><p>GATES, Bill (1995). The road ahead. Londres: Penguin Books.</p><p>GIDDENS, Anthony (1991). As conseqüências da modernidade. São Paulo: Ed. da Unesp.</p><p>GIRARDELLO, Gilka e OROFINO, Maria Isabel (2002). “A pesquisa de recepção com</p><p>crianças: Mídia, cultura e cotidiano”, Anais da X Reunião Anual da Compós (Associação</p><p>de Programas de Pós-Graduação em Comunicação), Rio de Janeiro.</p><p>JENSEN, Klaus (1998). “Sociedade significante: Uma nova teoria de semiótica social”. In:</p><p>LOPES, Maria I.V. (org.). Temas contemporâneos em comunicação. São Paulo:</p><p>Intercom/Edicom.</p><p>KLEIN, Naomi (2000). No logo. Londres: Picator.</p><p>LOPES, Maria I.V. (org.). (1998). Temas contemporâneos em comunicação. São Paulo:</p><p>Intercom/Edicom.</p><p>MARTÍN-BARBERO, Jesús (1987). La telenovela en la Colombia: Television, melodrama y</p><p>vida cotidiana. Lima: Diálogos de la comunicación.</p><p>________ (1989). Procesos de comunicación y matrices de cultura: Itinerário para salir de la</p><p>razon dualista. México: Ediciones G. Gili.</p><p>________ (1997). Dos meios às mediações: Comunicação, cultura e hegemonia. Rio de</p><p>Janeiro: Ed. da UFRJ.</p><p>OROFINO, Maria Isabel (2005). Mídias e mediação escolar: Pedagogia dos meios,</p><p>participação e visibilidade. São Paulo: Cortez.</p><p>________ (2006). Mediações na produção de TV: Um estudo sobe o “Auto da Compadecida”.</p><p>Porto Alegre: Ed. da PUC.</p><p>OROZCO, Guillermo (1991). Recepción televisiva: Tres aproximaciones y una razón para su</p><p>estudio. México: Universidade Iberoamericana.</p><p>________ (1993a). Recepción televisiva y mediaciones: La construción de estrategias por la</p><p>audiência. México: Universidade Iberoamericana.</p><p>________ (1993b). “Pesquisa de recepção: Investigadores, paradigmas, contribuições latino-</p><p>americanas”. Entrevista a Nilda Jacks. Revista Brasileira de Comunicação, vol. XVI, n.</p><p>1, jan./jun., pp. 22-33.</p><p>________ (1997). Dialética de la mediacion televisiva: La estruturación de estratégias por los</p><p>televidentes. México: Universidade Iberoamericana.</p><p>SILVERSTONE, Roger (1994). Television and everyday life. Londres: Routledge.</p><p>________ (1999). Why study the media?. Londres: Sage.</p><p>THOMPSON, John (1990). Ideologia e cultura moderna: Teoria social crítica na era dos</p><p>meios de comunicação de massa. Petrópolis: Vozes.</p><p>________ (1998). A mídia e a modernidade: Uma teoria social da mídia. Petrópolis: Vozes.</p><p>8</p><p>PRODUÇÃO CULTURAL INFANTIL DIANTE DA</p><p>TELA: DA TV À INTERNET[*]</p><p>Gilka Girardello</p><p>Quando quer que o macaquinho na tela “fale”, a menina</p><p>(5 anos) movimenta o cursor de leve para baixo e para</p><p>cima, para mostrar que o macaco está vivo. Faz a voz</p><p>dele, dizendo: “cadê minha mamãe?”. Ela segue</p><p>inventando a história, arrasta da margem novos</p><p>personagens. Muda de voz a cada um que fala, mexe</p><p>cada um de um jeito diferente, anima o cenário, muda a</p><p>cor do fundo pra fazer o dia virar noite. Ri, canta, fala</p><p>sem parar. Alguém lhe pergunta alguma coisa, e ela não</p><p>parece ouvir, mergulhada na fantasia.[1]</p><p>Este trabalho discute alguns aspectos da relação das crianças</p><p>pequenas com a internet, principalmente no que se refere à produção</p><p>narrativa oral frequentemente realizada por elas enquanto exploram</p><p>sites infantis de entretenimento. Ver as crianças fantasiando em voz alta</p><p>enquanto brincam na frente do computador – atividade que aqui</p><p>chamaremos de “brincadeira narrativa”, entendida como produção</p><p>cultural relativamente autônoma e autoral das crianças –leva-nos a</p><p>retomar um conceito fundamental para pensarmos as práticas culturais</p><p>da infância: a imaginação. A fim de melhor compreendermos o</p><p>processo, buscamos referências provenientes de pesquisas sobre a</p><p>relação entre crianças e televisão, campo teórico já bem mais</p><p>estabelecido, investigando sua aplicabilidade ao novo contexto.</p><p>Recorremos também a experiências de pesquisa empírica que temos</p><p>realizado em diferentes contextos sociais de nossa região.</p><p>Hoje, há computadores conectados à rede em várias pré-escolas</p><p>brasileiras, inclusive públicas, e eles aí já fazem parte do cotidiano das</p><p>crianças. Se a experiência dos jovens e das crianças mais velhas com a</p><p>internet já conta com um considerável volume de pesquisas (tanto na</p><p>educação, quanto na psicologia e na sociologia), os estudos nesse</p><p>campo sobre as crianças mais novas estão ainda engatinhando, com</p><p>perdão do trocadilho. Mesmo nos Estados Unidos e na Europa, onde há</p><p>mais investimentos em pesquisa, quase tudo está ainda por fazer quanto</p><p>à descrição, à crítica e à compreensão do papel das chamadas novas</p><p>tecnologias no cotidiano e na cultura das crianças (Paik 2001). Apesar</p><p>disso, a explosão da internet em todo o mundo tem reflexos até no</p><p>imaginário de crianças que nunca tocaram em um teclado de</p><p>computador, como evidenciou uma pesquisa que fizemos em 2000 com</p><p>crianças de primeira série em Florianópolis: o computador foi indicado</p><p>como uma das “mídias favoritas” por 100% das crianças entrevistadas</p><p>na favela mais empobrecida da cidade.</p><p>Quando se trata de crianças pré-escolares, temos ainda mais chão</p><p>pela frente. No Brasil e em vários outros países, vemos professores e</p><p>estudiosos fazendo-se perguntas semelhantes: é possível usar o</p><p>potencial impressionante da rede para enriquecer a vida das crianças</p><p>pré-escolares? Como mediar a relação entre crianças ainda não</p><p>alfabetizadas e os materiais da internet que podem ser interessantes para</p><p>elas, sem contudo deixá-las vulneráveis ao consumismo e a</p><p>representações</p><p>que consideramos inadequadas? Não será melhor</p><p>simplesmente impedir que as crianças pequenas cheguem perto da</p><p>internet?</p><p>Essas são questões importantes, que têm recebido toda sorte de</p><p>respostas. Papert (1998), por exemplo, defende o uso do computador</p><p>pelas crianças acima de três anos de idade, desde que associado a</p><p>experiências concretas, em que elas tenham livre acesso à</p><p>aprendizagem. Para Haughland (1999), “entre os três e os quatro anos</p><p>de idade, as crianças precisam dispor de tempo à vontade para</p><p>experimentar e explorar o computador, sendo que as crianças menores</p><p>sentem-se confortáveis clicando em diferentes opções para ver o que</p><p>acontece”. Entre os trabalhos brasileiros podemos citar o de Silva Filho</p><p>(2004), para quem a interação das crianças com o computador no</p><p>contexto da educação infantil pode contribuir para a cidadania e a</p><p>ampliação de suas experiências, desde que não se incorra numa</p><p>perspectiva de “aceleração”, em que as múltiplas capacidades das</p><p>crianças sejam cerceadas.</p><p>Com essa discussão mais geral em nosso horizonte, o que tem</p><p>movido nossas pesquisas mais recentes é a busca de entender melhor os</p><p>processos imaginativos que podem ocorrer quando as crianças</p><p>pequenas, particularmente entre os quatro e os seis anos de idade,</p><p>“brincam na internet”. Os resultados dessas pesquisas estão ainda longe</p><p>de ser conclusivos, mas esperamos que valham como convite ao</p><p>diálogo. A razão da ênfase na internet, e especificamente nos sites</p><p>voltados ao público infantil, tem a ver com um dos direitos de mídia das</p><p>crianças reconhecidos em 1995 pela “Carta da Unesco sobre televisão</p><p>para crianças”: o direito à provisão – o direito de as crianças terem à sua</p><p>disposição uma grande variedade de materiais midiáticos</p><p>especificamente planejados para elas (Buckingham 2007). Em meio às</p><p>precariedades materiais das pré-escolas públicas brasileiras, são</p><p>limitados os recursos para compra de livros, softwares e CD-ROMs que</p><p>possam ser utilizados livre e proveitosamente pelas crianças (por</p><p>paradoxal que possa parecer, e por razões nem sempre justificáveis do</p><p>ponto de vista de política educacional, em muitos casos os</p><p>computadores chegam a lugares onde os livros custam a chegar). Daí a</p><p>necessidade do desenvolvimento de critérios para a identificação de</p><p>sites adequados e interessantes para as crianças pequenas, em conjunto</p><p>com a busca pelo melhor aproveitamento do grande potencial da</p><p>internet, partilhando com outras comunidades as produções realizadas</p><p>pelas crianças, em diferentes linguagens.</p><p>O uso do computador pelas crianças pequenas com certeza</p><p>demanda reflexão e critério, e é nesse sentido que este trabalho procura</p><p>contribuir. Mesmo assim, a grande oferta de imagens, textos e narrativas</p><p>de boa qualidade disponíveis na internet – para quem se dispuser a</p><p>procurá-los e contar com parâmetros para embasar tal tarefa – é uma</p><p>justificativa considerável para que as crianças de pré-escola tenham a</p><p>opção de acesso à rede, especialmente naqueles contextos sociais em</p><p>que o acesso a livros e outros materiais pedagógicos é rarefeito.</p><p>Acreditamos que o papel da mediação adulta e o da riqueza simbólica</p><p>do entorno cultural geral, decisivos para a qualidade da recepção</p><p>infantil de televisão, sejam igualmente determinantes da qualidade das</p><p>experiências infantis com a internet, e inseparáveis de qualquer</p><p>consideração crítica que possamos fazer sobre elas. Voltaremos a esse</p><p>tema adiante.</p><p>A televisão e a imaginação infantil: Uma revisão</p><p>Neste primeiro momento, vamos reconduzir o olhar para a tradição</p><p>dos estudos sobre a criança e a televisão, especialmente para o papel da</p><p>recepção de mídia pelas crianças no modo como elas veem a si mesmas</p><p>e com base nisso constroem sua visão de mundo. Procuraremos nos</p><p>manter a uma distância cautelosa tanto de uma indignação de teor</p><p>apocalíptico quanto de uma celebração apriorística das novidades</p><p>tecnológicas, até por entender que essas duas perspectivas extremadas</p><p>acabam se esquivando aos desafios da intervenção: a busca da</p><p>transformação das linguagens, dos conteúdos e dos contextos de</p><p>recepção, assim como a busca do aprimoramento da nossa capacidade</p><p>de compreender o que as crianças pensam e sentem.</p><p>Em pesquisas realizadas de dez anos para cá e embasadas em uma</p><p>ampla bibliografia que inclui centenas de ensaios e pesquisas – da</p><p>filosofia à psicanálise, da psicologia à pedagogia –, identificamos, entre</p><p>as condições favoráveis ao desenvolvimento da imaginação – entendida</p><p>como espaço de invenção e exercício de possibilidades –, o contato com</p><p>a natureza, a vivência artística, a mediação adulta, o tempo livre para a</p><p>brincadeira e o estímulo narrativo. Todos esses fatores poderiam</p><p>teoricamente estar presentes na experiência da criança com a televisão:</p><p>desde um fluxo de programação que permitisse o contato intenso com a</p><p>arte e com a multiplicidade das imagens e histórias locais e universais,</p><p>até um cotidiano em que houvesse tempo e espaço para brincar,</p><p>conversar e, assim, recriar, com reverência ou paródia, os enredos e</p><p>representações apresentados, testando identidades e trajetórias. Esse é o</p><p>horizonte que estabelecemos como referência para uma ação crítica</p><p>sobre a relação da imaginação infantil com a televisão; ele também nos</p><p>parece servir, em linhas gerais, para pensar a relação das crianças com</p><p>os sites infantis disponibilizados pelos adultos na internet.</p><p>Outra conclusão de nossos estudos foi a importância de</p><p>examinarmos de forma integrada os diversos fatores que interagem</p><p>durante a atividade imaginativa da criança que vê televisão. O papel da</p><p>TV depende de como ela se encaixa na vida particular da criança, e da</p><p>qualidade geral de seu cotidiano. Os três fatores desse cotidiano que a</p><p>maioria das pesquisas que analisamos, particularmente no campo da</p><p>psicologia cognitiva, considera mais importantes são: a) a extensão do</p><p>tempo que a criança passa assistindo à TV; b) o tipo de mediação adulta;</p><p>c) o conteúdo da programação.</p><p>O tempo que a criança passa assistindo à TV aparece como</p><p>fundamental na influência do meio sobre a imaginação. Desde as</p><p>primeiras pesquisas empíricas na área, o risco de passividade cognitiva</p><p>esteve sempre associado à audiência intensiva, de muitas horas por dia.</p><p>No caso de padrões de audiência relativamente baixos, a mediação</p><p>adulta aparece como o grande diferencial na qualidade imaginativa da</p><p>experiência da criança com a televisão. A televisão pode mesmo nutrir a</p><p>imaginação se a experiência for guiada por um adulto que ajude a</p><p>criança a contextualizá-la, a assistir à TV criticamente e a compreender</p><p>a linguagem do meio, suas riquezas e limitações. Embora o temor</p><p>quanto à passividade cognitiva das crianças na internet não seja</p><p>frequente em razão do caráter interativo do meio, é evidente que elas</p><p>não devem ser abandonadas diante do computador como se este fosse a</p><p>velha babá eletrônica, agora upgraded. Como forma cultural, a internet</p><p>precisa se inserir em um contexto rico em muitas outras formas</p><p>culturais, para que a experiência imaginativa da criança seja a mais</p><p>plena possível.</p><p>Outro fator que apareceu como determinante na revisão</p><p>bibliográfica aqui sintetizada é o conteúdo daquilo a que a criança</p><p>assiste. Nesse sentido, o maior fator limitante à imaginação pareceu ser</p><p>o excesso de violência realista. Enquanto temas pesados ou dramáticos</p><p>na forma de fantasia são facilmente incorporados ao faz de conta, a</p><p>violência realista parece dificultar a elaboração lúdica interior.</p><p>Enquanto a hipótese predominante na psicologia cognitiva do início dos</p><p>anos 1980 era a de que assistir à televisão tomava o lugar da brincadeira</p><p>imaginativa, pesquisas mais recentes mostraram, ao contrário, que o</p><p>conteúdo da televisão é incorporado à brincadeira, sendo os heróis,</p><p>heroínas e aventuras da TV usados como matéria-prima da vida de</p><p>fantasia das crianças. Isso acontece inclusive durante a própria</p><p>experiência, já que as crianças brincam e devaneiam com frequência</p><p>enquanto assistem à televisão. A validade dessas conclusões também</p><p>para a experiência da internet não pode ser afirmada de modo ligeiro,</p><p>exigindo um</p><p>acúmulo de pesquisas específicas ainda não disponíveis.</p><p>Destacamos, porém, que o devaneio diante da tela da internet foi</p><p>claramente evidenciado nas pesquisas que temos realizado, fazendo</p><p>parte do tipo de brincadeira narrativa que comentaremos adiante.</p><p>A conclusão da revisão bibliográfica que realizamos foi a de que a</p><p>televisão – como meio – por si só não é prejudicial à imaginação da</p><p>criança. Seus efeitos perniciosos ou benéficos dependem de seus</p><p>conteúdos e linguagens, do contexto da recepção e da qualidade geral da</p><p>vida da criança – física, afetiva e poética –, não podendo ser isolados</p><p>dos demais processos socioculturais. Vimos ainda que em situações</p><p>adequadas as crianças imaginam enquanto veem televisão, e depois</p><p>ainda recriam as imagens da TV no seu faz de conta, elaborando-as e</p><p>fazendo-as suas.</p><p>Ao trazermos essa noção para uma abordagem cultural da televisão</p><p>e da internet, poderemos traduzi-la como a necessidade de processos de</p><p>criação imaginativa coletiva, em que as crianças se apropriam das</p><p>histórias e imagens das mídias de tanto brincar com elas, ao mesmo</p><p>tempo em que se apropriam das histórias e estéticas produzidas pelas</p><p>pessoas que vivem a seu redor. Essa brincadeira e essa apropriação</p><p>passam pela simbolização em que a criança é a agente, quer por meio da</p><p>palavra, quer por meio das tantas outras linguagens que utiliza. Quanto</p><p>mais diverso o repertório que receber da cultura e com o qual brincará,</p><p>menor tenderá a ser o risco de empobrecimento cultural, temido por</p><p>tantos autores.</p><p>As mídias eletrônicas e a formação subjetiva das crianças</p><p>Muitos autores, a partir da década de 1980, e seguindo pistas que</p><p>Walter Benjamin já dava 70 anos antes, entendem a televisão e as novas</p><p>tecnologias de comunicação como catalisadoras de profundas mudanças</p><p>subjetivas. Um trabalho pioneiro é o de Turkle (1984), que já naquela</p><p>época discutia a emergência de novas concepções da vida e de si</p><p>mesmas entre as crianças que cresciam diante da tela do computador.</p><p>Outra referência importante foi o trabalho de Kinder (1991), que</p><p>procurava explorar como a televisão e suas convenções narrativas</p><p>afetam a construção do sujeito, abordando o tema, assim como Turkle,</p><p>por meio de um diálogo entre a teoria cognitiva e a psicanálise.</p><p>Levando isso em conta, analisaremos aqui os processos</p><p>complementares, que nos parecem marcados por uma continuidade e</p><p>não por uma ruptura com as práticas culturais infantis consideradas</p><p>mais tradicionais. Já que a mudança cultural se produz na dialética entre</p><p>permanência e mudança, examinar o modo como as crianças de hoje</p><p>transpõem para o espaço virtual as brincadeiras que realizam no tapete</p><p>da sala pode nos ajudar a compreender melhor as novas subjetividades.</p><p>É possível, afinal, que elas guardem mais semelhanças com as</p><p>brincadeiras tradicionais do que percebemos a princípio.</p><p>É claro que a televisão e as novas mídias não são os únicos fatores</p><p>da emergência das novas subjetividades, fato que acentua ainda mais a</p><p>heterogeneidade do processo de formação da identidade. A</p><p>subjetividade da criança vai sendo constituída no cruzamento de</p><p>inúmeros “sistemas de modelização”: “o de sua família, o de seus</p><p>fantasmas próprios, o das narrativas televisivas, o dos desenhos</p><p>animados, da escola, com os grupos sociais no seio dos quais ela é</p><p>inserida” (Guattari 1993, p. 80). Em todos esses sistemas a criança</p><p>encontra narrativas que estimulam de modo diverso seus processos de</p><p>identificação, e em cada um deles ela vai sendo interpelada de modo</p><p>diferente. A cultura das mídias, porém, assume um papel cada vez mais</p><p>importante nesse processo, até porque ela permeia as demais situações –</p><p>familiares, escolares e sociais – pelas quais a criança transita.</p><p>Também a tradição dos estudos culturais assinala a emergência de</p><p>um novo tipo de subjetividade nas novas gerações, como resultado de</p><p>um complexo de múltiplos fatores, entre eles o laço entre a cultura</p><p>juvenil e a mídia globalizada. Com base nas teorias que refletem sobre a</p><p>combinação da identidade tecnológica com a identidade humana, Green</p><p>e Bigum (1995) fizeram a sugestiva provocação de que, se o pânico</p><p>moralista tendia a ver os jovens de hoje como alienígenas (uma cultura</p><p>“diferentemente desenhada, motivada e construída”), por outro lado, os</p><p>adultos é que deveriam cada vez mais ser vistos como alienígenas, já</p><p>que, afinal, é “a juventude que herdará a terra” (p. 213).</p><p>Poderíamos aceitar a provocação dos autores e admitir nossa</p><p>condição de cada vez mais alienus – estranhos, estrangeiros – à</p><p>perspectiva cultural das crianças e dos jovens, o que nem por isso nos</p><p>isentaria de responsabilidade por ela, como se fôssemos forasteiros sob</p><p>a lei de outro país. Escolhemos neste momento, porém, explorar a</p><p>hipótese alternativa de que as crianças, em sua relação com o</p><p>computador e a internet, sigam usando também estratégias culturais</p><p>tradicionalmente associadas à infância, tema ao qual voltaremos</p><p>adiante.</p><p>Essa hipótese se fundamenta na compreensão da natureza</p><p>comunicativa da cultura, tal como a define Martín-Barbero (1997), ou</p><p>seja, em seu caráter de “processo produtor de significações e não mera</p><p>circulação de informações, no qual o receptor não é um simples</p><p>decodificador daquilo que o emissor colocou na mensagem, mas</p><p>também um produtor” (p. 287). Assim como a teoria barberiana das</p><p>mediações propõe que se compreenda a televisão tendo por base as</p><p>instâncias socioculturais nas quais ela ganha sentido, um primeiro passo</p><p>para entender o papel da internet na vida das crianças é procurar</p><p>conhecer suas práticas culturais cotidianas, inclusive o consumo de</p><p>mídias de modo geral.</p><p>Por essa razão, as pesquisas com crianças que temos realizado nos</p><p>últimos anos, juntamente com outros colegas, partem sempre de uma</p><p>aproximação às suas práticas culturais rotineiras, não só com a</p><p>descrição de seu cotidiano – os jogos, brinquedos e brincadeiras, o</p><p>espaço e o tempo de lazer de que elas dispõem –, mas também com a</p><p>exposição das preferências e dos padrões de consumo dos demais</p><p>adultos que com elas convivem no espaço doméstico, tanto em relação a</p><p>TV, rádio, aparelhos de som, videogames, como em relação a revistas,</p><p>livros, jornais, teatro e cinema.[2] Buscamos saber também das</p><p>crianças, por exemplo, de que região vieram seus pais, se elas</p><p>costumam ouvir histórias, o que gostariam de ser quando crescerem, o</p><p>que pediriam se ganhassem uma varinha mágica e uma série de outros</p><p>detalhes ligados à cultura cotidiana e ao imaginário das crianças.</p><p>Numa dessas pesquisas, realizada em 2001 por meio de entrevistas</p><p>com grupos focais de 90 crianças de 1a série, em quatro escolas de</p><p>diferentes contextos sociais de nossa região, encontramos resultados</p><p>muito reveladores do desejo das crianças com relação às mídias: a) em</p><p>todas as escolas, as três mídias indicadas como favoritas por um maior</p><p>número de crianças foram o computador, a televisão e o videogame; b)</p><p>numa escola particular de elite, a maioria das crianças (64%) indicou o</p><p>computador entre suas mídias favoritas, e 100% delas tinham</p><p>computador em casa; c) numa escola de favela, como citamos no início</p><p>do trabalho, a totalidade das crianças (100%) indicou o computador</p><p>entre suas mídias favoritas, mas nenhuma delas (0%) possuía</p><p>computador em casa ou tinha acesso a computadores na escola. Como</p><p>se vê, foram justamente as crianças que não tinham acesso a</p><p>computador as que mais enfaticamente disseram ser esse seu</p><p>equipamento de mídia preferido, o que sugere que o próprio fascínio</p><p>daqueles meninos e meninas pelo computador tenha mais relação com</p><p>as figurações presentes no imaginário social do que com sua experiência</p><p>material.</p><p>Esse dado – o fascínio maior por aquilo que não se conhece de</p><p>perto – pode nos levar a supor que as crianças de quatro anos que, desde</p><p>o primeiro dia na pré-escola, encontram computadores misturados aos</p><p>brinquedos e livros, e que podem usá-los para brincar, talvez sejam</p><p>menos suscetíveis ao fetichismo que cerca o computador no imaginário</p><p>social, inclusive entre seus pais e professores. Podemos esperar assim</p><p>que, com o tempo e a presença</p><p>cada vez maior de espaços multimídia na</p><p>escola, os meios digitais tendam a perder a aura que de certo modo</p><p>ainda os distancia da argila, dos pincéis e dos lápis de cor – distância</p><p>que tende a ser sentida não pelas crianças que brincam, mas pelos</p><p>adultos que planejam as atividades infantis. Para as crianças hoje</p><p>recém-chegadas ao mundo, que não possuem essa perspectiva histórica,</p><p>e que têm acesso fácil ao computador, ele é desde já primordialmente</p><p>um brinquedo, ou um espaço onde se brinca.</p><p>Ao entendermos o computador na vida das crianças pequenas como</p><p>um brinquedo, a seguinte observação de Brougère (2004, p. 250) pode</p><p>nos ajudar a contextualizá-lo:</p><p>O brinquedo não é toda a experiência infantil, mas um objeto entre outros, um</p><p>elemento, e, sem dúvida, não o mais importante, da experiência complexa e</p><p>multiforme que vivem todas as crianças. (...) Qualquer que seja a sua importância,</p><p>o brinquedo está inserido numa experiência complexa nunca isolada, acompanhada</p><p>de discursos diversos, que desembocam em ações heterogêneas.</p><p>Não estamos, é claro, diminuindo a importância da novidade</p><p>representada pelos computadores e pela internet na vida das crianças,</p><p>nem ignorando as consequências que essas mídias trazem para a</p><p>formação da subjetividade desses indivíduos. Apenas privilegiamos aqui</p><p>o entorno cultural em que se insere a presença da internet no cotidiano</p><p>concreto das crianças. Um dos primeiros passos para conhecer esse</p><p>contexto são as representações que as próprias crianças produzem sobre</p><p>o computador e a internet. Com caráter ilustrativo, citamos algumas</p><p>dessas representações, feitas por crianças com as quais temos trabalhado</p><p>em uma pré-escola de nossa região, numa área de classe média baixa,</p><p>onde hoje existe um espaço multimídia, com computadores conectados</p><p>à internet, o que não acontecia na época em que ouvimos os menores.</p><p>Das 25 crianças que conversaram sobre suas práticas culturais, com</p><p>um grupo de jovens pesquisadores sob nossa orientação, 14 disseram</p><p>não saber o que era internet e se abstiveram de maiores comentários.</p><p>Algumas respostas foram as seguintes:</p><p>Internet é uma coisa pra se entrar no computador. Tentei entrar em casa uma vez,</p><p>mas a mãe viu, que saco! Dá de ver desenho. (Menina, 4 anos)</p><p>Só entro com o pai, que eu não sei mexer muito. Mas não sei o que é. (Menina, 6</p><p>anos)</p><p>Sei, já fiz boneca de vestido. (Menina, 5 anos)</p><p>Nunca entrei, mas sei o que é. Conheço uns meninos do pré que vão me mostrar</p><p>como é que faz. (Menina, 6 anos)</p><p>Não sei, mas o meu primo sabe. Ele tem um computador que ele fala sempre que tá</p><p>na internet. É uma coisa muito grande que tá lá nos Estados Unidos. (Menino, 6</p><p>anos)</p><p>Sei. Tem uma sala com desenho de Papai Noel. (Menina, 6 anos)</p><p>Não sei, acho que é dáblio-dáblio-dáblio. Eu uso bastante o site do Sítio, a minha</p><p>mãe usa também. (Menina, 6 anos)</p><p>Selecionamos ainda a resposta de um menino de 6 anos, que nunca</p><p>havia entrado na internet, e que comentou: “É umas coisas de ver no</p><p>computador, aperta o botão e aparece. É como fosse fazer um trabalho”,</p><p>acrescentando em seguida: “No celular eu sei o que pode fazer. Eu</p><p>tenho celular, só pra brincar”. Vemos que mesmo crianças que disseram</p><p>não saber o que era a internet arriscaram comentários reveladores de</p><p>que tinham, sim, uma noção considerável, especialmente para sua idade</p><p>e sua inexperiência prática com a rede.</p><p>À medida que as crianças ganham familiaridade com o computador</p><p>e a internet, é comum que comece a aparecer a brincadeira narrativa – a</p><p>verbalização de um faz de conta diante da tela. A possibilidade que</p><p>sondamos é a de que essa produção – narrativa, imaginativa,</p><p>significativa – seja, em vez de algo novo ou “alienígena”, uma</p><p>manifestação cultural bastante de acordo com os eixos que Sarmento</p><p>(2004) aponta como estruturadores das culturas da infância.</p><p>O primeiro desses eixos é a “interatividade”, no sentido de que as</p><p>crianças aprendem, antes de mais nada, “com as outras crianças, nos</p><p>espaços de partilha comum” (ibidem, p. 23), ou seja, nas culturas de</p><p>pares. É notório o gosto das crianças pequenas pela brincadeira</p><p>compartilhada com amigos, nos sites da internet. Como veremos mais</p><p>adiante, essa atividade tem frequentemente o caráter de brincadeira</p><p>narrativa, em que o discurso lúdico não difere essencialmente do</p><p>discurso da brincadeira tradicional com bonecas ou super-heróis de</p><p>plástico no chão da sala. O segundo eixo é a “ludicidade”: também para</p><p>a criança que se entrega à fantasia diante dos cenários e figuras dos</p><p>sites, aquela atividade é uma coisa muito séria – “entre brincar e fazer</p><p>coisas sérias não há distinção” (ibidem, p. 25); o terceiro é a “fantasia</p><p>do real”, expressão usada pelo autor para descrever “o modo específico</p><p>como as crianças transpõem o real imediato e o reconstroem</p><p>criativamente pelo imaginário” (ibidem). Como esse é o eixo central</p><p>desta nossa argumentação, vamos desenvolvê-lo um pouco mais, por</p><p>meio de referências sobre a ação imaginativa infantil diante das telas da</p><p>televisão que nos podem ajudar a compreender também o que ocorre</p><p>diante do computador.</p><p>O “faz de conta” diante da tela</p><p>O “faz de conta” de que estamos falando aqui não é o da história</p><p>narrada, mas o da brincadeira vivida pelas crianças, enquanto exercitam</p><p>possíveis imagens de seu poder maturado. Como em: “Vamos brincar de</p><p>escola?”, “Vamos. Eu era a professora”. Ou como na recordação de</p><p>Chico Buarque: “Agora eu era o herói, e o meu cavalo só falava</p><p>inglês”. Também para a criança que brinca de faz de conta (“Faz de</p><p>conta que eu era...”), o verbo conjugado no passado conjura na verdade</p><p>o futuro. Deflagra a narrativa, a criação, projeta no futuro tudo o que –</p><p>hoje, para a criança – ela poderá ser um dia: top-model, piloto, guerreiro</p><p>ninja, princesa, mamãe. Ferramenta de acionar o futuro, esse passado</p><p>guia a brincadeira presente. O tempo desse “era uma vez” das crianças</p><p>lembra o “futuro anterior”, explicado assim por Lacan (1992): “O que</p><p>se realiza na minha história não é o passado simples do que foi pois não</p><p>é mais, nem mesmo o passado composto do que tem sido no que eu sou,</p><p>mas o futuro anterior do que eu teria sido para o que eu estou me</p><p>tornando” (p. 194). Narrativa encenada, narração verbalizada, a</p><p>brincadeira de “era uma vez” é um exercício imaginativo por</p><p>excelência.</p><p>Forma de produção narrativa no cotidiano das crianças, inserida no</p><p>espaço da brincadeira, o faz de conta articula passado, presente e futuro,</p><p>bem como as formas e os conteúdos narrativos herdados pela criança</p><p>tanto da tradição oral familiar e comunitária quanto dos meios de</p><p>comunicação de massa. Além disso, essa articulação de heranças é</p><p>atribuição de significação coletiva a elas. Como tal, é uma instância de</p><p>produção incessante, também uma forma de leitura cultural, se tivermos</p><p>em mente a equivalência qualitativa entre o ato de ler e o de escrever, o</p><p>de ouvir histórias e o de contá-las.</p><p>Se não é comum associarmos a narrativa oral à recepção de</p><p>televisão, é ainda menos comum que a associemos à interação com os</p><p>computadores, como se uma forma cultural pertencesse ao passado e a</p><p>outra ao futuro, ambas assim impossibilitadas de conviver. Para ilustrar</p><p>a barreira existente num certo senso comum entre essas duas formas</p><p>culturais, cito uma experiência que vivi alguns anos atrás, quando</p><p>assessorava um projeto de mídias numa escola em Santa Catarina.</p><p>Depois de várias reuniões com a equipe da escola, discutindo as</p><p>relações entre as mídias e as crianças, a coordenadora pediu-me que</p><p>realizasse também com as professoras uma oficina sobre narração de</p><p>histórias, outra área de minha pesquisa. Ela me explicou que estava</p><p>fazendo a solicitação à revelia dos seus superiores, porque, para eles, “o</p><p>projeto de mídias na escola não tem nada a ver com contar histórias”. É</p><p>louvável a compreensão mostrada pela professora, nesse seu pequeno</p><p>ato de quase desobediência civil, de que os computadores não são</p><p>máquinas fadadas a operar num plano asséptico, dominado</p><p>exclusivamente pela razão e apartado do cotidiano e da cultura das</p><p>pessoas. Ela reivindicava para sua equipe uma formação</p><p>verdadeiramente integral, em que o peso do hardware – monitores,</p><p>câmeras, scanners – estivesse a serviço da leveza dos mais diversos</p><p>projetos culturais e pedagógicos com as crianças, incluindo a arte, a</p><p>memória e o cotidiano da comunidade.</p><p>Felizmente, a vitalidade da brincadeira narrativa das crianças</p><p>parece não se intimidar pelos preconceitos dos adultos quanto ao</p><p>significado da tecnologia, especialmente no caso das crianças</p><p>acostumadas a ver os computadores, na escola ou em casa, entre</p><p>estantes de livros ilustrados, bichos de pelúcia e jogos de armar.[3]</p><p>Observemos, por exemplo, a atividade narrativa de uma criança de</p><p>cinco anos – uma menina – cujo processo de apropriação do</p><p>computador tenho acompanhado de forma sistemática desde seus três</p><p>anos de idade. Já familiarizada com a máquina, ela tem desenvoltura</p><p>com o mouse e é capaz de encontrar o site que deseja, previamente</p><p>assinalado por um adulto entre os “favoritos”. Isso ela faz concentrada,</p><p>querendo chegar logo ao pequeno mundo onde vai brincar. Na</p><p>observação transcrita a seguir, por exemplo, a menina experimenta um</p><p>site de entretenimento que lhe tinha sido apresentado naquele dia pela</p><p>pesquisadora e pela bolsista de iniciação científica.</p><p>A tela que se abre colorida à sua frente mostra uma selva cheia de</p><p>bichos – macacos, jacaré, pássaros. A criança clica na figura do macaco,</p><p>arrasta-o até o desenho de um cipó e ali o solta. Enquanto isso, fala</p><p>baixinho, como se fosse o personagem: “Onde tá minha mamãe? Vou</p><p>procurar ela. Ai, ai, ai, que medo de cair daqui. Acho que vou descer.</p><p>Acho que vou pegar uma caroninha. Jacaré, me dá uma caroninha pra</p><p>eu encontrar a minha mamãe?”. A figura do macaco é arrastada mais</p><p>uma vez, até as costas do jacaré. Quando o macaco fala, a menina move</p><p>o mouse fazendo vibrar o cursor em cima da figura, movimentando-a de</p><p>leve para baixo e para cima, para mostrar que o macaco está “vivo”. A</p><p>criação da história prossegue. Ela arrasta novos personagens da</p><p>margem. Muda de voz a cada um que fala, mexe cada um de um jeito</p><p>diferente, anima o cenário, muda a cor do fundo fazendo o dia virar</p><p>noite. Ri, canta. Uma de nós lhe pergunta alguma coisa e ela não parece</p><p>ouvir, imersa na fantasia.</p><p>Outra situação: a menina abre uma janela onde há “figuras para</p><p>colorir”. Mesmo essa atividade tão limitada é acompanhada de um</p><p>fantasiar intenso, de que a fala da criança dá pistas: “Ele tá dormindo,</p><p>vou botar noite” – e com um clique do mouse a menina colore de azul-</p><p>escuro o fundo do desenho. “Os cachorrinhos tão namorando. Ele tem</p><p>muito amor por ela. O fundo vai ser vermelho porque tem muito</p><p>coração”, diz ela enquanto pinta de vermelho o fundo, explicando</p><p>melhor: “de tanto amor que tem”.</p><p>Praticamente todas as telas da internet que a interessam</p><p>transformam-se em cenários de pequenos enredos dramáticos. Em outro</p><p>site de entretenimento, ela encontra uma tela representando o fundo do</p><p>mar, com peixinhos movendo as caudas, um polvo balançando os</p><p>braços, algas flutuando, um galeão afundado. Ela arrasta um dos peixes</p><p>em uma trajetória sinuosa pelo cenário, comentando: “esse petitinho só</p><p>quer nadar...”. Ela coloca o peixinho dentro do navio, e fala: “Tem</p><p>tesouro, porque o navio naufragou, puf, daí caiu o tesouro”. Um tubarão</p><p>grande atravessa o mar, seguido de outro tubarão menor. A menina</p><p>explica: “O tubarão pequeno pega carona com o tubarão maior, que eles</p><p>são parceiros”. A bolsista aponta: “Ó, passou! Perdeu a carona!”. “Não,</p><p>é que eles são amigos”, diz a menina. E “faz a voz” do tubarão grande,</p><p>falando para o pequeno: “Vamos para o país das girafas. Não, o país das</p><p>girafas é muito chato, vamos pro país das águias. Tem um monte de</p><p>países!”, entusiasma-se, referindo-se aos diferentes espaços do site.</p><p>Num outro momento, a menina explora uma tela representando um</p><p>“deserto australiano”, povoado por animais da região, enquanto</p><p>conversa com a bolsista. A criança escolhe um pequeno canguru como</p><p>protagonista da narrativa. Remove-o para o alto de um morro desenhado</p><p>ao fundo da paisagem e vai contando:</p><p>– Ele fica lá, porque aí ele fica longe das hienas.</p><p>– A hiena parou lá, balançando o rabo dela – comenta a bolsista.</p><p>– É que ela é amiga dele. Todas as hienas do mundo são amigas dele. Porque ele</p><p>viajou por todos os lugares do mundo. Ele tinha que sair da casa, senão ele ia ficar</p><p>preso lá pra sempre.</p><p>De repente outro canguru atravessa a cena, como parte do design do</p><p>site.</p><p>– Olha, outro canguru pulando! E esse pula mais alto ainda. Ele tá dizendo</p><p>“senhoras e senhores”! Aqui então eu vou ter que botar plateia pra ver ele. [Arrasta</p><p>vários outros animais para a frente do canguru recém-chegado, formando a</p><p>“plateia”.] É que vai ter um campeonato de cangurus e hienas.</p><p>– Como é o campeonato?</p><p>– É uma corrida. O peixinho também vai ver a corrida.</p><p>Ela coloca o peixe na plateia e parece dar por encerrada a</p><p>brincadeira, querendo no entanto guardar dela um souvenir:</p><p>– Depois a gente pode imprimir?</p><p>Pede, então, para ir “lá fora” pular corda. Talvez a história da</p><p>corrida dos cangurus não tenha terminado exatamente ali; ela terá</p><p>continuidade lá fora, por meio de outros suportes físicos que não as</p><p>imagens deslizantes na tela do computador.</p><p>O caso relatado acima, citado de forma ilustrativa, é um exemplo de</p><p>“brincadeira narrativa”, tal como a define Paley (1990), em um belo</p><p>livro dedicado às histórias que as crianças contam enquanto brincam, na</p><p>pré-escola. Ela não trata de computadores, nós é que estamos nos</p><p>valendo de suas ideias para compreender a brincadeira das crianças na</p><p>internet. Segundo a autora, “a brincadeira e seu indispensável cerne</p><p>narrativo são as realidades fundamentais na pré-escola e na creche”</p><p>(ibidem, p. 6), e a criança que brinca está sempre inventando enredos,</p><p>como um dramaturgo, ou tentando se inserir nos enredos propostos</p><p>pelos colegas. A brincadeira narrativa é uma prática intensamente</p><p>social, nutrindo-se das interrupções, das colaborações e do diálogo que</p><p>ocorrem na cultura da sala de aula. Diz ainda Paley:</p><p>Esse tipo de narração é um fenômeno social, destinado a fluir por entre todas as</p><p>outras atividades e a fornecer a mais ampla oportunidade para respostas</p><p>comunitárias. As histórias não são assuntos privados; a imaginação individual</p><p>acolhe todos os estímulos do ambiente e faz reverberar ideias em torno dos</p><p>ouvintes. (...) É um processo compartilhado, uma instituição cultural primordial, a</p><p>arte social da linguagem. (Ibidem, pp. 21-23)</p><p>Professoras e crianças entregando-se ao jogo narrativo no âmbito da</p><p>educação, ampliam um espaço simbólico comum, pleno de imagens e</p><p>das reverberações corporais e culturais de suas vozes. O mesmo pode</p><p>acontecer quando assistimos à brincadeira de faz de conta da criança no</p><p>espaço virtual, que em certos aspectos é tanto um jogo dramático quanto</p><p>uma brincadeira de casinha num canto do jardim, ou uma aventura no</p><p>tapete com minissuper-heróis de plástico. No computador, no jardim ou</p><p>no tapete, a criança movimenta os bonecos, fala por eles fazendo</p><p>diferentes “vozes”, cria enredos, conflitos, peripécias, desfechos. Como</p><p>entidade suprema que paira sobre o microcosmo dos bonequinhos – de</p><p>pano, plástico ou pixels –, a criança cria e recria o mundo a cada vez</p><p>que brinca – um mundo cheio de personagens, famílias, cidades, rituais</p><p>e culturas – para destruí-lo sem piedade quando se aborrecer ou resolver</p><p>ir brincar de outra coisa.</p><p>Como dissemos acima, essa equivalência entre a brincadeira “real”</p><p>e a virtual só subsiste até certo ponto. Não se pode equiparar, é claro, os</p><p>dois tipos de experiência sensorial; e a experiência tátil – a exploração</p><p>material do mundo – é, como já ensinava Bachelard, um dos principais</p><p>“hormônios da imaginação”. E evidentemente a brincadeira no chão da</p><p>sala ou no pátio permite um envolvimento corporal da criança</p><p>incomparavelmente mais rico do que o da criança sentada diante do</p><p>computador. Esse, contudo, não seria um “problema” da brincadeira</p><p>narrativa com o computador, uma vez que outras atividades</p><p>consideradas bastante valiosas do ponto de vista pedagógico, como</p><p>desenhar ou brincar com</p><p>blocos de armar, também não ensejam grande</p><p>movimentação física.</p><p>As reflexões acima têm um caráter ainda exploratório, para não</p><p>dizer especulativo. Justamente por estarmos todos ainda na primeira</p><p>infância da pesquisa sobre a relação das crianças pequenas com a</p><p>internet, é vital a partilha dos resultados, ainda que parciais, de nossos</p><p>estudos. Sabemos como é produtiva uma área de pesquisa quando suas</p><p>gramáticas e seu estatuto ainda não estão cristalizados, e isso é</p><p>particularmente acentuado no caso dos estudos sobre a internet, um</p><p>objeto que parece mudar de forma a cada semana. Além disso,</p><p>precisamos mesmo correr atrás para compreender o que acontece, já</p><p>que, como vimos, a internet está presente no imaginário das crianças</p><p>mesmo quando elas não têm a experiência concreta do meio.</p><p>Dito isso, podemos listar algumas conclusões necessariamente</p><p>provisórias deste trabalho. O uso do computador pelas crianças</p><p>pequenas é uma questão complexa e que com certeza requer reflexão</p><p>atenta, mas o acesso mediado à internet pode ser uma alternativa para</p><p>garantir-lhes o direito à recepção de materiais culturais especificamente</p><p>projetados para elas, especialmente em contextos sociais em que são</p><p>raros os livros e outros materiais pedagógicos atualizados. Mesmo</p><p>levando em conta as grandes diferenças entre a televisão e a internet,</p><p>muitas das conclusões de pesquisas no campo da recepção televisiva</p><p>infantil podem contribuir para a compreensão da interação infantil com</p><p>a internet. Entre essas contribuições, destaca-se o papel da mediação</p><p>adulta e da riqueza simbólica do contexto cultural imediato.</p><p>Sobretudo, perceber que a brincadeira imaginativa das crianças</p><p>pequenas diante dos computadores segue muitas das mesmas regras da</p><p>interatividade e da fantasia que regem toda brincadeira infantil pode</p><p>infundir nos adultos que convivem com elas a confiança de que não</p><p>estão lidando com seres vindos de outro planeta, dotados de habilidades</p><p>superiores e intimidantes. Pode encorajá-los a investir no</p><p>enriquecimento do ambiente cultural: na multiplicidade narrativa, na</p><p>diversidade das linguagens, na memória, na arte, nas experiências do</p><p>corpo; na qualidade, enfim, do cotidiano das crianças.</p><p>Referências bibliográficas</p><p>BROUGÈRE, Gilles (2004). Brinquedos e companhia. São Paulo: Cortez.</p><p>BUCKINGHAM, David (2007). Crescer na era das mídias. São Paulo: Loyola.</p><p>DUARTE, Rita M.R.; SALGADO, Raquel Gonçalves e JOBIM E SOUZA, Solange (2002).</p><p>“Pesquisando infância e televisão: Algumas considerações teórico-metodológicas”.</p><p>Disponível em CD-ROM: Anais da XXV Reunião Anual da Anped, Caxambu.</p><p>FERREIRA, Adelir Pazetto (2004). “Um espaço multimídia na educação infantil”. Dissertação</p><p>de mestrado. Florianópolis: Udesc.</p><p>GIRARDELLO, Gilka e OROFINO, Isabel (2002). “A pesquisa de recepção com crianças”.</p><p>Anais do XI Encontro da Compós (Associação de Programas de Pós-Graduação em</p><p>Comunicação), Rio de Janeiro.</p><p>GREEN, Bill; BIGUM, Chris (1995). “Alienígenas na sala de aula”. In: SILVA Tomaz T. da</p><p>(org.). Alienígenas na sala de aula. Petrópolis: Vozes.</p><p>GUATTARI, Felix (1993). Caosmose: Um novo paradigma estético. São Paulo: Ed. 34.</p><p>HAUGHLAND, Susan W. (1999). “What role should technology play in young children’s</p><p>learning?”, Young Children, vol. 54, n. 6, pp. 26-31. National Association for the</p><p>Education of Young Children. [Disponível na internet: http://ericeece.org, acesso em</p><p>24/6/2008.]</p><p>KINDER, Marsha (1991). Playing with power: In movies, television and video games. Los</p><p>Angeles: University of California Press.</p><p>http://ericeece.org/</p><p>LACAN, Jacques (1992). Escritos. São Paulo: Perspectiva.</p><p>MARTÍN-BARBERO, Jesús (1997). Dos meios às mediações: Comunicação, cultura,</p><p>hegemonia. Rio de Janeiro: UFRJ.</p><p>PAIK, Haejung (2001). “The history of children’s use of electronic media”. In: SINGER,</p><p>Dorothy e SINGER, Jerome. Handbook of children and the media. Londres: Sage</p><p>Publications.</p><p>PALEY, Vivian Gussin (1990). The boy who would be a helicopter: The uses of storytelling in</p><p>the classroom. Cambridge: Harvard University Press.</p><p>PAPERT, Seymour (1998). “Technology in schools: To support the system or render it</p><p>obsolete”, Milken Exchange on Education Tecnology. [Disponível na internet:</p><p>http://www.mff.org, acesso em 24/6/2008.]</p><p>SARMENTO, Manuel Jacinto (2004). “As culturas da infância nas encruzilhadas da segunda</p><p>modernidade”. In: SARMENTO, Manuel Jacinto e CERISARA, Ana Beatriz (orgs.).</p><p>Crianças e miúdos: Perspectivas sociopedagógicas da infância e educação. Porto: ASA</p><p>Editores.</p><p>SILVA FILHO, João Josué da (2004). “Educação infantil e informática: Entre as contradições</p><p>do moderno e do contemporâneo”. In: SARMENTO, Manuel Jacinto e CERISARA, Ana</p><p>Beatriz (orgs.). Crianças e miúdos: Perspectivas sociopedagógicas da infância e</p><p>educação. Porto: ASA Editores.</p><p>TURKLE, Sherry (1984). The second self: Computers and the human spirit. Nova York:</p><p>Simon & Schuster.</p><p>http://www.mff.org/</p><p>9</p><p>DO MITO DE SÍSIFO AO VOO DE PÉGASO: AS</p><p>CRIANÇAS, A FORMAÇÃO DE PROFESSORES</p><p>E A ESCOLA ESTAÇÃO CULTURA</p><p>Monica Fantin</p><p>Diante de tantos desafios colocados à educação, em que os números</p><p>assustadores do fracasso escolar nos fazem perguntar pelo papel da</p><p>escola na sociedade contemporânea, muitas vezes nos sentimos sem</p><p>condições de intervir para modificar essa realidade escolar. Isso nos</p><p>leva a perguntar se não estaríamos, tal como no mito de Sísifo,</p><p>carregando pedras para a construção de uma outra escola, sem nunca</p><p>alcançar nossos objetivos, fazendo-nos pensar na necessidade de</p><p>mudanças na escola e nos processos de ensino-aprendizagem com base</p><p>nos novos paradigmas colocados pela sociedade contemporânea.</p><p>A escola e os processos de ensino-aprendizagem ali desenvolvidos</p><p>podem ser pensados da perspectiva de suas relações com a sociologia, a</p><p>filosofia, a antropologia, a psicologia, a comunicação; de seus</p><p>profissionais e seus cursos de formação inicial e continuada; dos</p><p>olhares, das vozes e das experiências das crianças, e de muitos outros</p><p>pontos de vista. O olhar escolhido neste artigo parte da relação entre</p><p>criança, cultura, comunicação e educação para pensar outras interações</p><p>possíveis para a prática educativa por meio da Escola Estação Cultura e</p><p>de algumas figuras mítico-poéticas.</p><p>As crianças, as produções culturais e as novas formas de</p><p>sociabilidade</p><p>A idéia que a criança de hoje faz do mundo é,</p><p>forçosamente, diferente da que o próprio pai fazia</p><p>quando criança, mesmo que a diferença seja de poucas</p><p>décadas. A experiência da criança atual habilita-a a</p><p>realizar operações diferentes.</p><p>Talvez até operações mais complexas (...)</p><p>A imaginação é uma função da experiência da criança, e</p><p>a experiência da criança de hoje é mais extensa (não sei</p><p>se se pode dizer mais intensa, mas este é um outro</p><p>problema) do que a criança de ontem.</p><p>Rodari 1982, p. 89</p><p>Escolher esta epígrafe, escrita há mais de 20 anos, para pensar as</p><p>relações entre as pessoas de determinadas épocas e as experiências das</p><p>crianças hoje, sinaliza que um dos indicadores da crise da educação</p><p>pode ser entendido como a distância que separa gerações. E reconhecer</p><p>que nem sempre sabemos como lidar com as crianças de hoje é um</p><p>ponto de partida importante e desafiador para quem trabalha com</p><p>educação superar tal distanciamento.</p><p>Se historicamente o conceito de infância emerge sob o paradigma</p><p>da crise, a crise que atinge a infância hoje, além de cultural, é social e</p><p>política, está inserida num contexto mais amplo. A infância, tal como a</p><p>conhecemos, está mudando em decorrência de inúmeros fatores: o</p><p>contato com diversas manifestações da cultura, a complexidade das</p><p>transformações presentes no mundo contemporâneo em relação à</p><p>cidade, às famílias e às formas de interação com as tecnologias, que</p><p>modificam modos de vida e sinalizam mudanças na maneira de entender</p><p>a infância e o lugar que a criança ocupa nesse cenário em que os</p><p>sistemas de significação e representação cultural se multiplicam.</p><p>Nesta multiplicidade desconcertante e cambiante de identidades</p><p>possíveis e num contexto de possíveis identificações, para refletir sobre</p><p>relação entre infância</p><p>e cultura, seria necessário situar as condições de</p><p>infância e conhecer as crianças, saber como elas pensam, sentem,</p><p>percebem, representam e significam as coisas e os eventos do seu</p><p>cotidiano.</p><p>Pensar as crianças e as condições da infância implica pensar</p><p>aspectos que variam conforme a cultura, a comunidade, a estratificação</p><p>social, a duração histórica, a época e outros elementos que estão</p><p>presentes em diversas culturas. E embora a infância não seja uma</p><p>experiência universal de duração fixa, por ser diferentemente</p><p>constituída conforme as especificidades individuais e contextuais em</p><p>relação a gênero, classe, etnia e história, as diferentes infâncias apontam</p><p>para um aspecto universal, que é sua relação com a cultura mediatizada</p><p>por variadas relações.</p><p>As condições sociais do mundo contemporâneo contribuíram para</p><p>mudanças do estatuto da infância, e hoje observamos a existência de</p><p>várias infâncias na “sociedade global”, em que a desigualdade é o outro</p><p>lado da condição social da infância contemporânea (Pinto 1997). Isso</p><p>reflete também as transformações na escola, na família, nas mídias e</p><p>nos papéis assumidos pelas crianças nos diferentes contextos,</p><p>resultando também na preocupação com os direitos da infância.</p><p>Considerando que o “direito de ter direitos” é uma conquista</p><p>histórica da humanidade, discutir as dimensões dos três p – proteção,</p><p>provisão e participação – relacionadas aos direitos das crianças leva-</p><p>nos a discutir a relação entre criança e adulto por meio das categorias</p><p>identidade, diversidade e autoridade. Problematizando certa perda da</p><p>autoridade do adulto e a inversão de papéis em algumas situações</p><p>educativas, observamos que, às vezes, o discurso que enfatiza os</p><p>direitos das crianças parece deturpado, levando a pensar que a vontade</p><p>da criança deve prevalecer a qualquer custo, o que remete à discussão</p><p>sobre o lugar que o adulto ocupa nessa interação. Se não podemos</p><p>reduzir os direitos de participação das crianças às perspectivas da</p><p>proteção, também não podemos abrir mão da nossa autoridade.</p><p>Afinal, somos nós, os adultos, que na maioria das vezes decidimos</p><p>o que é melhor para as crianças: escolhemos sua educação, suas roupas</p><p>e seus brinquedos (ainda que influenciados por suas opiniões);</p><p>criticamos aquilo de que não gostamos em suas escolhas; permitimos ou</p><p>cerceamos suas decisões. E não deixa de ser irônico que, quando</p><p>acusamos as crianças de se deixarem levar pelos encantos da</p><p>publicidade, chamando-as de consumistas, esquecemo-nos de que o</p><p>poder que elas terão ou não de consumir está em nossas mãos. Nossa</p><p>conduta passa a ser um de seus guias, ainda que pela negação. E embora</p><p>consideremos a capacidade de as crianças participarem e escolherem</p><p>autonomamente, sabemos que tal escolha não escapa inteiramente das</p><p>influências das mídias, dos discursos ideológicos, dos</p><p>condicionamentos e das “múltiplas determinações” do sujeito.</p><p>Diante da complexidade das relações entre cultura, comércio,</p><p>infância e direitos, como podemos decidir se as crianças são</p><p>competentes o bastante para exercer seus direitos? Para Buckingham</p><p>(2002), isso implica discutir e relacionar as idades e as capacidades</p><p>relevantes para a realização dos direitos, aliados a alguns princípios:</p><p>legais, segundo os quais se pensa que as crianças são responsáveis por</p><p>seus atos; epistemológicos ou psicológicos, que propõem a idade em</p><p>que as crianças são capazes de racionalizar como adultos; e políticos,</p><p>que consideram as crianças incapazes de participar do governo e da</p><p>sociedade.</p><p>Tal discussão revela também uma certa confusão entre a ideia da</p><p>criança como cidadã potencial ou real e a da criança como consumidora.</p><p>Em muitos discursos, os direitos que se defendem são os direitos dos</p><p>consumidores, e na prática esse discurso não define as crianças como</p><p>atores sociais ou políticos independentes, nem muito menos lhes oferece</p><p>um controle ou uma responsabilidade democrática: é o discurso da</p><p>soberania do consumidor mascarado como discurso dos direitos</p><p>culturais, diz Buckingham (ibidem).</p><p>Diante disso, Zipes (2002) destaca o “paradoxo entre liberdade e</p><p>homologação da cultura”, dizendo que a liberdade que jovens e adultos</p><p>teriam para discutir ou articular uma oposição à homologação vem</p><p>cooptada e usada pela indústria cultural e hegemônica que representa</p><p>uma falsa liberdade, visto que cada escolha é ditada e prescrita pelo</p><p>mercado desde a infância. Em relação à homologação cultural frequente</p><p>nas relações entre criança e cultura, o autor defende que a dificuldade</p><p>está no fato de as crianças não conseguirem resistir à constante pressão</p><p>que as induz a se conformar com as necessidades do mercado e a não</p><p>saber ou poder conservar sua capacidade crítica e criativa, a menos que</p><p>nós, adultos, consideremos as possibilidades alternativas e</p><p>transformemos nossas práticas culturais cotidianas (ibidem, p. 46).</p><p>Por um lado, “as formas de expressão cultural infantil estão</p><p>estreitamente conectadas aos mutáveis alinhamentos que definem as</p><p>convenções sociais e as práticas de transmissão cultural de uma</p><p>comunidade” (Kline, apud Zipes 2002, p. 25). Por outro lado, as</p><p>crianças se apropriam criativamente dos bens e dos meios de consumo e</p><p>“o significado que lhes é atribuído não é necessariamente ou</p><p>completamente uma linha com ética materialista. Das histórias e dos</p><p>símbolos da cultura do consumo as crianças descobrem um próprio</p><p>significado individual” (Seiter, apud Zipes 2002, p. 25).</p><p>Considerando a cultura como um “modo de relação dos homens</p><p>com as coisas do mundo” (Arendt 1997, p. 267), se quisermos saber</p><p>como as crianças se relacionam com as “novas coisas do mundo”,</p><p>precisamos pensá-las interagindo com a cultura a partir das</p><p>transformações da sociedade contemporânea. Nessas interações, as</p><p>produções culturais para a criança podem ser entendidas como uma</p><p>apropriação ativa e uma recriação da cultura pelas crianças,</p><p>constituindo-se em possibilidade de memória e resgate de identidades</p><p>para além dos produtos da cultura destinados à substituição de um</p><p>tempo-espaço que as crianças não possuem mais (Perrotti 1990).</p><p>Diante das transformações dos cenários urbanos e da redução dos</p><p>espaços de áreas ao ar livre para as crianças brincarem, tenta-se</p><p>compensar esse “roubo do espaço real” oferecendo-lhes a possibilidade</p><p>de viver, por intermédio de produtos culturais, aquilo que lhes é negado</p><p>no real, como forma de substituição e consolação, observa Perrotti</p><p>(idem). Mas sabemos que tal perda não pode ser compensada por</p><p>nenhum tipo de produção cultural, por melhor que seja; também não se</p><p>pode aceitar que a produção cultural assuma essa função. Ao contrário,</p><p>a produção cultural “necessita ser memória, resgate da identidade (...)</p><p>Só assim ela se justifica. Enquanto re-fazer, enquanto re-nascer,</p><p>enquanto tensão dialética, processo de superação. Nessas condições, o</p><p>simbólico será alargamento do real e vice-versa. Jamais substituição”</p><p>(Perrotti 1990, p. 26).</p><p>Essa forma de conceber as produções culturais infantis desencadeou</p><p>no Brasil uma série de discussões sobre as produções culturais para</p><p>crianças e sobre as produções culturais infantis feitas por crianças, ou</p><p>seja, a cultura da criança.</p><p>Entendidas como produtos e processos desencadeadores da</p><p>atividade infantil por sua natureza social, as produções culturais para as</p><p>crianças refletem parte do seu cotidiano e de suas formas de</p><p>organização e interação, ao mesmo tempo em que podem,</p><p>hipoteticamente, modificá-los, dependendo do papel que as crianças</p><p>ocupam na dinâmica social.</p><p>Estamos acostumados a pensar a criança como alguém que recebe</p><p>ou não cultura; precisamos passar a pensá-la como alguém que recebe e</p><p>ao mesmo tempo faz cultura. E pensar que a criança participa</p><p>ativamente da cultura, criando e recriando com feições próprias, com</p><p>significados particulares, com funções semelhantes às funções da</p><p>cultura vividas pelo adulto, implica pensar que a criança também é</p><p>criadora de cultura, e pode intervir em todo o processo cultural. Tais</p><p>criações podem ser entendidas como as “produções culturais das</p><p>crianças”. Nessas produções, as crianças interagem</p><p>com as “coisas do</p><p>mundo”, praticando formas especificamente infantis de inteligibilidade,</p><p>representação e simbolização.</p><p>Diversos estudos sugerem que grande parte dessas produções</p><p>culturais das crianças é permeável à cultura das mídias, dados os</p><p>interesses comerciais das grandes corporações de mídia e</p><p>entretenimento. Diante do apelo do consumo de imagens e mercadorias,</p><p>vemos que certos esforços conservadores para proteger noções</p><p>tradicionais de infância são predestinados ao fracasso, pois não</p><p>podemos “proteger” as crianças do conhecimento de mundo que a</p><p>hiper-realidade torna acessível.</p><p>O desconhecimento imobiliza, a simples condenação é insuficiente,</p><p>e a negligência é ineficaz. Assim, precisamos entender essa dinâmica</p><p>em toda sua complexidade e ambiguidade, pois as crianças que vão à</p><p>escola hoje não são como as crianças que fomos, visto que hoje elas são</p><p>crianças telespectadoras, internautas etc., possuindo uma cultura da</p><p>imagem diferente da que tínhamos, e uma cultura digital que promove</p><p>outras formas de interação com o outro e com a cultura.</p><p>É evidente que a televisão, os meios eletrônicos, o computador e</p><p>toda a cultura digital transformaram a vida e a cultura das crianças. Mas</p><p>se pensarmos que a reinterpretação das crianças é ativa e que a cultura é</p><p>algo vivo, o movimento dialético entre permanência-mudança e</p><p>reprodução-criação também permite sua problematização, com rejeição,</p><p>negação ou transformação da herança próxima ou distante.</p><p>O mundo hoje está cada vez mais permeado pelos produtos das</p><p>indústrias das mídias, criando uma arena de significados</p><p>importantíssima para os processos de formação e autoformação. Essa</p><p>arena foge dos limites espaço-temporais da interação face a face e cria</p><p>novas formas de interação entre as pessoas e, consequentemente, das</p><p>pessoas com a cultura, com a natureza e com o mundo, o que faz com</p><p>que as relações das crianças com a criação cultural sejam cada vez mais</p><p>complexas.</p><p>As crianças já nascem imersas num mundo midiático, vivendo com</p><p>extrema naturalidade as mais diversas relações com a tecnologia; apesar</p><p>do desigual acesso a essa realidade, que acabou criando uma nova</p><p>maneira de exclusão, o fato é que outras formas de sociabilidade estão</p><p>sendo possibilitadas. Afinal, é difícil pensar na rede hoje sem considerá-</p><p>la um cenário de ação e um espaço de comunicação, socialização e</p><p>aprendizagem, com o sugere Rivoltella (2003).</p><p>Não podemos negar que os meios eletrônicos e digitais oferecem</p><p>uma referência comum que possibilita diversos tipos de interação entre</p><p>as crianças, mas eles também propiciam um movimento de</p><p>individualização e uma certa pseudossocialização das crianças e da</p><p>nossa sociedade, na medida em que a liberdade da web permite ao</p><p>sujeito “falar” com o amigo virtual do outro lado do planeta, ao mesmo</p><p>tempo em que ele não conhece nem fala com o vizinho que mora ao</p><p>lado de sua casa ou na frente de seu apartamento.</p><p>Para alguns pesquisadores, o grande interesse das crianças pela</p><p>internet e pelas mídias eletrônicas não é só o de “interagir com o</p><p>computador”, e sim o de interagir com outras crianças por meio da</p><p>tecnologia. O que interessa “são os vínculos e não a interatividade (...)</p><p>os meninos de rua todos os dias estão aprendendo a brincar, a ganhar, a</p><p>socializar-se, a armar redes através das mídias” (Flores 2003).</p><p>Assim, na relação da criança com a tecnologia, a atenção que deve</p><p>ser dada não é à tecnologia em si, mas à criança – seu vínculo com as</p><p>formas de cultura e as mediações possíveis. Se o contexto da</p><p>aprendizagem está mudando, ainda há poucos estudos em nosso país</p><p>sobre tecnologias e crianças; considerando que as pesquisas existentes</p><p>são recentes, ainda faltam estudos sobre o sentido da relação das</p><p>crianças com as tecnologias.</p><p>Sabemos que a cultura digital, a diversão virtual e os jogos</p><p>eletrônicos configuram-se em possibilidades concretas de interação, e o</p><p>fato de poderem se tornar uma alternativa de criação cultural com</p><p>experiências de autonomia e diversidade depende dos tipos de jogo, dos</p><p>textos em si e das mediações culturais. Sabemos também que nenhuma</p><p>prática substitui a outra e que a realidade imediata não pode ser</p><p>substituída pela virtual. Ambas estão presentes na cultura infantil</p><p>porque estão presentes na cultura mais ampla, mas a forma com que as</p><p>crianças se relacionam com elas traz certas especificidades.</p><p>As diferentes formas de sociabilidade que as crianças constroem</p><p>interagindo com a cultura envolvem conhecimentos das mais diversas</p><p>áreas e se expressam nas múltiplas linguagens – lúdicas, orais,</p><p>corporais, gestuais, artísticas, plásticas, visuais, musicais – e em tantas</p><p>outras capacidades expressivas e simbólicas que as crianças constroem</p><p>quando brincam e aprendem. Expressam-se também quando elas</p><p>observam o mundo, quando elaboram hipóteses, quando desenham,</p><p>quantificam, escrevem e produzem textos os mais diversos com base em</p><p>suas relações com a cultura dos adultos e com o mundo em que vivem,</p><p>interagindo, direta ou indiretamente, real ou virtualmente, com os</p><p>produtos ou bens culturais não só voltados para a infância.</p><p>Nessa cultura híbrida contemporânea, a heterogeneidade cultural</p><p>revela complexas articulações entre as culturas locais e as novas</p><p>tecnologias, entre as produções artesanais e as industriais. A educação,</p><p>os jogos e as brincadeiras reais e/ou virtuais nas ruas, nos parques e nas</p><p>redes de internet devem ser pensados com base nas novas maneiras de</p><p>sociabilidade possíveis nos diferentes espaços, provocando</p><p>reestruturações e recriações nas formas de interação e de mediação,</p><p>sugerindo novos desafios à escola.</p><p>Afinal, a cultura digital implica uma linguagem que possui</p><p>especificidades, com cortes na linearidade da narrativa tradicional que</p><p>constroem uma nova gramática da recepção, sem começo, meio e fim,</p><p>que faz parte de uma outra construção. São valores diferentes, difíceis</p><p>de qualificar como bons e/ou ruins por uma cabeça iluminista que</p><p>reflete e busca significado. Se eles são estruturantes de um novo tipo de</p><p>infância e sociedade, ainda há muitas perguntas, muitos espaços vazios</p><p>e caminhos que não sabemos no que vão dar.</p><p>Esse processo complexo e permanente de tecnificação da vida</p><p>social, que se caracteriza pelo desenvolvimento das telecomunicações,</p><p>da informática, da automação de serviços, dos robôs, dos satélites e até</p><p>dos eletrônicos usados para o lazer, produz transformações que nos</p><p>atingem sem que muitas vezes nos demos conta disso. Nesse cenário, é</p><p>certo que precisamos redimensionar a discussão a respeito da natureza</p><p>dos “confinamentos” e das “exposições” da infância, do papel da escola,</p><p>dos direitos das crianças e de suas formas de participação.</p><p>Precisamos rediscutir como a escola pode assegurar o contato com</p><p>a diversidade cultural do país e com as novas tecnologias por meio da</p><p>apropriação significativa de conhecimentos, bem como construir</p><p>possibilidades de autoria, produção e participação de crianças e jovens</p><p>na cultura, o que nos leva a debater as mediações necessárias e as</p><p>possibilidades da mídia-educação.</p><p>Mídia-educação e as múltiplas linguagens</p><p>As mídias hoje não só asseguram formas de socialização e</p><p>transmissão simbólica, mas também participam como elementos</p><p>importantes da nossa prática sociocultural na construção de significados</p><p>da nossa inteligibilidade do mundo. Entender as mídias como um</p><p>processo de mediação implica reconhecer que há uma tensão entre o</p><p>tecnológico, o industrial e o social, enfatiza Silverstone (2005). E para</p><p>entender a mídia como forma “visivelmente caleidoscópica e</p><p>invisivelmente ideológica” (p. 18), é necessário avaliar as relações entre</p><p>posse e controle de instituições e significados, acesso, participação e</p><p>representação.</p><p>Afinal, se tais mediações culturais ocorrerem de qualquer maneira,</p><p>uma experiência reflexiva implica a necessidade de mediações</p><p>pedagógicas. A esse respeito, o campo da educação-comunicação tem-se</p><p>preocupado com as mediações escolares e configurado-se como um</p><p>campo teórico-prático muito fértil, e é no contexto da interface</p><p>educação-comunicação que aparece a mídia-educação,</p><p>que tal</p><p>processo seja talvez inevitável, não é inevitável aceitarmos que seja</p><p>atribuída a esses enunciados “organizacionais” uma qualidade por</p><p>princípio superior à dos enunciados “experienciais”, nem que estes</p><p>sejam banidos de nossas instituições culturais. Se aceitarmos essa</p><p>hierarquização abstrata, que está na base das culturas globais</p><p>contemporâneas, correremos o risco de praticar todo tipo de exclusão</p><p>discursiva, de legitimar, com nossas ações e nossas instituições</p><p>mediadoras, o silêncio cultural como categoria constitutiva da vida</p><p>social. Em um mundo em que a memória e o esquecimento são, cada</p><p>vez mais, uma questão de mercado – este decide conteúdos, quem,</p><p>como e com que meios contar a história aos jovens –, torna-se</p><p>necessário criar alternativas discursivas que permitam às novas gerações</p><p>ter acesso às histórias, aos discursos e aos “saberes plurais”, condição</p><p>necessária à produção de conhecimento e cultura verdadeiramente ricos</p><p>e significativos.</p><p>A Estação Memória é, portanto, um projeto que valoriza a polifonia</p><p>cultural, a memória no plural como categorias constitutivas da</p><p>construção da cultura e da história. Seu início deve-se às observações de</p><p>uma senhora idosa, que encontramos um dia no bairro de Pinheiros,</p><p>onde sempre viveu. A televisão mostrava naquele momento uma série</p><p>sobre a constituição de São Paulo no início do século XX, momento em</p><p>que a cidade deixa de ser uma simples encruzilhada entre o norte e o sul</p><p>do país, para tornar-se o grande centro econômico, cultural e intelectual</p><p>que é hoje. Se em 1900 São Paulo contava apenas com cerca de 200 mil</p><p>habitantes, no momento da apresentação da série ela era o núcleo</p><p>principal de uma aglomeração de quase 20 milhões de pessoas, fato que</p><p>transformou a geografia cultural do Brasil e da América Latina.</p><p>Mesmo tendo participado dessa construção impressionante, apesar</p><p>de gostar muito da série televisiva, a senhora não se sentia representada</p><p>pela emissão. Em um tom melancólico, mas ao mesmo tempo crítico e</p><p>afirmativo, ela nos disse mais ou menos isto:</p><p>São sempre as pessoas que viveram nas regiões nobres da cidade que contam a</p><p>história. Nós que vivemos sempre aqui, nos banhados, às margens alagadas do rio</p><p>Pinheiros, nos terrenos que valiam pouco, que plantamos as frutas, os legumes para</p><p>alimentar a cidade, nós que crescemos e trabalhamos aqui, no Baixo Pinheiros,</p><p>nunca contamos as nossas histórias para os outros. Trabalhamos muito, mas</p><p>ficamos sempre em silêncio. Nós também construímos São Paulo, eu, meus</p><p>irmãos, meus parentes e tantos outros, mas isso não é contado em lugar algum. Um</p><p>dia vou escrever um livro.</p><p>Ao final, ficou a impressão de que a boa senhora estava brincando e</p><p>que sabia que nunca escreveria o livro. Mas de qualquer maneira ela</p><p>exprimia uma consciência aguda do drama que a maioria das pessoas de</p><p>diferentes contextos vive hoje no Brasil: o “silêncio cultural” de que</p><p>fala Freire (1982). “Eu trabalho duro” – ela dizia –, “mas não tenho</p><p>direito à palavra”.</p><p>Em outros termos, a boa senhora lamentava que sua “experiência” e</p><p>a do grupo com o qual conviveu durante toda a vida dura de trabalho</p><p>estivessem condenadas ao esquecimento. A cidade, dizia ela, deixara-os</p><p>para trás, preparando-lhes armadilhas implacáveis, dando continuidade</p><p>à sina de seus pais, imigrantes pobres, ligados em geral à terra,</p><p>expulsos, quase sempre por razões econômicas, de seu país de origem,</p><p>situado na Europa, no Oriente Médio, na Ásia e em outros lugares.</p><p>Dessa forma, à medida que a cidade se desenvolvia, que os modos de</p><p>vida se alteravam, dispositivos tradicionais de produção e de</p><p>transmissão da memória iam sendo deixados de lado, substituídos por</p><p>outros incapazes de traduzir e de integrar a experiência desses</p><p>segmentos ao patrimônio simbólico do país. Em consequência, assim</p><p>como a maioria da população brasileira, a velha senhora, que havia</p><p>participado da produção de uma cidade impressionante, estava sem</p><p>ferramentas para contar sua versão dos fatos, para afirmar os valores de</p><p>seu grupo de origem e enriquecer a cultura da cidade. Reduzida à</p><p>condição de consumidora de discursos que a agradavam mas que não a</p><p>representavam, a senhora resistia e aproveitava as tensões e</p><p>descontinuidades existentes entre as ordens discursivas contemporâneas</p><p>para lançar seu desafio: “um dia, vou escrever um livro...”. Talvez ela</p><p>não estivesse brincando; mas, ainda que fosse assim, apontou-nos um</p><p>problema sério e lançou pistas para sua solução. Uma delas, aproximar</p><p>ciência e “experiência” em um projeto comum para agir sobre o silêncio</p><p>cultural. A Estação Memória começava, assim, a existir como espaço de</p><p>negociação de memórias abertas sobre a cidade.</p><p>Criar novos espaços discursivos, capazes de acolher expressões que</p><p>os modos de vida contemporâneos tendem a considerar destituídas de</p><p>importância, registrá-las, comunicá-las, colocá-las em rede, à disposição</p><p>das novas gerações: eis o percurso da Estação Memória. Ao lado da</p><p>história oficial, contada pela escola, pelos livros didáticos, pela mídia,</p><p>pelas narrativas literárias e não literárias, as crianças e os jovens podem,</p><p>ali, ter acesso a formas e conteúdos da “cultura do silêncio” – a</p><p>modalidade de história que, de outro modo, tende a ficar cada vez mais</p><p>oculta em nosso tempo. Com isso, a polifonia cultural é ameaçada, a</p><p>história corre o risco de não ser alimentada pelos tempos vividos da</p><p>“experiência”, e os jovens de não serem mais capazes de entender as</p><p>“vozes do passado” das quais nos fala Thompson (1992). Se a</p><p>globalização torna cada vez mais fácil a nossa circulação pelo planeta, a</p><p>conquista do espaço, ela também cria obstáculos quase intransponíveis à</p><p>plena manifestação da duração, ao instituir a descontinuidade e a</p><p>aceleração temporais como modo de vida. Nessas condições, não</p><p>apenas o passado é ameaçado. Também o futuro, nossa capacidade de</p><p>projeção, de sonhar o que está por vir.</p><p>Um grande número de questões de ordem metodológica e prática</p><p>colocou-se ao lado dessas questões gerais no momento de instalação da</p><p>Estação Memória na biblioteca. Havia uma série de aspectos a</p><p>considerar, tanto em relação à coleta de memórias, sua organização e</p><p>seu tratamento documental, quanto à sua comunicação. Por outro lado,</p><p>havia também questões de gestão do espaço, considerando que este</p><p>desempenha um importante papel na apropriação da informação, e que</p><p>se tratava de criar um ambiente aberto regularmente ao público, com</p><p>ações orgânicas e sistemáticas. Nossos objetivos educativos nos</p><p>impediam de realizar atividades de animação ou oficinas de memória</p><p>um tanto ao acaso, sem condições de avaliar a importância do trabalho</p><p>sistemático no interior dessa “luta pela memória” descrita por Le Goff</p><p>(1994).</p><p>Nessa etapa, portanto, trabalhamos na sistematização de referências</p><p>operatórias que deveriam estar na base da construção do novo espaço.</p><p>Considerávamos que ele não deveria ser nem um centro de memória</p><p>histórica, nem um museu etnográfico, nem uma seção do arquivo</p><p>público, e sim um ambiente de trocas intergeracionais, sendo preciso</p><p>criar referências compatíveis com essa natureza especial, mas sem</p><p>dúvida inscrita em um domínio amplo e multiforme: o da produção da</p><p>memória social.</p><p>No que se refere às ações de coleta, ao mesmo tempo em que houve</p><p>necessidade de conhecer os instrumentos metodológicos da história</p><p>oral, levamos em conta também as experiências metodológicas dos</p><p>antropólogos, dos sociólogos, dos psicólogos, como condição de</p><p>constituição de nossas próprias referências. Definimos que as</p><p>entrevistas seriam realizadas em torno de um tema significativo tanto</p><p>para as pessoas de idade como para os jovens. A escolha do primeiro</p><p>tema foi determinada pelas observações da velha senhora: “memórias</p><p>do Baixo Pinheiros, memórias de vidas, memórias da cidade”. As</p><p>entrevistas seriam organizadas por meio de quatro eixos: infância,</p><p>juventude, idade adulta e maturidade. Definimos também outras</p><p>questões: a idade dos entrevistados – 70 anos ou mais –, o local das</p><p>entrevistas – a casa das pessoas idosas –, a duração e a quantidade das</p><p>sessões – uma sessão ou mais,</p><p>aqui entendida</p><p>como possibilidade de educar para/sobre as mídias, com as mídias e</p><p>através das mídias, por meio de uma abordagem crítica, instrumental e</p><p>expressivo-produtiva.</p><p>Essa perspectiva de mídia-educação implica a adoção de uma</p><p>postura crítica e criadora de capacidades comunicativas, expressivas e</p><p>relacionais para avaliar ética e esteticamente o que está sendo oferecido</p><p>pelas mídias, para interagir significativamente com suas produções, para</p><p>produzir mídias e também para educar para a cidadania.[1] Nesse</p><p>sentido, a mídia-educação na escola propicia formas de participação</p><p>ativa de estudantes em seus percursos de aprendizagens, assegurando o</p><p>“duplo exercício da cidadania”, no sentido da cidadania de</p><p>pertencimento e da cidadania instrumental (Rivoltella 2005, p. 155).</p><p>Dado que a escola vive um processo de ruptura e continuidade com</p><p>o meio, sua intencionalidade educativa deve considerar as</p><p>características do desenvolvimento das crianças, suas competências e</p><p>potencialidades, e ponderar que as formas de interação entre crianças e</p><p>cultura são mediadas pelo conhecimento, pelas produções culturais e</p><p>sobretudo pelas mídias, e que hoje a escola é apenas um dos lugares e</p><p>espaços do saber. Para significar as transformações que vêm ocorrendo</p><p>na sociedade, alguns estudiosos acreditam que é pela perspectiva da</p><p>aprendizagem que poderemos mudar o ensino.</p><p>A aprendizagem – que se configura por ser uma teia de dimensões:</p><p>afetiva, sensorial, simbólica, estética, formal, não formal, informal e</p><p>não circunscrita ao tempo/espaço – está se transformando. E se a</p><p>aprendizagem escolar possui especificidades, pois é uma das únicas que</p><p>dependem de alguém que ensine, há que redimensioná-la, legitimando</p><p>outros tipos de aprendizagens que ocorrem fora da escola. Afinal, hoje o</p><p>saber está em toda parte: na escola, no livro, no professor, no museu, na</p><p>biblioteca, no cinema, na televisão, na internet. E nessa perspectiva, a</p><p>formação precisa ser entendida como formação cultural que envolve o</p><p>amplo repertório imagético, literário, artístico, musical, midiático, das</p><p>mais diversas produções humanas disponíveis.</p><p>Isso implica repensar a escola e redimensionar o espaço da sala de</p><p>aula, ampliando-o para outros espaços de cultura: desde os legítimos</p><p>espaços da cultura considerada erudita, como museus e galerias de arte,</p><p>passando por espaços públicos, como parques e praças, até os espaços</p><p>da cultura de massa, como cinema e televisão. Buscar a diversidade e a</p><p>abertura de fronteiras que o mundo da cultura propicia por meio de uma</p><p>mediação intencionalizada em relação às mídias pode contribuir para</p><p>lançar outros olhares sobre os objetos de estudo no processo escolar.</p><p>Nesse quadro, a mídia-educação pode contribuir para fazer da</p><p>escola um ponto de virada importante na transformação cultural do país,</p><p>se ela começar a desenvolver uma função diferente de seu papel em</p><p>relação às mídias e assumir uma outra disponibilidade para com a</p><p>cultura da comunicação, explorando suas formas e seus conteúdos para</p><p>além do entretenimento, viabilizando uma “reconciliação de linguagens</p><p>e uma transformação das imagens da formação: uma passagem</p><p>inevitável para reconduzir a educação e a escola ao centro da cena”</p><p>(Morcellini 2004, p. 23).</p><p>Convertendo-se em um espaço onde se orientem, critiquem e</p><p>legitimem as aprendizagens extraescolares feitas pelos alunos, a escola</p><p>poderia recuperar um papel relevante no processo educativo, visto que</p><p>hoje certos estudiosos acreditam que alguns meios de comunicação,</p><p>como a televisão, por exemplo, têm um poder de formar valores e</p><p>ensinar maior do que o da escola. Nesse sentido, a escola poderia</p><p>assumir o desafio da alfabetização múltipla, reconhecendo a diversidade</p><p>de fontes, tipos e cenários de aprendizagens, e sobretudo admitindo que</p><p>outras linguagens – além da oral e da escrita – são legítimas e</p><p>fundamentais para a produção, a socialização e a apropriação de</p><p>conhecimentos.</p><p>Além dos estudos, das pesquisas e das experiências que situam a</p><p>importância de trabalhar na perspectiva das múltiplas linguagens, ainda</p><p>há necessidade de políticas públicas em todos os níveis de ensino</p><p>(inclusive na formação de educadores) que apoiem uma alfabetização</p><p>múltipla, enfatizando a expressão em qualquer linguagem e meio. Isso</p><p>permitiria focalizar os mais diferentes tipos de criação escrita, visual,</p><p>musical, corporal e integral na perspectiva de uma recepção e</p><p>apropriação crítica (educar sobre/para os meios), como instrumento</p><p>(educar com os meios) e como produção (educar através dos meios com</p><p>suas linguagens e formas de expressão). Assim, entre outras</p><p>possibilidades, poderíamos formar crianças e jovens leitores, escritores,</p><p>videomakers, locutores de rádio, fotógrafos, cineastas, criadores de sites</p><p>etc., na perspectiva de interpretar criticamente essa realidade</p><p>produzindo cultura e por meio de uma participação ativa.[2]</p><p>Nesse sentido, reconhecer a centralidade das interações e das</p><p>linguagens no processo educativo implica discutir a função cognitiva da</p><p>linguagem, entendendo-a como uma metaeducação que possibilita o</p><p>diálogo com outras áreas. Educar para as linguagens envolve uma</p><p>concepção pedagógica que promove a capacidade de fazer perguntas, de</p><p>elaborar metáforas que sintetizem o conhecimento e de produzir</p><p>definições, como enfatiza Rivoltella.[3] Essa educação também pode</p><p>assegurar aprendizagens que criem outras formas de representação do</p><p>conhecimento numa perspectiva estético-cognitiva das múltiplas</p><p>linguagens.</p><p>As experiências narradas com as múltiplas linguagens podem ser</p><p>tecidas nas escolas, permitindo a construção de outros discursos, como</p><p>criação de “mundos possíveis”. Nessa perspectiva, as versões de mundo</p><p>presentes na arte e na ciência devem constar em uma proposta de</p><p>intervenção pedagógica que considere o fazer, o refletir e o representar</p><p>como momentos fundamentais de um processo ensino-aprendizagem</p><p>que articule ciência, arte e cultura.</p><p>Entre tantos universos que a cultura contemporânea tem</p><p>possibilitado vivenciar, a interação das crianças com as tecnologias tem</p><p>sido objeto de discussão na educação. Questões como a distância entre</p><p>os que têm e os que não têm acesso ao acervo da cultura disponibilizado</p><p>pelas mídias e às possibilidades de recriá-lo criticamente, a inclusão</p><p>digital como possibilidade de transcender os limites utilitaristas e o</p><p>acesso meramente operacional às máquinas e os diversos programas de</p><p>inclusão digital implicam uma inclusão que seja também social, cultural</p><p>e política.</p><p>Assim, a escola não pode deixar de pensar a relação da criança com</p><p>as tecnologias justamente pela possibilidade de refletir, desconstruir,</p><p>descondicionar e potencializar essa relação. Se o computador e outros</p><p>meios existem, seus usos podem ser redimensionados e suas</p><p>apropriações podem ser mais ativas e interativas, consentindo a</p><p>possibilidade de comunicar e expressar de modo reflexivo. Para tal, é</p><p>necessário caracterizar as formas, as condições de acesso e o que isso</p><p>representa às crianças excluídas dessas oportunidades de interação fora</p><p>do contexto escolar. É necessário caracterizar também o objeto, o</p><p>contexto, o papel do adulto, a função do grupo, os programas utilizados,</p><p>bem como problematizar os processos de metacognição envolvidos</p><p>nessa relação.</p><p>Pensar em uma mediação significativa, crítica, sensível e informada</p><p>em relação à cultura das mídias implica pensar em outras possibilidades</p><p>para a prática pedagógica em relação aos “usos da cultura” nos espaços</p><p>educativos. Uma concepção ecológica e integrada de mídia-educação,</p><p>voltada a fazer educação crítica e criadora usando todos os meios e</p><p>tecnologias disponíveis – computador, internet, celular, fotografia,</p><p>cinema, vídeo, livro, CD, DVD, videogames –, integrando-os com a</p><p>corporeidade, a expressividade, o teatro, a dança etc., pode nos ajudar a</p><p>pensar nessas mediações.</p><p>Diante dessa discussão, experiências demonstram que não basta</p><p>assegurar a participação e a autoria de crianças apenas no âmbito da</p><p>produção da cultura; é preciso pensarmos que, para haver significação</p><p>na cultura de crianças, elas</p><p>teriam que interagir de forma relevante com</p><p>os objetos que alimentam o pensar e o fazer na escola e fora dela, com a</p><p>cultura produzida: livros, filmes, programas de televisão, peças de</p><p>teatro, apresentações musicais, mostras de dança, exposições etc.</p><p>Aproximar as crianças de toda essa cultura a fim de instigar seu pensar</p><p>e sua vontade de criar implica analisar todas as interações que a cultura</p><p>possibilita por meio de suas qualidades, de suas possíveis</p><p>intencionalidades e de suas formas de mediação.</p><p>Ao ampliar o repertório cultural das crianças, não podemos abrir</p><p>mão de discutir a complexa questão da qualidade, da construção do</p><p>gosto e do que essas produções significam na sociedade contemporânea.</p><p>Considerar que toda produção cultural pode ser educativa – pois</p><p>educativa não é necessariamente a produção em si, e sim o processo que</p><p>se instaura motivado pelo que ela traz – não é suficiente. Precisamos</p><p>pensar nas mediações e nos critérios para avaliar certas obras que</p><p>escolhemos apreciar, analisar e discutir em situação formativa, pois a</p><p>prática pedagógica sempre envolve intencionalidades.</p><p>Em face disso, se considerarmos a importância do papel das mídias</p><p>e o que elas representam e significam na sociedade contemporânea,</p><p>passaremos a dar-lhes o mesmo valor cultural da literatura e da arte</p><p>dramática, por exemplo. Se as mídias são parte vital da nossa cultura e</p><p>propiciam experiências únicas e importantes, podemos discuti-las com</p><p>base em uma abordagem ecológica de mídia-educação que nos leve a</p><p>pensar em um novo conceito de alfabetização e a imaginar o que</p><p>significa estar alfabetizado no século XXI. Esse novo conceito integra a</p><p>ideia de alfabetização para as mídias, que, no interior da concepção das</p><p>múltiplas linguagens, compreende a interface entre as diversas áreas do</p><p>saber, envolvendo ciência, arte, literatura e “um continuum de</p><p>capacidades correlacionadas a diversas mídias e em relação com a nossa</p><p>experiência cultural total” (Bazalgette 2005, p. 4).</p><p>Enfim, pensar o que significa estar alfabetizado no século XXI</p><p>envolve a perspectiva das múltiplas linguagens, e poderíamos listar três</p><p>eixos que sustentam a abordagem de mídia-educação que enfatizamos:</p><p>cultura (ampliação e possibilidades de diversos repertórios culturais),</p><p>crítica (capacidade de análise, reflexão e avaliação) e criação</p><p>(capacidade criativa de expressão, de comunicação e de construção de</p><p>conhecimentos). A essas três palavras que começam com a letra C,[4]</p><p>acrescento o C de cidadania, configurando então os “4 C” da mídia-</p><p>educação: cultura, crítica, criação e cidadania, que devem estar</p><p>presentes na perspectiva de um trabalho transformador na escola.</p><p>Formação de professores e a Escola Estação Cultura</p><p>No momento em que se discute a reorganização curricular dos</p><p>cursos de licenciatura, é fundamental pensar a mídia-educação nessa</p><p>formação numa perspectiva que diz respeito a um conhecimento social e</p><p>pedagogicamente crítico, instrumental e produtivo sobre a relação</p><p>forma-conteúdo e suas múltiplas linguagens nas diversas áreas de</p><p>conhecimento e também sobre as formas de uso e apropriação das</p><p>tecnologias da informação e comunicação no contexto educativo.</p><p>Afinal, a complexidade que envolve a presença e o uso das tecnologias</p><p>em conteúdos e práticas do sistema educativo precisa estar articulada à</p><p>questão da formação profissional e do novo perfil do educador em sua</p><p>relação com a cultura, com as mídias e com as tecnologias.</p><p>Alguns aspectos dessa formação dizem respeito à formação de</p><p>competências, entendidas como uma sabedoria que pertence ao</p><p>profissional para além do saber (domínio dos conteúdos) e do saber-</p><p>fazer (habilidade técnica) e que envolve a capacidade de decidir sobre o</p><p>conhecimento a utilizar nas diferentes situações. As competências</p><p>necessárias aos professores hoje configuram-se como um saber</p><p>complexo, e a definição de um quadro de referências dessas</p><p>competências sobre os usos das tecnologias da informação e da</p><p>comunicação na prática escolar relaciona-se com algumas</p><p>possibilidades que se podem garantir em níveis organizativo, didático e</p><p>de diálogo com o território.[5]</p><p>Assim, tais aspectos da formação de professores apontam a</p><p>perspectiva de um trabalho que deve estar sintonizado com aquilo que</p><p>será proposto aos estudantes, e deve ser sempre atualizado como</p><p>continuidades e rupturas entre as demandas da escola, da formação e da</p><p>sociedade. Esse processo, longe de ser uniforme, é permeado por</p><p>variáveis que qualificam diferentemente tais experiências – uma vez</p><p>que são mediadas pelas condições de vida em cada contexto específico</p><p>–, que regulam e que qualificam as possibilidades de acesso aos bens</p><p>culturais. Assim, a escola pode ter um papel importantíssimo na garantia</p><p>da igualdade de acesso a esses bens, inclusive por meio da mídia-</p><p>educação, que pode reaproximá-la de alguns desafios da sociedade</p><p>contemporânea; se não pode retornar ao centro da cena, a escola pode</p><p>pelo menos modificar sua imagem e sua credibilidade.</p><p>Se uma das primeiras questões sobre a crise da escola é saber se ela</p><p>tem algum sentido para os alunos e, mais globalmente, para a</p><p>comunidade (Gonet 2007); se “assédio, cerco e envolvimento são</p><p>palavras que definem a nova situação da escola e do ensino em relação</p><p>ao meio circundante” (Tornero 2007, p. 35); e se hoje há uma superação</p><p>das abordagens até agora utilizadas para trabalhar educativamente com</p><p>as tecnologias (Rivoltella 2006, p.244), é comum ouvirmos falar da</p><p>necessidade de novas atitudes da escola em face de tais questões.</p><p>Muitos desses discursos remetem para uma aposta na renovação, na</p><p>inovação tecnológica e na incorporação das tecnologias de informação e</p><p>comunicação (TICs) na escola. No entanto, é importante não perder de</p><p>vista que tais ações só fazem sentido se significarem uma transformação</p><p>da escola e da educação em uma perspectiva cultural, que por sua vez</p><p>está articulada com a perspectiva política, econômica e social.</p><p>Entre as possibilidades de transformações da escola baseadas nas</p><p>dimensões tecnológicas, organizativas e simbólicas, poderíamos nos</p><p>aproximar de uma “pedagogia dos bens culturais” (Laneve 2000) e de</p><p>uma “abordagem culturalista” (“mídias-culturas” de Jacquinot, in:</p><p>Rivoltella 2006, p. 245), que reconhece nas mídias uma relação</p><p>estrutural com a dimensão política. Em tais perspectivas, os níveis de</p><p>aprendizagem trabalhados na escola podem envolver o sentido de</p><p>interação, conhecimento, informação, compreensão, competências,</p><p>construção de si, do outro e do coletivo. Tal trabalho implica diversas</p><p>instâncias e espaços físicos e virtuais, configurando novas</p><p>possibilidades de conhecer fazendo e de aprender cooperando,</p><p>constituindo-se também em espaços sociais onde as crianças teriam a</p><p>possibilidade de explorar suas próprias identidades e seus investimentos</p><p>afetivos sobre o que aprendem.</p><p>Afinal, se a finalidade educativa da escola em relação à</p><p>socialização, à apropriação e à produção de bens culturais envolve o</p><p>conhecimento, a curiosidade, a reflexividade, a fruição, a história e a</p><p>memória e a participação como condições para lidar com os desafios da</p><p>sociedade contemporânea, e se a realidade sociocultural da sociedade da</p><p>comunicação é caracterizada pelo protagonismo das mídias, não</p><p>podemos deixar de considerar essas novas formas de mediação cultural.</p><p>E isso implica trazer essas culturas das mídias para serem</p><p>problematizadas e redimensionadas na escola.</p><p>Nesse sentido, poderíamos reconfigurar o conceito de “escola</p><p>aberta”, imaginar a Escola Estação Cultura e projetá-la em direção à sua</p><p>concepção como um polo irradiador de diferentes possibilidades de</p><p>práticas sociais, culturais, educativas, éticas e estéticas (Fantin 2006a).</p><p>E isso implica pensar estratégias de envolvimento das famílias,</p><p>compreendendo a relação criança-escola-família-comunidade no</p><p>contexto maior da cultura.</p><p>A ideia da Escola Estação Cultura – que entende que a escola</p><p>representa um lugar de encontro e passagem, por onde circulam pessoas</p><p>de diversas gerações, que transitam pelos mais diferentes caminhos da</p><p>cultura – foi inspirada na</p><p>experiência do projeto Estação Memória,</p><p>criado pelo professor Edmir Perrotti.[6] Esse projeto diz respeito a</p><p>buscas de alternativas para as condições históricas de nossa época, e</p><p>pretende ser um espaço cultural de trânsito intergeracional de</p><p>significados.</p><p>Ali, tanto a sabedoria acumulada pelos mais velhos, como a interrogação</p><p>necessária dos repertórios pelos mais novos encontram possibilidade de expressão,</p><p>de interação e de reconhecimento, condição necessária à construção da cultura e</p><p>dos sujeitos que a constituem. (Perrotti 2003)</p><p>Discutindo a necessidade de renovação de paradigmas tradicionais</p><p>em vigor no campo da informação-educação, incapazes de corresponder</p><p>a condições e necessidades educacionais e culturais de nosso tempo, tal</p><p>projeto ocupa-se dos estudos de processos de mediação de informação e</p><p>cultura, tendo formulado o conceito de “dispositivos de informação</p><p>dialógicos”. Partindo da análise de práticas de leitura, e comprometidos</p><p>com a construção de conhecimentos e a produção de significados, tais</p><p>dispositivos integrariam transmissão, mediação e apropriação num</p><p>movimento propiciador de aprendizagens significativas, que</p><p>promovessem novas sociabilidades e a afirmação das identidades.</p><p>Marcado por sua dupla função de laboratório científico e de serviço</p><p>público de informação e cultura, o projeto Estação Memória valoriza a</p><p>polifonia cultural e a memória plural como categorias da construção</p><p>histórica com metodologias que permitem diversas possibilidades de</p><p>comunicação entre crianças, jovens e pessoas de mais idade, a fim de</p><p>registrar suas memórias de diversas formas, “em versão impressa e</p><p>eletrônica, exposições, catálogos temáticos, publicações e também</p><p>através de encontros intergeracionais nos centros históricos, com trocas</p><p>de correspondências, trocas literárias, enfim, todo o tipo de</p><p>comunicação possível (...)” (Perrotti s/d, p. 9).[7]</p><p>Assim, a Escola Estação Cultura, a exemplo da Estação Memória,</p><p>seria marcada pela dupla função de instituição de ensino e também de</p><p>acesso e criação de cultura, valorizando a polifonia das diferentes</p><p>manifestações escolares e artísticas da comunidade, a memória, as</p><p>histórias e a atualização no acesso aos bens culturais. Sendo os</p><p>encontros entre as gerações parte da metodologia do projeto Estação</p><p>Memória, a Escola Estação Cultura também propiciaria outros tipos de</p><p>encontros, para além do encontro pedagógico convencional da sala de</p><p>aula, abrindo-se para perspectivas mais plurais no campo da mídia-</p><p>cultura.</p><p>O fato de a atual estruturação da escola, a cultura escolar e o</p><p>currículo estarem sempre em atraso em relação às linguagens dos</p><p>estudantes representa um fator limitante do papel atribuído a uma</p><p>instituição de ensino. Além disso, a distância muitas vezes abissal entre</p><p>a linguagem dos professores e a dos alunos faz com que a força de</p><p>comunicação recíproca entre eles esteja muito menos clara do que já foi</p><p>no passado e muito menos legitimada. Se no passado a escola era mais</p><p>prescritiva, hoje, em meio a dúvidas e relativizações de todas as ordens,</p><p>quase não se considera mais nada obrigatório, e a escola, como</p><p>referência e espaço de conhecimento e ensino-aprendizagem, vai</p><p>distanciando-se cada vez mais dos desafios da sociedade atual.</p><p>E se a escola nem cumpre a tarefa básica de que falava Condorcet,</p><p>[8] como poderia se transformar numa Estação Cultura? Ao abrir suas</p><p>portas para outras direções além da socialização de conhecimentos, a</p><p>escola permitiria a entrada das mais variadas culturas: a das mídias, a</p><p>das ruas, a clássica, a moderna, a contemporânea em suas mais diversas</p><p>manifestações, e isso pode fazer a diferença.[9]</p><p>A atuação da escola aconteceria em conjunto com organizações</p><p>culturais, associações de pais, professores e moradores, cinematecas e</p><p>universidades (cursos de educação, licenciaturas, comunicação, artes,</p><p>cinema) – e as mídias poderiam aí ser usadas para ampliar as</p><p>possibilidades de expressão das vozes da triangulação criança-escola-</p><p>família. Como espaço para produção de rádios e jornais comunitários,</p><p>vídeos e outros materiais, as salas informatizadas das escolas também</p><p>poderiam ser um local de cultura real e virtual a que a comunidade</p><p>tivesse acesso. Isso pode até parecer ficção quixotesca, quando olhamos</p><p>em volta e vemos a depredação de escolas públicas, quando a res</p><p>publica, em vez de ser entendida como algo que é de todos, é entendida</p><p>como sendo de ninguém. Mas se a comunidade – mais do que ver a</p><p>escola como uma espécie de terra prometida no horizonte, que recua à</p><p>medida que nos aproximamos dela, como diz Bourdieu – visse nesse</p><p>espaço alguma outra possibilidade de acesso, inserção e significação,</p><p>talvez o quadro pudesse ser diferente.</p><p>Assim, imaginar a Escola Estação Cultura pode significar a</p><p>inspiração de que necessitamos para caminhar. Quem trabalha com</p><p>educação trabalha com regras e normas, mas também com desvios e</p><p>transgressões, por isso a importância de imaginarmos outra escola. Uma</p><p>escola que seja “usina de significação”, que transforme a vivência em</p><p>experiência, que seja espaço de interação, aprendizagem, descoberta,</p><p>participação e oportunidade para viver as diferentes dimensões da</p><p>cidadania.</p><p>Do mito de Sísifo ao voo de Pégaso</p><p>Cada mito mostra como uma realidade veio à tona, seja</p><p>ela a realidade total, o Cosmos, ou apenas um</p><p>fragmento: uma ilha, uma espécie vegetal, uma</p><p>instituição humana.</p><p>Eliade 1992, p. 82</p><p>Neste percurso em que passeamos pela infância, pelas produções</p><p>culturais e pelas novas formas de sociabilidade das crianças, visitamos</p><p>possíveis lugares da mídia-educação, das linguagens e da criança na</p><p>escola e na cultura. Enfatizamos que no processo ensino-aprendizagem</p><p>a criança aprende fazendo, cooperando, participando, refletindo,</p><p>sistematizando e simbolizando. Vimos que, na crise da educação vivida</p><p>pela escola, alternando momentos de certeza, promessa e incertezas,</p><p>recuperar sua legitimidade como espaço do saber e construção de</p><p>cultura é um desafio imenso na sociedade contemporânea, e o</p><p>pensamento binário não é capaz de dar conta da complexidade que</p><p>envolve o processo educativo, o que nos levou a pensar noutra relação</p><p>entre ciência, arte, cultura e educação, envolvendo necessariamente um</p><p>trabalho com imaginação, reflexão e criação, dimensões fundamentais</p><p>no processo de formação humana. Nesse sentido, enfatizamos a</p><p>possibilidade da mídia-educação e do trabalho com as múltiplas</p><p>linguagens na formação cultural de crianças e professores, imaginando</p><p>assim a Escola Estação Cultura.</p><p>E já que estamos falando de imaginação, poderíamos representar</p><p>esse percurso com diversas imagens que nos ajudariam a pensar nessas</p><p>possibilidades. Evidenciando um certo potencial inspirador do mito, no</p><p>início do texto, o mito de Sísifo foi utilizado como metáfora para</p><p>representar o papel que por vezes a escola parece assumir nos dias de</p><p>hoje, mas outras imagens poderiam se juntar a essa e nos levar a</p><p>imaginar outras figuras mítico-poéticas para repensar a escola. Afinal,</p><p>“a função mais importante do mito é, pois, ‘fixar’ os modelos</p><p>exemplares de todos os ritos e de todas as atividades humanas</p><p>significativas: alimentação, sexualidade, trabalho, educação etc.”</p><p>(Eliade 1992, p. 82). Diante disso, recuperemos um pouco alguns</p><p>aspectos do mito de Sísifo, problematizando-o pelo olhar de Albert</p><p>Camus.[10]</p><p>Sísifo, rei de Corintos, era conhecido como o homem que, com</p><p>muita manha e arte, lograra a morte, aprisionando-a num calabouço.</p><p>Durante muito tempo, ninguém mais morreu no mundo. Hades e</p><p>Tanatos, então, recorreram a Zeus, que forçou Sísifo a libertar sua</p><p>prisioneira e seguir com eles para o mundo dos mortos, governado por</p><p>Hades. Quando Sísifo se despediu da esposa, pediu secretamente que</p><p>esta não o enterrasse. Nos domínios de Hades, Sísifo passou a se</p><p>lamentar por não ter tido a honra de ser enterrado, argumentando que</p><p>deveria voltar ao mundo dos vivos para tal. Hades permitiu que Sísifo</p><p>voltasse. Mas tal era a paixão de Sísifo pela vida, que ele não retornou</p><p>mais. Passado o tempo, cego e sem força para ludibriar a morte, ele</p><p>recebeu como</p><p>“tarefa” algo que não lhe permitiria um só minuto de</p><p>descanso e impediria qualquer possibilidade de evasão: foi condenado a</p><p>rolar, montanha acima, uma enorme pedra que sempre lhe escapava das</p><p>mãos ao chegar perto do cume. Ele descia pela encosta para retomar a</p><p>pedra e recomeçar sua tarefa sem fim e sem objetivo.</p><p>Considerando que “os mitos foram feitos para que a imaginação os</p><p>anime”, como diz Albert Camus, quando os deuses condenaram Sísifo,</p><p>pensaram que não poderia existir punição mais terrível que o trabalho</p><p>inútil e sem esperanças. Para Camus, Sísifo é um herói, um herói</p><p>absurdo, tanto por seus tormentos quanto pelo desprezo dos deuses, pelo</p><p>ódio à morte e pela paixão pela vida, que lhe valeram esse suplício.</p><p>Assim, ao ver a pedra rolar para o lugar de onde será preciso</p><p>reerguê-la, ele desce novamente e diversas imagens revelam seu rosto,</p><p>que sofre perto das pedras, sendo ele próprio também um pouco pedra.</p><p>Mas ele é consciente de seu destino, pois “onde estaria a pena se cada</p><p>passo sustentasse a esperança de ser bem-sucedido?”. Para Camus,</p><p>Sísifo conhece a extensão de sua condição miserável, e a lucidez que</p><p>deveria produzir seu tormento consome sua vitória. Não existe destino</p><p>que não se supere pelo desprezo. Seu destino-rochedo é sua questão.</p><p>Como num processo de tomada de consciência, o mito remete a um</p><p>trágico e belo momento da consciência: Sísifo é consciente de si, de sua</p><p>própria tragédia, é dono do seu destino e conhece as causas de seu</p><p>suplício. Portanto, construir consciência implica enfrentamento daquilo</p><p>que se encontra ainda inconsciente em nós, e para enxergar a realidade</p><p>não é suficiente não ser cego, é preciso ter o compromisso e a vontade</p><p>de querer abrir as janelas e deixar entrar as luzes.</p><p>Pensando na relação com a escola, algumas analogias são possíveis:</p><p>Sísifo, que, com sabedoria e manha, logrou a morte, pode se assemelhar</p><p>à tarefa da escola quando socializa conhecimentos de forma a haver</p><p>apropriação significativa, a “escola da promessa”, não redentora, mas</p><p>emancipadora do sujeito; Sísifo condenado a rolar pedras sem</p><p>perspectivas e sempre partindo do zero assemelha-se à escola da</p><p>reprodução e da falta de significação, à escola de saberes desarticulados</p><p>e descontextualizados que parecem partir sempre do zero,</p><p>desconsiderando os conhecimentos prévios dos sujeitos, as histórias e as</p><p>interações que eles estabelecem com o mundo da cultura mais ampla</p><p>para além da cultura escolar e da cultura da escola; Sísifo e a tomada de</p><p>consciência e lucidez que produziu tal situação e sua própria tragédia</p><p>podem remeter ao momento em que a escola se repensa, que dialoga</p><p>com o mundo da cultura mais ampla, que se conscientiza do seu papel</p><p>de socializar o saber, de propiciar situações de ensino-aprendizagem que</p><p>envolvam o conhecimento, o saber, o saber fazer, as capacidades de</p><p>relacionar e saber escolher, as tecnologias e os diversos conhecimentos</p><p>necessários para resolver problemas complexos em outros contextos, a</p><p>reflexão, a cooperação e a solidariedade. Escola que, sem perder de</p><p>vista sua história e sua função, abre-se para os desafios da sociedade</p><p>contemporânea.</p><p>Assim, a partir da tomada de consciência de sua tragédia, que</p><p>poderia ser a consciência da falta de legitimidade da escola em cumprir</p><p>sua função nos dias de hoje, representada pelo mito de Sísifo,</p><p>passaríamos para outra imagem mítico-poética, que seria o voo de</p><p>Pégaso.</p><p>Mesmo considerando que toda interpretação empobrece o mito e o</p><p>sufoca, como diz Calvino, “não devemos ser apressados com os mitos; é</p><p>melhor deixar que eles se depositem na memória, examinar</p><p>pacientemente cada detalhe, meditar sobre seu significado sem nunca</p><p>sair de sua linguagem imagística” (1990, p. 16). No entanto, ao</p><p>apresentar as qualidades da escritura, argumentando em favor da leveza,</p><p>Calvino também vai em busca do mito para encontrar uma alegoria da</p><p>relação do poeta com o mundo por meio da figura de Perseu, que, a seu</p><p>ver, ao decepar a cabeça de Medusa, sustenta-se sobre o que há de mais</p><p>leve.</p><p>Perseu era um jovem e esperto guerreiro, que gostava de tentar</p><p>fazer coisas além de suas forças.[11] Um dia, ele decidiu que se</p><p>arriscaria a matar Medusa, uma criatura gigantesca que destruía todos</p><p>os que atravessavam seu caminho. Medusa era o nome de uma das três</p><p>cabeças da górgone que habitavam o corpo do dragão, que possuía patas</p><p>mortais de bronze, asas de ouro e um olhar tão poderoso que</p><p>transformava pessoas em estátuas de pedra.</p><p>Para derrotá-la, Perseu precisaria da ajuda de Atena, que admirava</p><p>sua coragem, e de Hermes, mensageiro dos deuses. Atena pediu que</p><p>Perseu procurasse as ninfas, as jovens mágicas dos rios e lagos, de</p><p>quem ele ganhou sandálias aladas, uma bolsa mágica e um capacete que</p><p>lhe conferia o poder da invisibilidade. Hermes ofereceu-lhe uma lança.</p><p>Atena acompanhou-o pessoalmente em seu desafio. Perseu chegou</p><p>voando, rasgando o céu, e, com sua lança, aplicou um golpe certeiro que</p><p>cortou duas cabeças do monstro; quando estas caíram, uma delas atingiu</p><p>Perseu, fazendo-o perder o equilíbrio, cair no chão e soltar seu capacete,</p><p>deixando-o visível. A tenebrosa Medusa gritou, e Perseu, de costas e</p><p>sem poder olhar, recebeu, de Atena, o escudo feito pelas ninfas, para</p><p>que pudesse se proteger. O escudo brilhava e refletia imagens; com essa</p><p>arma em punho, Perseu desafiou Medusa a olhar para ele; quando ela</p><p>percebeu a armadilha, era tarde: ao ver sua própria imagem refletida, o</p><p>monstro transformou-se em uma enorme estátua. Nesse momento,</p><p>então, da cabeça da górgone começou a sair uma luz dourada e brilhante</p><p>que aos poucos foi tomando uma forma; lentamente, foram surgindo os</p><p>contornos de um maravilhoso cavalo alado, com crina ondulante e</p><p>prateada. Como se fizesse uma reverência, o cavalo alado se aproximou</p><p>de Perseu e Atena, que o chamou de Pégaso.</p><p>Da mesma cabeça, nasceu também o herói Crisaor, que, como</p><p>Belerofontes, era filho de Poseidon, com a diferença de que</p><p>Belerofontes, neto de Sísifo, era mortal. Belerofontes pediu a seu pai</p><p>um cavalo alado, e depois de Perseu tê-lo utilizado, Pégaso foi dado a</p><p>Belerofontes para que o domasse, com a ajuda de um freio de ouro</p><p>presenteado por Atena.</p><p>Assim, da imagem mítico-poética do nascimento e dos possíveis</p><p>voos de Pégaso, poderíamos imaginar a transformação da escola. A</p><p>Escola Estação Cultura poderia fazer voos fantásticos, pois quanto mais</p><p>alto o mirante, maior a visão, e se as asas são necessárias para deslindar</p><p>outras paisagens, as patas seguras também precisam pousar em terra</p><p>firme para contar sobre o que foi visto e construir outras “paisagens</p><p>culturais”.</p><p>Considerando que o nascimento do cavalo alado envolveu diversos</p><p>instrumentos provindos das mais diferentes ajudas, muitas são as</p><p>práticas necessárias para criação ou transformação da escola; neste texto</p><p>falamos de algumas. Mas o curioso dessa analogia é que o cavalo alado</p><p>foi “domado” pelo neto de Sísifo. Essa proximidade familiar pode</p><p>sugerir que nessa “terceira geração”, ou nesse atual momento da escola</p><p>(escola que circula pela promessa, reprodução e incerteza), consciente</p><p>de seus desafios para reconquistar sua legitimidade na sociedade</p><p>contemporânea, ela também poderia ser “domada” no sentido de</p><p>enfrentar seus desafios e se transformar.</p><p>Para Calvino, “é sempre na recusa da visão direta que reside a força</p><p>de Perseu, mas não na recusa da realidade do mundo de monstros entre</p><p>os quais estava destinado a viver, uma realidade que ele traz consigo e</p><p>assume como um fardo pessoal” (1990, p. 17). Assim, o fato de</p><p>imaginarmos outras possibilidades para a escola não significa que não</p><p>vemos os limites da realidade para viabilizar tal proposta, mas, como</p><p>uma tomada de consciência e uma hipótese de transformação, ela se</p><p>torna possível. Transformação na qual o movimento entre rupturas e</p><p>continuidades – a Escola Estação Cultura – poderia construir as rotas</p><p>para novos e velhos voos, propiciando as mais diversas interações das</p><p>pessoas com a cultura, aterrissando em pistas que permitissem outras</p><p>possibilidades para a experiência da significação.</p><p>A Escola Estação Cultura</p><p>pode traduzir os mistérios da ação de</p><p>ensinar circunscrita no tempo-espaço, recuperando certas práticas e</p><p>atualizando determinadas questões que vão revelando uma</p><p>complexidade crescente e multifacetada colocada pela sociedade</p><p>contemporânea. Para entender e interpretar esses desafios apresentados,</p><p>há que saber ver e ouvir as diversas vozes com que se manifestam: nas</p><p>escutas dos dilemas silenciosos das salas de aula – vazias e repletas de</p><p>sujeitos e “objetos” que buscam o saber, o ensinar, o aprender, a autoria,</p><p>o prazer, a sedução, a emoção, a dúvida, o encontro, a vida; nas pistas</p><p>para os diálogos com as imagens das mídias em seus programas/filmes;</p><p>nos estardalhaços da cultura de massas; nas interações com a</p><p>amplificadora rede da internet; nas telas do cinema, da televisão, dos</p><p>videogames, dos computadores, dos celulares; nos rumores das casas;</p><p>nos brilhos coloridos e nos movimentos contínuos das ruas; na beleza e</p><p>nos ensinamentos da natureza; na emoção das artes e na espantosa</p><p>capacidade humana de criar, interagir e se relacionar. Enfim, buscar</p><p>pistas para pensar uma escola que construa outras opções e que, na</p><p>educação para a cidadania, contemple outras possibilidades para a</p><p>participação das crianças na cultura.</p><p>Escola que pode ir além da “ciência da educação” e da “arte de</p><p>ensinar”. Nessa aproximação entre arte e ciência, na singularidade da</p><p>“arte de ensinar”, o professor pode assemelhar-se ao artista que constrói</p><p>artesanalmente cada momento de sua obra, a aula, como encontro</p><p>pedagógico e sistema de relações; na “ciência de educar”, o professor</p><p>pode assemelhar-se ao cientista na ação diligente de sua pesquisa, na</p><p>apuração de seu olhar e na criação de suas intervenções.</p><p>Na “ciência da educação”, o professor cientista observa a realidade,</p><p>elabora hipóteses acerca de sua prática, de sua aula e das possibilidades</p><p>e potencialidades de seus alunos. Professor cientista que domina o saber</p><p>teórico, que necessita de elementos teórico-metodológicos para o</p><p>exercício rigoroso de observar, refletir, avaliar, planejar. Professor</p><p>cientista que planeja sua ação e que a acompanha com a reflexão.</p><p>Professor cientista que faz as perguntas desveladoras de sua prática/aula</p><p>e revela outras tantas. Cientista que estuda a prática para recriá-la.</p><p>Cientista que pesquisa, constrói conhecimentos e saberes. Professor</p><p>cientista que faz ciência da educação.</p><p>Na “arte de ensinar”, o professor artista, ao dar as tintas em sua</p><p>obra – que é a aula –, mistura cores, busca tonalidades, altera nuanças,</p><p>carrega nas tintas, varia nas pinceladas fortes, fracas, diluídas, suaves e</p><p>delicadas, sutis e evidentes, revelando traçados, pontos, linhas.</p><p>Desvelando sombras, desenhando perspectivas, desnudando linguagens,</p><p>acentuando a luminosidade, vai criando sua obra singular. Professor</p><p>artista que tece os fios da aula inserida numa tessitura e trama maior,</p><p>que é a do tecido sociocultural, que desata nós, amarra outros, afrouxa</p><p>alguns pontos, aperta outros para dar a consistência exata, na medida</p><p>certa da leveza suficiente do movimento, com o cuidado de não</p><p>endurecer demais, a ponto de sua rigidez impedir os movimentos, nem</p><p>de afrouxar muito, para não deixar buracos na trama tecida pelo</p><p>encontro pedagógico. Professor artista que esculpe corpos e mentes com</p><p>instrumentos e ferramentas culturais do conhecimento, da arte, da</p><p>sensibilidade e da emoção, que inicialmente o faz na presença da</p><p>referência para a apropriação, o questionamento e a superação.</p><p>Referência viva, refletindo sua própria luz, implicando nova</p><p>organização e reconstrução da obra, que é dinâmica e que possui beleza</p><p>e estrutura próprias. Referências que precisam ser historicizadas, aulas</p><p>que também possuem histórias; recuperá-las é fundamental para</p><p>apropriar-se do percurso, projetando outras perspectivas. Professor</p><p>artista que ouve e rege uma orquestra com a qual precisa estar</p><p>sintonizado para ouvir seus ritmos, seus diferentes sons e acordes.</p><p>Professor artista que se equilibra na dança e no movimento de suas</p><p>aulas. Professor artista que representa diferentes papéis nas suas</p><p>histórias, que capta o instante quando registra, fotografa, filma.</p><p>Professor artista que busca o belo e nessa busca constrói e esculpe seu</p><p>talento.</p><p>Assim, na “ciência da arte de ensinar”, resguardadas as devidas</p><p>proporções, unir o professor cientista ao professor artista num mesmo</p><p>movimento pode revestir de beleza a prática pedagógica escolar,</p><p>desvelando e ampliando referenciais pessoais e culturais, simbolizando,</p><p>experienciando, pesquisando, expressando, comunicando ideias e</p><p>sentimentos, instrumentalizando o sujeito-autor a escrever sua poesia, a</p><p>redescobrir sua sensibilidade, a resgatar sua imaginação, seus sonhos e</p><p>sua esperança. Ciência da arte de ensinar que, considerando os novos</p><p>cenários e as novas necessidades para a educação, pode contribuir com</p><p>a Escola Estação Cultura; ultrapassando fronteiras, que ela própria</p><p>possa significar uma outra forma de participação de crianças e</p><p>professores na cultura.</p><p>Referências bibliográficas</p><p>ARENDT, Hannah (1997). Entre passado e futuro. 4ª ed. São Paulo: Perspectiva.</p><p>BARTHES, Roland (1999). Mitologias. 10ª ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil.</p><p>BAZALGETTE, Cary (1991). Los medios audiovisuales en la educación primaria. Madri:</p><p>Ediciones Morata.</p><p>________ (2005). “Media education in Inghilterra: Incontro con Cary Bazalgette nel suo</p><p>ufficio”, Boletim Intermed, ano 10, n. 3, Roma.</p><p>BOURDIEU, Pierre (1983). La distinzione. Bolonha: Il Mulino.</p><p>BUCKINGHAM, David (2002). Crecer en la era de los medios. Madri: Morata.</p><p>BULFINCH, Thomas (2002). O livro de ouro da mitologia. 28ª ed. 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Por que estudar a mídia. 2ª ed. São Paulo: Loyola.</p><p>TORNERO, José Manuel Pérez (org.) (2007). Comunicação e educação na sociedade da</p><p>informação. Porto: Ed. Porto.</p><p>ZIPES, Jack (2002). Oltre il giardino: L’inquietante sucesso della letteratura per l’infanzia da</p><p>Pinocchio a Harry Potter. Milão: Mondadori.</p><p>http://%20www.%20museudapessoa.net/hotsites/seminario/leia_mais4.htm</p><p>SOBRE OS AUTORES</p><p>Edmir Perrotti é professor da ECA-USP e diretor científico do Centro de</p><p>Infoeducação dessa mesma instituição. Autor de Confinamento cultural, infância e</p><p>leitura (Summus), O texto sedutor na literatura infantil (Ícone) e O bordado</p><p>encantado (literatura infantil – Paulinas).</p><p>Gilka Girardello (org.), jornalista, é doutora em Comunicação (USP), com</p><p>mestrado interdisciplinar em Ciências Humanas (New School for Social</p><p>Research/Nova York). Professora associada na UFSC, atua no curso de Pedagogia</p><p>e na pós-graduação em Educação, na linha de pesquisa Educação e Comunicação.</p><p>Coordena o Núcleo de Pesquisa Infância, Comunicação e Arte (Nica) e a Oficina</p><p>Permanente de Narração de Histórias da UFSC.</p><p>Ingrid Dittrich Wiggers, doutora em Educação (UFSC), atua em cursos de</p><p>formação de professores na Universidade de Brasília. Desenvolve pesquisas sobre</p><p>a infância, enfocando aspectos relacionados à mídia, ao corpo e à arte. Publicou</p><p>artigos em periódicos nacionais e internacionais e em livros, como Imagem:</p><p>Intervenção e pesquisa. É também pesquisadora do Nica.</p><p>Maria Isabel Orofino é professora de Comunicação Social no Centro de Artes da</p><p>Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc). Mestre em Educação (UFSC) e</p><p>doutora em Comunicação Social (USP), ao longo dos últimos 20 anos vem</p><p>trabalhando no campo da comunicação, cultura e educação.</p><p>Maria Luiza Belloni, professora aposentada, atua nas áreas da sociologia da</p><p>infância, da comunicação e da educação. Trabalhou na UFBA, na UnB e na UFSC,</p><p>onde coordenou a criação do Laboratório de Novas Tecnologias (Lantec) e da linha</p><p>de pesquisa Educação e Comunicação na pós-graduação em Educação.</p><p>Pesquisando as relações entre crianças e mídia e a intersecção dos processos de</p><p>comunicação e educação, publicou, entre outros livros, Educação a distância e O</p><p>que é mídia-educação.</p><p>Monica Fantin (org.) é doutora em Educação pela UFSC, com estágio na</p><p>Università Cattolica del Sacro Cuore de Milão. Professora adjunta do curso de</p><p>Pedagogia e da pós-graduação em Educação da UFSC, na linha de pesquisa</p><p>Educação e Comunicação, é pesquisadora do Nica e autora dos livros No mundo da</p><p>brincadeira: Jogo, brinquedo e cultura na educação infantil e Mídia-educação:</p><p>Olhares e experiências no Brasil e na Itália.</p><p>Pier Cesare Rivoltella é professor titular de Tecnologia Educativa na Università</p><p>Cattolica del Sacro Cuore de Milão, onde também é diretor da graduação em</p><p>Ciências da Formação, do curso de especialização em Mídia-Educação e do</p><p>programa de Master Internacional em Comunicação e Formação. É diretor do</p><p>Centro de Pesquisa sobre Educação, Mídia, Informação e Tecnologia e vice-diretor</p><p>da Sociedade Italiana de Pesquisa sobre a Mídia-educação. Tem diversas</p><p>publicações no campo da mídia-educação.</p><p>Rosa Maria Bueno Fischer é doutora em Educação, professora da UFRGS no</p><p>curso de Pedagogia e na pós-graduação em Educação. Edita a revista Educação &</p><p>Realidade, da UFRGS, e é autora dos livros O mito na sala de jantar: Discurso</p><p>infanto-juvenil sobre televisão e Televisão & educação: Fruir e pensar a TV.</p><p>Pesquisadora do CNPq, é ainda membro do Comitê Assessor da Capes e do Comitê</p><p>Científico da Anped.</p><p>Telma Anita Piacentini é doutora em Educação pela USP, com estágio na</p><p>Università degli Studi de Ferrara. Professora aposentada do CED/UFSC e artista</p><p>plástica, foi secretária municipal de Educação de Florianópolis, criou o Museu do</p><p>Brinquedo de Santa Catarina, participou do Núcleo Mover e foi fundadora do Nica,</p><p>da UFSC. Publicou livros e artigos relacionados com imagens de infância e cultura</p><p>popular e realizou exposições de arte (pintura, desenho e gravura) individual e</p><p>coletiva.</p><p>OUTROS LIVROS DOS AUTORES</p><p>CULTURA DIGITAL E ESCOLA: PESQUISA E FORMAÇÃO DE PROFESSORES [+]</p><p>Monica Fantin e Pier Cesare Rivoltella (orgs.)</p><p>Maria Luiza Belloni, Alessandra Carenzio, Tania Maria Esperon Porto, Elisa Maria Quartiero,</p><p>Maria Apparecida Mamede-Neves, Flavia Nizia Ribeiro, Maria Helena Silveira Bonilla, Luzia</p><p>M. Yamashita Deliberador, Carolina Borges Souza Guntzel, Fernanda Lino, Izolete S. Santos,</p><p>Lenice Cauduro, Marlene Backes, Maria Febrônia S. Strazzer, Rosane Maria Kreuch, Rosimar</p><p>Jose e Suleica Kretzer</p><p>Esse livro reúne trabalhos de professores e pesquisadores do Brasil e da</p><p>Itália que atuam no espaço de intersecção entre cultura, comunicação e</p><p>educação. Eles investigam crianças e jovens na cultura contemporânea,</p><p>formação docente e usos das tecnologias na escola. Obra dividida em três</p><p>partes, a primeira atualiza as discussões sobre mídia-educação, revendo</p><p>conceitos a fim de fortalecer teórica e metodologicamente esse campo em</p><p>construção. A segunda parte destaca os usos das mídias e tecnologias na</p><p>escola com base em pesquisas desenvolvidas com professores em</p><p>diferentes contextos, instigando a reflexão sobre os diversos aspectos da</p><p>formação e de suas competências profissionais. Por fim, a terceira parte</p><p>analisa temas como jovens em rede, software livre e formação, cidadania, comunicação e</p><p>práticas colaborativas nos espaços da educação formal e não formal, e seus desafios para a</p><p>necessária transformação da escola no atual cenário de mudanças da cultura digital.</p><p>EDUCAÇÃO E ARTE: AS LINGUAGENS ARTÍSTICAS NA FORMAÇÃO HUMANA [+]</p><p>Celdon Fritzen e Janine Moreira (orgs.)</p><p>Maria Isabel Leite, Monica Fantin, Ana Beatriz Bahia, Márcia Strazzacappa, Cynthia Farina,</p><p>Aurélia Regina de Souza Honorato, Bernardo Zurk, Adrianne Guedes, Daniela Guimarães,</p><p>Nuelna Vieira e Ruani Maceira</p><p>De que modo a arte, produzida nos ambientes educativos ou por eles apropriada, pode tornar-se</p><p>significativa na formação humana? Essa é a questão central desse livro, a qual ganha</p><p>http://www.papirus.com.br/livros.aspx?opcao=pesquisa&qual=titulo&descricao=cultura%20digital</p><p>http://www.papirus.com.br/livros_detalhe.aspx?chave_livro=3682</p><p>importância em tempos de acentuada crítica à perda da sensibilidade</p><p>criativa na educação – institucionalizada ou não – de crianças, jovens e</p><p>adultos. A tendência à repetição, à utilização de modelos e do discurso</p><p>alheio em detrimento da autoria são práticas que a crítica pedagógica</p><p>aponta como negativas no processo de formação e que, no entanto,</p><p>manifestam-se teimosamente nos espaços educativos. Ao tratarem de</p><p>educação, ciência, cinema, dança, literatura e artes plásticas, os autores</p><p>dessa coletânea mostram como o contato com o universo da arte pode</p><p>propiciar o desenvolvimento da autonomia intelectual, a abertura para a</p><p>diferença e a compreensão da tradição e da contemporaneidade. Sem abrir</p><p>mão da crítica às experimentações e aos usos equivocados, o livro oferece reflexões sobre a</p><p>produção e a apropriação artísticas, com proposições para que tais processos participem da</p><p>construção de significados e elaborações pessoais.</p><p>MUSEU, EDUCAÇÃO E CULTURA: ENCONTROS DE CRIANÇAS E PROFESSORES</p><p>COM A ARTE [+]</p><p>Maria Isabel Leite e Luciana E. Ostetto (orgs.)</p><p>Telma Anita Piacentini, Monica Fantin, Gabriela Salles Argolo, Adriana Aparecida Ganzer,</p><p>Adriana de Almeida Machado, Maria Cristina M. Pereira de Carvalho, Magda Ugioni do</p><p>Livramento, Samantha Fernandes da Silva, Celia Lucia Baptista Flores e Rita Márcia</p><p>Magalhães Furtado</p><p>Maria Isabel e Luciana organizaram essa coletânea a fim de abrir um leque</p><p>de discussões com professores, arte-educadores, museólogos e artistas,</p><p>buscando compreender e problematizar alguns aspectos das relações entre</p><p>museu, educação e cultura. Na primeira parte da obra estão reunidos textos</p><p>cuja tônica é a conceituação de museus e demais espaços culturais como</p><p>locais privilegiados de preservação da memória cultural e de produção de</p><p>conhecimento.</p><p>A especificidade do conhecimento em questão, que abarca</p><p>não apenas o científico, mas também os de natureza estética e poética,</p><p>destaca-se como o interesse maior das autoras. A segunda parte traz à cena</p><p>a perspectiva de professores e crianças que foram ao encontro da obra, por</p><p>meio de narrativas das experiências vividas em diversos museus brasileiros - viagens investidas</p><p>de subjetividade, depoimentos que relatam experiências estéticas. Com essa publicação, as</p><p>organizadoras atestam sua crença na importância do encontro com a obra, que pode nos levar à</p><p>experiência da alteridade: encontro com diferentes culturas, com o outro e sua diferença,</p><p>encontro consigo mesmo.</p><p>http://www.papirus.com.br/livros_detalhe.aspx?chave_livro=3974</p><p>INFÂNCIA: IMAGINAÇÃO E EDUCAÇÃO EM DEBATE [+]</p><p>Celdon Fritzen e Gladir S. Cabral (orgs.)</p><p>Kieran Egan, Gilka Girardello, Sandra Richter, Alessandra Mara Rotta de Oliveira, Maria</p><p>Carmen Silveira Barbosa, Ângela Fronckowiak</p><p>Coletânea que propõe uma reflexão sobre as relações entre imaginação e</p><p>educação, mesclando abordagens teóricas e práticas que discutem também</p><p>sua conexão com a arte e a infância na produção cultural. Embora, ao</p><p>longo da história, a imaginação tenha sido negligenciada pelas instituições</p><p>educacionais da cultura ocidental, ela é hoje reconhecida como</p><p>fundamental no processo de ensino e aprendizagem. Também a infância</p><p>tem sido entendida como digna produtora de cultura, condição que deve</p><p>ser questionada, pelas contradições que lhe são inerentes. Dessa forma, os</p><p>textos reunidos oferecem análises que entrelaçam a infância e os processos</p><p>estético-culturais, educacionais e imaginativos, com o objetivo de</p><p>contribuir para o trabalho de pesquisadores, professores, pais e demais interessados por essas</p><p>temáticas.</p><p>A TRAMA DO CONHECIMENTO: TEORIA, MÉTODO E ESCRITA EM CIÊNCIA E</p><p>PESQUISA [+]</p><p>Lucídio Bianchetti e Paulo Meksenas (orgs.)</p><p>Silke Weber, Ari Paulo Jantsch, Roberto A. Follari, Ione Ribeiro Valle, Alexandre Fernandez</p><p>Vaz, Celso João Carminati, Gilson R. de M. Pereira, Maria da Conceição Lima de Andrade,</p><p>Giselia Antunes Pereira, Nilza Maria Vilhena Nunes da Costa, Elizeu Clementino de Souza,</p><p>Liane Figueiredo Soares, Francisco das Chagas de Souza, Antonio Zuin, Ana Maria Netto</p><p>Machado, Gilka Girardello, Ivanilde Apoluceno de Oliveira e Maria Tereza de Queiroz</p><p>Piacentini</p><p>Todos nós sabemos dos problemas da educação básica. Mas vale</p><p>perguntar: e como está, hoje, a formação acadêmica, voltada para a</p><p>pesquisa? Dividido em três partes – teoria, método e escrita –, esse livro</p><p>mostra como é essencial que a formação de pesquisadores esteja integrada</p><p>a uma cultura institucional que valorize a construção de novos</p><p>conhecimentos. Assim, na primeira parte, os autores discutem alguns</p><p>contextos de formulação de teorias em ciências humanas, com análises</p><p>centradas nas políticas de ciência e pesquisa, nas tarefas da</p><p>intelectualidade e nos problemas decorrentes da prática científica quando</p><p>esta é pensada na dinâmica social. A segunda parte da obra trata dos</p><p>métodos, com reflexões sobre os diversos tipos de pesquisa e suas técnicas. Por fim, são</p><p>abordados os pressupostos da linguagem acadêmica, a fim de qualificar os interessados na</p><p>redação, na organização e na apresentação de textos científicos.</p><p>http://www.papirus.com.br/livros_detalhe.aspx?chave_livro=2124</p><p>http://www.papirus.com.br/livros_detalhe.aspx?chave_livro=3966</p><p>CRIANÇAS E MÍDIAS NO BRASIL: CENÁRIOS DE MUDANÇA [+]</p><p>Maria Luiza Belloni</p><p>Em países como o Brasil, o desigual acesso às tecnologias de informação e</p><p>comunicação (TICs) tende a agravar as já profundas diferenças sociais e</p><p>regionais. Hoje, ninguém mais duvida de que precisamos todos aprender a</p><p>lidar com as tecnologias, tornando-as verdadeiros instrumentos de</p><p>comunicação e educação, uma vez que são tão incontornáveis quanto a</p><p>multiplicidade e a profusão de informações e imagens a que estamos</p><p>submetidos, a maioria delas orientada pela lógica capitalista de produção e</p><p>consumo. É em tal contexto que esse livro busca compreender como</p><p>crianças e adolescentes percebem, desconstroem e reelaboram as</p><p>mensagens das mídias (da televisão a celulares, computadores,</p><p>videogames etc.), a fim de contribuir para a formação do professor. Se sua tarefa sempre foi</p><p>desafiante, agora se tornou também ainda mais complexa. No entanto, nada como estar bem</p><p>preparado para enfrentar o dragão: seja ele real ou virtual!</p><p>http://www.papirus.com.br/livros_detalhe.aspx?chave_livro=3341</p><p>Siga-nos nas redes sociais:</p><p>>> >> >> >></p><p>Acesse também nosso catálogo on-line</p><p>http://www.facebook.com/PapirusEditora</p><p>http://www.twitter.com/PapirusEditora</p><p>http://papiruseditora.blogspot.com.br/</p><p>http://www.youtube.com/editorapapirus</p><p>http://issuu.com/papiruseditora</p><p>Capa: DPG Editora</p><p>Copidesque: Lúcia Helena Lahoz Morelli</p><p>Revisão: Ademar Lopes Júnior, Juliana Palermo, Lílian Moreira Mendes e Pamela Andrade</p><p>ePUB</p><p>Coordenação: Ana Carolina Freitas</p><p>Produção: DPG Editora</p><p>Revisão: Daniele Débora de Souza</p><p>eISBN 978-85-308-1027-6</p><p>Exceto no caso de citações, a grafia deste livro está atualizada segundo o Acordo</p><p>Ortográfico da Língua Portuguesa adotado no Brasil a partir de 2009.</p><p>Proibida a reprodução total ou parcial da obra de acordo com a lei 9.610/98. Editora afiliada</p><p>à Associação Brasileira dos Direitos Reprográficos (ABDR).</p><p>DIREITOS RESERVADOS PARA A LÍNGUA PORTUGUESA:</p><p>© M.R. Cornacchia Livraria e Editora Ltda. – Papirus Editora</p><p>editora@papirus.com.br | www.papirus.com.br</p><p>mailto:%20editora@papirus.com.br</p><p>http://www.papirus.com.br/</p><p>[*] Texto revisto e traduzido do francês, apresentado em novembro de 2004, em evento</p><p>científico, na Universidade de Sherbooke, Canadá.</p><p>[1] Ver http://estacaomemoria.blogspot.com.</p><p>http://estacaomemoria.blogspot.com/</p><p>[1] Ver, a propósito da análise enunciativa foucaultiana, o artigo “Foucault e a análise do</p><p>discurso em educação” (Fischer 2001).</p><p>[2] Em inúmeros momentos, em sua vasta obra, Foucault escreve sobre nossa “logofobia”,</p><p>nosso medo das coisas ditas, dos enunciados e enunciações possíveis, que é correlato de uma</p><p>criação incomensurável de técnicas de controle dos discursos – os comentários, as exegeses,</p><p>as explicações, os exercícios de compreensão, as “leituras”, as mediações, as classificações</p><p>dos textos etc. Ver especialmente A ordem do discurso (Foucault 1971).</p><p>[3] Tratei disso no artigo “Problematizações sobre o exercício de ver: Mídia e pesquisa em</p><p>educação” (Fischer 2002b, pp. 83-94).</p><p>[4] O Concerto K. 456 para piano e orquestra, de Mozart, foi exibido no programa da TV</p><p>Senado Quem tem medo de música clássica?, dia 2/5/2003, na mesma noite do Globo</p><p>Repórter, intitulado “Cavaleiros do vento”.</p><p>[5] Refiro-me aqui a pesquisas desenvolvidas no curso de pós-graduação da UFRGS, por</p><p>alunos do mestrado e do doutorado em Educação, no Núcleo de Estudos sobre Mídia,</p><p>Educação e Subjetividade (Nemes), sob minha coordenação: Marcello (2005; 2008); Vitelli</p><p>(2005); Fischer (2002a; 2002b; 2005a; 2005b; 2006); Loponte (2005); Schwertner (2005).</p><p>[6] O título da série em francês é Six fois deux/Sur et sous la communication: são na realidade</p><p>12 programas, já que cada um dos documentários tem duas partes. Os temas são variados: o</p><p>desemprego, a criação, a palavra, entre outros.</p><p>[7] Refiro-me aqui ao texto “O terceiro sentido”, sobre o cineasta Eisenstein, do livro O óbvio</p><p>e o obtuso (1990), pp. 45-61.</p><p>[*] Tradução do original italiano feita por Monica Fantin, com revisão do autor.</p><p>[1] Um chat é um espaço na rede em que pessoas se encontram e se comunicam em tempo real</p><p>entre si de forma escrita ou por interação vocal. Um Multi User Domain (MUD) é um sistema</p><p>análogo de interação, porém esta é vinculada a um tema narrativo e à representação de papéis</p><p>(mesmo por meio da construção de uma identidade virtual chamada avatar) por parte dos</p><p>participantes.</p><p>[2] Mecanismo de busca. (N.T.)</p><p>[3] Recentemente foi discutida a decisão de alguns engenhos de pesquisa americanos (como o</p><p>Yahoo!) de colocar à disposição do governo o rastreamento das atividades de pesquisa dos</p><p>usuários na internet.</p><p>[4]</p><p>Universidade do Algarve, Faro, Portugal.</p><p>[5] Universidad Autonoma de Catalunya, Barcelona, Espanha.</p><p>[6] Université de Paris VIII – Saint Denis.</p><p>[7] Institute of Education, University of London.</p><p>[1] Em uma pesquisa sobre o Morro da Caixa d’Água, em Florianópolis, que resultou no livro</p><p>Morro da Caixa d’Água: O significado político-pedagógico dos movimentos de educação</p><p>popular na periferia de Florianópolis, em artigos sobre a infância, na criação da Secretaria</p><p>Municipal de Educação de Florianópolis (SC), após a ditadura militar, na criação do Museu do</p><p>Brinquedo da Ilha de Santa Catarina/UFSC e em trabalhos de extensão universitária.</p><p>[2] Franklin Cascaes foi um artista plástico, professor, estudioso e organizador da cultura</p><p>popular na Ilha de Santa Catarina, considerado referência da cultura açoriana no estado. Entre</p><p>suas obras (histórias/contos, desenhos, pintura, escultura), por meio de esculturas de argila,</p><p>Cascaes registrou cerca de 40 brincadeiras que faziam parte da história de uma infância</p><p>presente num repertório lúdico infantil, cerca de 50 anos atrás. No ano de 2008 comemora-se</p><p>o centenário de Franklin Cascaes.</p><p>[3] Expostas no Museu Universitário/UFSC, na Casa dos Açores de São Miguel, em coleções</p><p>particulares, como de Anamaria Beck, e na reserva técnica do Museu Universitário. Selecionei</p><p>como brincadeiras infantis, reunidas por Gelcy José Coelho (Peninha) em exposição no</p><p>Museu Universitário por ocasião da Semana da Criança, nos anos 80, e com sua assessoria</p><p>identifiquei crianças acompanhando os pais no trabalho, nas festas religiosas e nas festas</p><p>bruxólicas.</p><p>[4] As fotos foram realizadas pelo fotógrafo Sérgio Paiva, que atuava no Museu Universitário.</p><p>[5] Tal atitude de comprovação foi desenvolvida em uma pesquisa realizada no curso de pós-</p><p>graduação, Mestrado em Educação da UFSC, por Monica Fantin, no projeto “A dimensão</p><p>cultural da brincadeira na educação infantil” (que resultou no livro No mundo da brincadeira:</p><p>Jogo, brinquedo e cultura na educação infantil) , que confirmou, além de questões específicas</p><p>daquele trabalho, a presença das brincadeiras infantis de Franklin Cascaes na vida das</p><p>crianças de hoje.</p><p>[6] Angelina Peralva, correspondência pessoal, 1993.</p><p>[1] Esta foi a pergunta de pesquisa que norteou a tese de doutorado da autora, intitulada</p><p>“Corpos desenhados, olhares de crianças de Brasília através da escola e da mídia”,</p><p>apresentada ao curso de pós-graduação da Universidade Federal de Santa Catarina, em 2003.</p><p>Parte dos resultados desse trabalho já foi divulgada anteriormente em 2004, no XVIII</p><p>Encontro Anual da Pós-graduação em Comunicação (Compós) e em 2005, no n. 3, do vol. 26</p><p>da Revista do Colégio Brasileiro de Ciências do Esporte. Foram mantidos alguns capítulos</p><p>dessas publicações, mas outros foram originalmente elaborados para este texto.</p><p>[2] Além de não ser um objeto privilegiado do pensamento filosófico ocidental moderno, o que</p><p>o torna presa fácil do senso comum, o corpo é reduzido a uma imagem, portanto absorvido</p><p>facilmente como refém da mídia.</p><p>[3] A Escola-Parque foi idealizada por Anísio Teixeira na década de 1950, em Salvador (BA).</p><p>Foi implantada em Brasília por ocasião de sua inauguração, em 1960, como sistema pioneiro</p><p>pretendido para o país (Duarte 1983).</p><p>[4] Os desenhos infantis podem revelar uma expressão do pensamento das crianças cuja</p><p>análise não se esgota na simples observação. As entrevistas constituíram um instrumento</p><p>necessário e imprescindível para integrar o processo de interpretação das representações</p><p>infantis acerca de corpo, pois muitos detalhes dos desenhos foram esclarecidos por meio de</p><p>conversas diretas com as crianças.</p><p>[5] Região metropolitana central, planejada pelo urbanista Lúcio Costa. Pela sua importância</p><p>arquitetônica foi tombada pela Unesco como “Patrimônio Histórico da Humanidade”.</p><p>[6] Comenta Widlöcher (1971, p. 8) que, “se os desenhos são objeto de nossa curiosidade, é</p><p>porque não existem desenhos de adultos. O adulto, quando não é um artista, não desenha. Sua</p><p>atividade gráfica reduz-se a caricaturar alguns retratos e a rabiscar sem figuração nenhuma. O</p><p>desenho, da mesma forma que os jogos, é uma atividade que envelhece com o passar dos anos</p><p>e revela um tipo de conduta própria da criança”.</p><p>[7] A palavra desenho – desígnio – reúne semanticamente os conceitos de “técnica” e de</p><p>“arte”. Entretanto, o significado de desenho que prevaleceu na Modernidade, segundo</p><p>Guimarães (1996), desintegrou a ação – a prática que torna a imagem visível – do pensamento</p><p>– imaginação e criação. Essa dicotomia produziu a noção de desenho interno (conceito</p><p>mental) e de desenho externo (o gesto, a técnica).</p><p>[8] “(...) Camada social que se tornou um emblema dos anos 80 (...). Esses jovens profissionais</p><p>urbanos, ávidos pela auto-realização através do sucesso material, praticantes mais assíduos da</p><p>transpiração eletrônica, fizeram desse tipo de aparelhagem um signo essencial de</p><p>pertencimento a seu grupo (...)” (Courtine 1995, p. 85).</p><p>[*] A pesquisa aqui apresentada foi desenvolvida em 2002/2003 e contou com a valiosa</p><p>participação das professoras Nilza Godoy Gomes, do Lantec-UFSC, e Silvanira Scheffler, da</p><p>Univali, além das estudantes bolsistas do CNPq: Simone Pereira de Lima, Rose Aparecida</p><p>Souza Antunes e Jane Makoski.</p><p>[1] Pesquisa realizada na Bélgica, na França, na Espanha, na Itália, em Portugal, na Suíça e em</p><p>Québec, com uma amostra de 3.326 adolescentes, por centros de pesquisa ligados a</p><p>Universidades ou ao Ministério de Educação. A fonte desses dados é o relatório-síntese obtido</p><p>no Clemi, instituição do Ministério francês da Educação, responsável pela pesquisa na França.</p><p>[2] O estudo aqui relatado faz parte de uma pesquisa bem mais abrangente sobre os jovens e as</p><p>tecnologias de informação e comunicação (TICs) e foi realizado em sete escolas da Grande</p><p>Florianópolis, atingindo uma amostra de 373 jovens de 13 a 16 anos, alunos do ensino básico.</p><p>[3] Ver Buarque 1999.</p><p>[1] Como destacamos anteriormente (Orofino 2006, p. 54), “mediação é um conceito que</p><p>ocupa um espaço cada vez maior e mais freqüente nas teorias sobre mídia e sociedade. É cada</p><p>vez mais comum, hoje em dia, depararmos com esse conceito. Isso tem gerado uma certa</p><p>confusão em torno do uso desse conceito e a perda da sua dimensão crítica. Como os</p><p>processos de mediação tecnológica, realizados pelos meios de comunicação, são um</p><p>fenômeno sócio-histórico tão singular e novo, muitas vezes o uso que se faz de mediação se</p><p>restringe à abstrata ação, desumanizada e neutra das tecnologias da mídia. Isso é um</p><p>equívoco. Mediação, enquanto conceito, antecede a própria presença das mídias eletrônicas</p><p>em nossas sociedades e trata da ação e da intervenção humanas em processos de produção e</p><p>circulação de formas simbólicas. Mediação é um conceito muito antigo. Possui uma trajetória</p><p>longa no âmbito da filosofia que vem de Aristóteles. Mas é em Hegel que se localiza a</p><p>primeira exploração para uma relação dialética entre indivíduo e sociedade, entre ação e</p><p>reflexividade. Já foi amplamente explorado no campo das teorias da arte; sobretudo a teoria</p><p>marxista. E também no próprio campo da Educação, a partir dos escritos de Gramsci. Mas,</p><p>seguramente, há uma confusão existente nas teorias contemporâneas da comunicação e da</p><p>mídia. Pois ao problematizarem os diferentes processos de mediação que os meios</p><p>desempenham, nem sempre recorrem à dimensão crítica do conceito. Por isso a necessidade</p><p>de nos voltarmos a um resgate da dimensão dialética e crítica desse conceito. Neste sentido,</p><p>da relação entre mídia e mediações, a obra dos autores latino-americanos é sem dúvida uma</p><p>das grandes contribuições”.</p><p>[2] Por exemplo: eu mesma me esqueci do título de uma ficção barata que comprei no</p><p>aeroporto um dia. Era um livro formato paperback e de segunda (em todos os sentidos). Mas</p><p>era genial! Falava, antecipadamente ao Toy Story, de uma terra para onde eram mandados</p><p>todos os personagens de ficção que caíam no esquecimento. Era uma “Terra do Imemorável”.</p><p>E nessa situação de esquecimento, os personagens viviam verdadeiras crises</p><p>existenciais e</p><p>autênticos conflitos dramáticos. Imagine, em nosso caso, os personagens da ficção infantil</p><p>desesperados: Jiban, Gyraia e Jaspion; as Tartarugas Ninja; o Pokémon também (depois de</p><p>acumular cifras altíssimas com seu pacote midiático de Pokémon Cards, filmes, séries para</p><p>TV, bonecos, produtos de higiene) – não creio que este já esteja totalmente esquecido, mas o</p><p>Rin-tin-tin deve estar lá e a Jeannie e o Daniel Boone também. O que essa ficção barata falava</p><p>não está muito distante da realidade que vivem as celebridades do mundo, perdidas em suas</p><p>narrativas de vida, na cegueira de fama efêmera.</p><p>[*] A pesquisa em que este trabalho se baseou contou com a participação de Ana Carolina</p><p>Dionisio (bolsista Pibic/CNPq-UFSC). Uma versão anterior do trabalho foi publicada nos</p><p>Anais da XXVIII Reunião Anual da Anped, realizada em Caxambu, em 2005.</p><p>[1] Extraído do diário de campo da autora.</p><p>[2] Sobre os aspectos metodológicos da pesquisa com crianças sobre as mídias, ver Duarte et</p><p>al. (2002) e Girardello e Orofino (2002).</p><p>[3] Uma descrição consistente e detalhada de uma experiência multimídia na educação infantil</p><p>está em Ferreira (2004).</p><p>[1] Ver artigo de Rivoltella no Capítulo 3 deste livro.</p><p>[2] Uma experiência de participação nesse sentido foi desenvolvida no contexto de uma</p><p>pesquisa sobre crianças e cinema, em que viabilizei uma intervenção educativa na escola a fim</p><p>de trabalhar com a produção de mídias com crianças. Com base na concepção de mídia-</p><p>educação que enfatiza educar sobre, com e através dos meios, construímos uma proposta</p><p>pedagógica que trabalhou na perspectiva de conhecer fazendo, aprender cooperando e</p><p>apropriando-se criticamente das múltiplas linguagens. Sobre a experiência de produção de um</p><p>audiovisual com crianças na escola, cf. Fantin (2006a).</p><p>[3] Anotações pessoais no curso “Tecnologia dell’istruzione e dell’apprendimento”. Milão:</p><p>UCSC, 2005.</p><p>[4] Bazalgette (2005) propôs os “3 C” – cultura, crítica e criação – como três aspectos</p><p>essenciais da mídia-educação.</p><p>[5] Sobre detalhamento dos níveis, cf. Fantin (2006b, p. 91).</p><p>[6] Estação Memória resulta de um projeto de pesquisa coordenado pelo professor Edmir</p><p>Perrotti, da ECA-USP, que partiu da problemática da apropriação da informação e dos</p><p>dispositivos de aprendizagens socioculturais. Cf. Capítulo 1 deste livro.</p><p>[7] Cf. Perrotti no Capítulo 1 deste livro.</p><p>[8] Condorcet (1745-1794), filósofo francês que, inspirado no ideal revolucionário de busca de</p><p>igualdade civil, foi considerado o “pai da instrução pública”. Enfatizando a necessidade de</p><p>transmissão do saber a todas as crianças, via na instituição pública a possibilidade de a</p><p>educação configurar-se como direito de cidadania e dever do Estado.</p><p>[9] Alguns programas nesse sentido vêm sendo desenvolvidos em algumas cidades brasileiras</p><p>nos moldes da estratégia da Unesco de combater a violência e a exclusão social. Escolas e</p><p>ONGs realizam em parceria oficinas de atividades esportivas, musicais e artísticas,</p><p>envolvendo a comunidade nos finais de semana. No entanto, mais do que um espaço de lazer</p><p>para as famílias, a configuração da escola como estação de cultura não pode se limitar ao fim</p><p>de semana.</p><p>[10] Albert Camus (2006) discute o valor da vida por meio de uma reflexão filosófica sobre o</p><p>suicídio, usando o mito de Sísifo como uma metáfora da própria vida. Ele fala de um</p><p>heroísmo, da filosofia do absurdo que se refere a viver a vida com lucidez e plena consciência,</p><p>pois nossa vida seria insignificante e não teria mais valor que aquele que criamos. Assim,</p><p>Camus apresenta o esforço inútil e incessante de Sísifo como uma metáfora da vida moderna</p><p>consumida em inúteis trabalhos em fábricas, e desenvolve a ideia do “homem absurdo”,</p><p>aquele que é consciente da completa inutilidade de sua vida.</p><p>[11] Esta é uma entre tantas versões para a mitologia de Perseu, encontrada em Bulfinch 2002.</p><p>Liga, roda, clica</p><p>Sumário</p><p>Apresentação</p><p>1. Estação memória: Novos caminhos da mediação e da apropriação cultural</p><p>2. Imagens da mídia, educação e experiência</p><p>3. A formação da consciência civil entre o “real” e o “virtual”</p><p>4. A questão do método e a pesquisa sobre imagens de infância</p><p>5. Infância e mídia: Crianças desenham novas corporeidades?</p><p>6. Os jovens e a internet: Representações, usos e apropriações</p><p>7. Ciranda de sentidos: Crianças, consumo cultural e mediações</p><p>8. Produção cultural infantil diante da tela: Da TV à internet</p><p>9. Do mito de Sísifo ao voo de Pégaso: As crianças, a formação de professores e a escola estação cultura</p><p>Sobre os autores</p><p>Outros livros dos autores</p><p>Redes sociais</p><p>Créditos</p><p>em torno de duas horas, com possíveis</p><p>variações em função das situações e vontades concretas e específicas</p><p>dos participantes. Decidimos que o controle do tempo, do espaço, das</p><p>pausas, das sequências narrativas seria definido primeiro pelos</p><p>entrevistados, observadas as condutas escolhidas. As interrupções</p><p>deveriam ser evitadas, a não ser que se tratasse de melhor compreender</p><p>uma passagem ou de completar uma afirmação, considerando que nosso</p><p>interesse se situa sobretudo no fluxo onde memória e imaginação se</p><p>acotovelam e traduzem uma visão original e inesperada do vivido: a</p><p>sabedoria. Não se trata portanto da coleta de biografias, nem da</p><p>reconstrução histórica e social. Para os registros, optamos pela</p><p>utilização de fitas cassetes e, com o desenvolvimento da tecnologia,</p><p>fizemos a transposição das entrevistas para CD-ROMs, a fim de</p><p>disponibilizá-las ao público.</p><p>Se as entrevistas domiciliares continuam a ser feitas até hoje, outros</p><p>modos de coletar experiências de vida foram introduzidos em nosso</p><p>trabalho. Por exemplo, são realizadas oficinas de memória no espaço da</p><p>Estação, com atividades de registros escritos, sonoros e audiovisuais.</p><p>Essa metodologia permite coletar e integrar a memória das pessoas</p><p>idosas aos circuitos culturais, e, ao mesmo tempo, vencer o isolamento</p><p>que as condições de vida contemporâneas impuseram a elas. Mediação</p><p>cultural e ação social se combinam assim em iniciativas regidas por um</p><p>paradigma sociocultural que ultrapassa o culturalismo comum nos</p><p>projetos culturais e permite aos sujeitos exercer sua autonomia e decidir</p><p>quais histórias contar e quais esquecer. As escolhas são múltiplas, tanto</p><p>em relação aos tipos de histórias e de linguagens, como em relação aos</p><p>instrumentos e circuitos de comunicação a serem utilizados. Os grupos,</p><p>como já dissemos anteriormente, têm produzido vários materiais com</p><p>base nas memórias, como livros em versão impressa e eletrônica,</p><p>exposições, catálogos temáticos, publicações impressas, encontros,</p><p>passeios, troca de correspondências, intercâmbios literários, enfim, toda</p><p>sorte de comunicação possível entre grupos de crianças, jovens e</p><p>pessoas de idade.</p><p>De acordo com as necessidades, são realizadas sessões de</p><p>preparação para os encontros intergeracionais. Por outro lado, estes</p><p>podem continuar de modo autônomo, sem a intermediação da Estação</p><p>Memória, em função do interesse dos participantes. Há, por exemplo,</p><p>correspondentes que ainda hoje continuam em contato, seja pelo correio</p><p>postal, seja pela internet. O presencial e o virtual entram em diálogo e</p><p>desempenham um papel importante no início ou na continuidade dos</p><p>laços tornados possíveis pela ação do novo serviço.</p><p>É preciso dizer que essas ações atuam sobre as representações que</p><p>os participantes fazem da escrita, da comunicação, da tecnologia, da</p><p>memória, da experiência e, sobretudo, deles mesmos. Se, no início, as</p><p>pessoas de idade tendem a nos dizer que suas histórias não têm</p><p>nenhuma importância, à medida que vão se integrando às ações, vão,</p><p>também, mudando de opinião, recuperando o prazer de narrar, de</p><p>contar; ao mesmo tempo, as crianças e os jovens se apropriam das</p><p>mesmas capacidades, além do prazer da escuta ativa e criativa, condição</p><p>necessária para que possam ser herdeiros capazes de negociar as</p><p>significações, de acatá-las, de transformá-las, de recriá-las, sem</p><p>banalizá-las ou reduzi-las. Quando esse encontro entre a narração e a</p><p>escuta se cumpre, os papéis tendem a circular no interior dos grupos, e</p><p>os diálogos intergeracionais se instituem e são instituintes. Momento</p><p>mágico, momento poético: crianças, jovens e pessoas idosas formando</p><p>um conjunto narrativo em ruptura com a ordem discursiva hegemônica.</p><p>Eles se escutam uns aos outros, reconhecem-se e reconhecem os outros,</p><p>eles constroem e reconstroem a história e as histórias, construindo-se a</p><p>si próprios nesse ritual antigo e indispensável que reúne em um mesmo</p><p>ato memória e esquecimento, fazer e dizer.</p><p>A propósito, apareceu recentemente uma publicação sobre a</p><p>memória do grande rio poluído que circunda o Baixo Pinheiros e que</p><p>teve águas límpidas em época passadas, não tão distantes de nós. Em</p><p>meio aos diferentes relatos publicados na obra, encontra-se o da senhora</p><p>cuja fala deu origem à Estação Memória. Ela não estava mesmo</p><p>brincando: escreveu seu livro. E as crianças e os jovens podem</p><p>consultá-lo na Estação e encantar-se com as belezas ali registradas: “As</p><p>águas do rio eram muito, muito límpidas, mas não podíamos nadar</p><p>nelas. Minha mãe não deixava, principalmente porque havia uns</p><p>homens que às vezes nadavam nus. Tínhamos medo, mas batizei minhas</p><p>bonecas nessas águas...”.</p><p>Referências bibliográficas</p><p>BAKER, Ronald e ESCARPIT, Robert (1975). A fome de ler. Rio de Janeiro: FGV/INL/MEC.</p><p>BENJAMIN, Walter (1993). “Experiência e pobreza”. In: BENJAMIN, Walter. Obras</p><p>escolhidas. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, pp. 114-119.</p><p>BRUNER, Jerome (1997). Atos de significação. Porto Alegre: Artes Médicas.</p><p>FREIRE, Paulo (1982). Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra.</p><p>LE GOFF, Jacques (1994). História e memória. Campinas: Editora da Unicamp.</p><p>THOMPSON, Paul (1992). A voz do passado: História oral. Rio de Janeiro: Paz e Terra.</p><p>2</p><p>IMAGENS DA MÍDIA, EDUCAÇÃO E</p><p>EXPERIÊNCIA</p><p>Rosa Maria Bueno Fischer</p><p>Imagem educa? As imagens da mídia educam? A mídia nos</p><p>subjetiva? Trazer as imagens da mídia para o cotidiano escolar – para</p><p>que isso? De que estamos falando? De nos tornarmos todos “analistas</p><p>da mídia”, especialistas em decodificar imagens eletrônicas,</p><p>espectadores críticos da avalanche de imagens que consumimos?</p><p>Proponho, neste texto, problematizar o trabalho que pesquisadores desse</p><p>cruzamento imagem/educação, mídia/pedagogia – entre os quais me</p><p>incluo, obviamente – têm realizado já há algum tempo. A</p><p>problematização se faz aqui com base em um questionamento de</p><p>afirmações que, de tão ditas, de tantas vezes afirmadas, produzem quase</p><p>que um significante vazio: “a mídia subjetiva” já é um enunciado que</p><p>nada parece significar (ou, ao contrário, que tudo pode abarcar, o que dá</p><p>no mesmo). Afinal, o que estamos dizendo quando afirmamos que há</p><p>uma pedagogia da imagem midiática? Que a mídia subjetiva crianças,</p><p>adolescentes, adultos? Que aquelas imagens lá, sobre sexualidade,</p><p>pobreza, beleza, juventude, criminalidade, seja o que for, que aquelas</p><p>imagens lá, na tela da TV, nas páginas da revista, educam-nos,</p><p>produzem nossas subjetividades?</p><p>Afirmo neste texto meu desconforto com afirmações que eu mesma</p><p>tenho feito sobre esse tema e também meu desconforto com o fascínio</p><p>que as imagens, especialmente as da televisão, passam a ter para os que</p><p>se dispõem, no campo da educação, a ampliar os modos de ver e</p><p>compreender a prática escolar, na medida em que talvez muitos de nós</p><p>estejamos correndo o risco de cair em mais um modismo de pesquisa,</p><p>que não se cansa de repetir o mesmo, tendo por suposto que tudo está</p><p>ali muito bem dito.</p><p>Apropriando-me do que diz Gilles Deleuze (1992), ao escrever</p><p>sobre a figura, a imagem de Michel Foucault, afirmo também meu</p><p>desejo de sacudir a relação entre mídia, pesquisa e educação, de trazer</p><p>para o debate os estados mistos desse cruzamento, “seguir e</p><p>desmaranhar linhas”, tratar do ou dos dispositivos em jogo nessa</p><p>relação, achar e descrever os nós, as linhas agitadas da linguagem, dos</p><p>discursos, dos poderes, dos saberes, dos processos de subjetivação aí</p><p>envolvidos. Gostaria de poder apanhar as coisas pelo meio, rachar as</p><p>coisas, rachar as palavras que insistimos em usar, sobre as múltiplas</p><p>ligações entre imagem e educação (Deleuze 1992, p. 109). Fazer o</p><p>exercício de operar com a arte das superfícies, as superfícies de</p><p>inscrição, os enunciados[1] – aquilo que, como nos ensina Foucault, ao</p><p>mesmo tempo não é visível nem oculto. Trabalhar, portanto, com o</p><p>visível e o enunciável, tendo como foco de atenção essa coisa chamada</p><p>mídia e que parece “fazer” alguma coisa no currículo, na educação, na</p><p>formação de modos de ser infantil, adolescente, adulto, mulher, negro,</p><p>doente, oriental etc.</p><p>Proponho, em suma, trabalhar</p><p>com a relação entre imagem (da</p><p>mídia) e experiência. Incluo nessa problematização um outro modo de</p><p>trabalhar com a mídia: por que não suportar a dificuldade de</p><p>“experimentar” as imagens da mídia, em vez de, mais uma vez,</p><p>“interpretá-las”? Associo esse trabalho a uma ideia foucaultiana do</p><p>papel do intelectual: não falar em nome de todos, de enormes grupos,</p><p>mas falar de um lugar e para um lugar específico, falar (escrever e</p><p>pensar também) em nome de uma certa competência e situação. Quero</p><p>trazer para o debate isto: como dar conta da competência de nossas</p><p>análises da mídia, no sentido de falar de dentro dela, de dentro de uma</p><p>linguagem muito específica, e não de fora, daquele lugar soberano da</p><p>interpretação. Mas por que propor a experiência com as imagens e não o</p><p>caminho comum, já trilhado, conhecido, de nossas “sábias”</p><p>interpretações, das verdades mais que verdadeiras que encontramos a</p><p>cada análise – mesmo sabendo que, ao fim e ao cabo, estamos sempre</p><p>lidando com interpretações sobre interpretações, como nos ensina</p><p>Foucault?[2]</p><p>Imagino que haveria a possibilidade de experimentação das</p><p>imagens da mídia, na pesquisa em educação, com base em um trabalho</p><p>que pudesse dar conta da complexidade das práticas que estão em jogo</p><p>nos processos de comunicação, as quais se operam nos entrelugares da</p><p>produção (o trabalho dos criadores, roteiristas, atores, técnicos dos</p><p>diversos níveis) e dos “destinatários”, aqueles a quem se endereçam os</p><p>produtos midiáticos, nas mais distintas situações e condições de</p><p>“recepção”. Ou seja, proponho que se busquem os enunciados de certos</p><p>discursos, de certos regimes de verdade, multiplicados diariamente nos</p><p>espaços da mídia, de modo particular aqueles que dizem respeito à</p><p>proposição de modos de existência, de formas de experiência, para</p><p>crianças, adolescentes, jovens, educadores, para todos nós.[3] Mas que</p><p>essa busca se faça atentando para o movimento permanente das fixações</p><p>e das possibilidades de fuga ou de criação nesse processo. Que essa</p><p>busca se paute por um olhar demorado na experiência: daquele que faz a</p><p>imagem, daquele que a acolhe, daquele que vai além dela.</p><p>Em outras palavras, interessa-me pensar a mídia como “trama de</p><p>visibilidades” e de “enunciabilidades” destes tempos, naquilo que possa</p><p>interessar à educação, questionando a bruta, fácil e suposta equivalência</p><p>de palavras e coisas, a busca incansável a que muitas vezes nos</p><p>propomos para encontrar os não ditos ou as verdades recalcadas das</p><p>coisas, o gozo vivido com nossos achados sobre o “verdadeiro” sentido</p><p>das imagens analisadas – como se assim replicássemos aquele</p><p>movimento de mais uma vez fixar, esconjurando qualquer risco de</p><p>escape, de fuga, de imprevisibilidade das coisas ditas e mostradas. O</p><p>exercício que faço aqui é o de pensar a relação entre mídia e currículo,</p><p>mídia e educação, por meio de uma modesta preocupação com fazer a</p><p>história do presente, aceitando dialogar com os perigos</p><p>contemporâneos, como escreve Foucault, sem procurar propriamente</p><p>alternativas, mas desejando efetivamente navegar em meio a</p><p>problematizações.</p><p>Mas de que problematizações estou falando? Falo aqui dos</p><p>“espinhos de nossa carne”, como escreve Marilena Chaui (1999) no</p><p>texto “Janela da alma, espelho do mundo”, que doem ali, nas imagens</p><p>que produzimos, nas imagens que nos deleitam, nas figuras e cenas que</p><p>amamos, nos rostos e falas que nos horrorizam. Falo do lugar daquele</p><p>que especta, que olha, que investe seu corpo, toda a sua pessoa, nesse</p><p>jogo de interioridade e de exterioridade que diz respeito ao ato de ver,</p><p>de receber imagens e de operar sobre elas, seja como espectador</p><p>cotidiano, seja como estudioso da comunicação ou pesquisador no</p><p>campo da educação. Problematizar a relação entre imagem e educação é</p><p>participar disto – fazer a história de nosso presente, tratando desse lugar</p><p>que chamo o “lugar das visibilidades das visibilidades” (cf. Fischer</p><p>2002b), a mídia, especialmente a TV, suas imagens, seus textos, sons,</p><p>planos, sequências, que se fazem ao mesmo tempo figuras únicas</p><p>(produtos claramente identificáveis, como um programa de televisão ou</p><p>um anúncio publicitário) e também figuras maiores, enredadas no</p><p>grande espaço das emissoras e das redes de comunicação, dentro das</p><p>políticas mais amplas de produção e veiculação de informação e</p><p>entretenimento; visibilidade de determinados públicos e dos modos de</p><p>chegar até eles; visibilidade das práticas institucionais, dos</p><p>acontecimentos, que não serão “expressão” de um discurso nem sua</p><p>causa imediata, mas algo que faz parte das suas condições de</p><p>emergência; visibilidade, enfim, daquilo que se murmura em</p><p>determinado tempo e lugar (cf. Fischer 2002b, p. 85).</p><p>E o que me interessa, desse murmúrio? Em primeiro lugar, a cultura</p><p>das sensações, sensação do corpo benfeito, bem cuidado e belo, de tudo</p><p>o que diga respeito à subjetividade exterior, como escreve Jurandir</p><p>Freire Costa (2001), essa forma de subjetividade que teima em nos</p><p>interpelar nas sequências narrativas de telenovelas, telejornais ou</p><p>anúncios publicitários, ensinando-nos que a criação está ali, que a arte é</p><p>aquilo ali, que ali se inventam o ator, o amor, a dor. Interessa-me</p><p>também o murmúrio que nos pontua o jogo das não fronteiras entre o</p><p>público e o privado, naquilo que tal fato tem de mais genuinamente</p><p>político: o que vamos aprendendo quanto à democracia, agora tornada</p><p>democracia de opinião (cf. Sarlo 1997, pp. 117-128), e o quanto vamos</p><p>aprendendo sobre autenticidade, colada agora à ideia e à prática de que</p><p>tudo, absolutamente tudo deve ser dito. Hoje todos podemos e devemos</p><p>opinar sobre o que quer que seja, e talvez até possamos aparecer na cena</p><p>“povo fala” do Jornal Nacional da TV Globo e expressar solenemente,</p><p>em menos de 30 segundos, nossa importante opinião. Hoje somos todos</p><p>íntimos de todos, da longínqua celebridade, do longínquo cidadão</p><p>comum desconhecido. Que democracia? Que autenticidade?</p><p>Vamos aprendendo, como escreve Beatriz Sarlo (ibidem), uma</p><p>solidariedade do privado, e desaprendendo os critérios públicos de</p><p>solidariedade. Teias simbólicas são tecidas todos os dias, amarrando-nos</p><p>uns aos outros, por meio de histórias, signos e símbolos em cujo centro</p><p>estão dramas humanos, corpos expostos e venerados, sonhos de sucesso</p><p>individual, banalidades alçadas a grandes épicos, heroísmos diariamente</p><p>feitos e desfeitos – que nos unem, que conferem à nossa vida sentidos</p><p>de pertencimento e de solidariedade, mas quase sempre a solidariedade</p><p>do e com o privado, de tal forma que o vazio imenso em relação a tudo</p><p>o que seja público, a tudo o que signifique algum compromisso com o</p><p>social e o político mais amplo parece estar perdoado, ou pelo menos</p><p>compensado.</p><p>Igualmente, e sem dúvidas, interessam-me o murmúrio produzido</p><p>pelo zapping das imagens, a inflação dos sentidos e imagens também, o</p><p>exagero com a repetição do mesmo na TV, que parecem impossibilitar</p><p>ou negar por completo a produção de imagens sobre outras formas de</p><p>beleza de nosso corpo, de outros movimentos e tempos de nós mesmos,</p><p>daquilo que criamos, fora, para além da TV a que costumamos assistir.</p><p>Mas como aprender a localizar, registrar e veicular acontecimentos que</p><p>afetam todos os cidadãos ou muitos deles? Serão tais acontecimentos</p><p>apenas aqueles superfatos que dizem respeito a uma história particular</p><p>fantástica, show da vida, da jovem que mata seus pais, ou do bebê que é</p><p>roubado na maternidade? Claro: os mitos nos seduzem, há mitos</p><p>arcaicos que não deixarão jamais de nos importunar; mas se trata</p><p>sempre deles, e sempre do mesmo modo, grotesco e espetacular, desses</p><p>que ocupam, ad nauseam, as páginas dos jornais, as manchetes da TV?</p><p>Ou haverá outras narrativas e imagens que também nos capturam mas</p><p>que carregam em si aquela possibilidade de nos fazer voar, de ir além,</p><p>como, por exemplo, o Concerto para piano e orquestra, K. 456, de</p><p>Mozart, que por acaso encontramos na TV Senado, zapeando numa</p><p>noite de sexta-feira? Ou como a dança encantadora dos grous, aquelas</p><p>aves fantásticas, enormes, da Ilha de Hokkaido, no Japão, que bailam ao</p><p>vento, deslizam na neve, quais bailarinas</p><p>russas, num simplório Globo</p><p>Repórter da mesma sexta-feira?[4]</p><p>Interessa-me, portanto, problematizar as relações entre imagem e</p><p>educação, pensando do ponto de vista dessa nova ordem, que sugere e</p><p>produz modos e estilos de vida, os quais passam a ser vistos e</p><p>aprendidos como naturais, imediatos, familiares, como modos de vida</p><p>que nos afetam, que nos aparecem como garantia de verdade, como</p><p>afetuosa partilha de cotidianos, e não como jogos de interpelação, de</p><p>luta explícita pela imposição de sentidos. Reivindico, em acordo com</p><p>Beatriz Sarlo, que ali, no espaço da mídia, dá-se todos os dias o</p><p>aprendizado de linguagens simplificadas, do medo das complicações</p><p>semânticas e sintáticas, da rejeição aos torneios de linguagem, das</p><p>metáforas mais elaboradas, da sofisticação das diferenças de linguagem</p><p>e de estilos. Insisto que, nas imagens midiáticas, acabamos por aprender</p><p>a esquecer a particularidade de cada evento, de cada indivíduo, essas</p><p>multiplicidades que não cessam de produzir caleidoscopicamente novos</p><p>formatos, novos arranjos, surpresas de nós mesmos (cf. Sarlo 1997, pp.</p><p>129-138) – eventualmente presentes em algumas imagens, como a dos</p><p>grous dançarinos, ou do piano que jorra Mozart, imagens e sons que nos</p><p>capturam talvez para uma dimensão inesperada de cada um de nós.</p><p>Singularidades comunicáveis ou trocas impossíveis?</p><p>Ora, se as possibilidades do imprevisível da experiência nos</p><p>parecem ser quase sempre negadas no espaço da mídia, então, trata-se</p><p>de falar disso, de investigar as relações desse fato com os modos de a</p><p>escola, também ela, negar certas visibilidades e diferenças, ao mesmo</p><p>tempo em que se procurará descrever os modos pelos quais vão se</p><p>construindo tais estilos midiáticos (e pedagógicos escolares), por meio,</p><p>por exemplo, de uma equivalência de temas, valores, afetos e saberes,</p><p>distantes e esquecidos das multiplicidades, das tonalidades várias, das</p><p>incontáveis singularidades. Aliás, a ideia de que tudo se equivale, de</p><p>que rigorosamente qualquer voz poderá ser ouvida sobre o mesmo fato,</p><p>por exemplo, talvez possa nos fazer pensar que, afinal, respira-se aqui e</p><p>agora, nestes tempos midiáticos, um saudável ar democrático – uma</p><p>atenção explícita às diversidades e diferenças.</p><p>Ora, pode ser que esteja ocorrendo justamente o oposto: na mídia,</p><p>como na escola, teríamos antes a reiteração de que, como escreve</p><p>Walter Benjamin (2002, pp. 21-25), alguém, no lugar de adulto, ou de</p><p>produtor midiático, ou ainda de professor, detém a experiência, narra a</p><p>experiência vivida, deixando sentir e pensar que as singularidades</p><p>possíveis já não são possíveis, não passam de equivalências. Venera-se</p><p>na mídia a história daquele que está lá, ampliam-se sua dor e seu prazer,</p><p>ou convidam-se este homem daqui, esta mulher daqui, para que lá</p><p>depositem um pouco de sua história, naquele lugar – ambos, ou todos,</p><p>roubados em sua singularidade única (e no entanto só possível porque</p><p>intercambiável). Um tipo de coragem está lá no reality show, a coragem</p><p>de se expor e deixar-se à mercê, de deixar-se até sofrer e chorar, 24</p><p>horas visível aos olhos de todos. A coragem daqui, do espectador, do</p><p>aluno, da criança, do jovem – como será vivida, como será aprendida?</p><p>Como a convocação à experiência, aquela que é tão viva e plena de</p><p>sangue quando somos jovens, como tal convocação ainda será possível</p><p>em nossos dias, se a ela não estivermos atentos? A meu ver, esse seria</p><p>um modo importante de experimentar e pensar as imagens de nosso</p><p>tempo, as imagens da mídia, para além de nos fazermos meros analistas</p><p>dos meios de comunicação e denunciarmos suas mazelas.</p><p>Por essa razão, passam a interessar ao experimentador de imagens</p><p>todas as figuras e paisagens simbólicas de nosso tempo, que se</p><p>oferecem para ser pensadas e estudadas naquilo que afetam, naquilo que</p><p>tocam profundamente nossa vida – imagens que certamente estão</p><p>presentes também no cotidiano escolar. São esses estudos que</p><p>interessam, investigações que tratam da vida, da experiência, daquilo</p><p>que nos toca e nos faz padecer, como escreve Jorge Larrosa (2002).</p><p>Adoecer de amor na adolescência, desejar (na condição de criança)</p><p>consumir alucinadamente, aprender a arte da docência, ser e estar</p><p>criança ou jovem no espaço público, pensar o cinema e o olhar da e</p><p>para a infância, analisar e discutir relações entre infâncias vividas em</p><p>estado de miséria, violência e pobreza e suas aparições na televisão –</p><p>temas como esses, apanhados das imagens da mídia e da indústria do</p><p>entretenimento, bem como do contato com estudantes dos diferentes</p><p>níveis de ensino, meninos e meninas de diferentes idades e condição</p><p>social, têm sido narrados, estudados, investigados por vários</p><p>pesquisadores,[5] que mergulham, que olham de dentro, por dentro das</p><p>imagens, dos textos, da vida que pulsa em todas essas narrativas, de</p><p>todo esse emaranhado simbólico. São pesquisas que não se fecham em</p><p>si mesmas, pois tratam do impensado, daquilo que, como escreve</p><p>Marilena Chaui no seu texto sobre o olhar, nos “dá a pensar”, porque</p><p>apanham o que alguém “nos deixou para pensar” justamente por</p><p>“pensar o que pensou”. Para a filósofa, “o olhar ensina um pensar</p><p>generoso que, entrando em si, sai de si pelo pensamento de outrem que</p><p>o apanha e o prossegue. O olhar, identidade do sair e do entrar em si, é a</p><p>definição mesma do espírito” (1999, p. 61). Entendo que olhar o olhar</p><p>da mídia, pensar o olhar da mídia e o nosso olhar em relação às suas</p><p>imagens passa por essa experiência de deixar-se tocar por imagens que</p><p>de algum modo tocam as pessoas, no sentido de abrir-se ao que nelas</p><p>“dá a pensar”, ao que nelas é fixado como experiência desejável ou</p><p>negado como experiência possível.</p><p>Trata-se de pensar tais “visibilidades de visibilidades” pelo meio,</p><p>de dentro, como emergência, a partir dessa condição de superfície, pois</p><p>talvez realmente “o mais profundo seja mesmo a pele”, como escreve</p><p>Paul Valéry, citado por Deleuze no livro Conversações. Porque é na</p><p>superfície dos corpos e também das imagens que vemos e estudamos,</p><p>que se inscrevem enunciados, ali visíveis, mas não totalmente expostos,</p><p>ali ocultos, mas não totalmente escondidos. Tratar das superfícies é</p><p>tratar não das interpretações, e sim das profundidades, das</p><p>experimentações, das dobras e redobras, daquilo que os indivíduos e</p><p>grupos sociais dobram, do exterior, sobre si mesmos, e que se</p><p>transforma em exterioridade também (cf. Deleuze 1992). Em outras</p><p>palavras, para descrever e estudar a mídia, como trabalho educacional,</p><p>no espaço escolar, ou como trabalho de pesquisa em educação, há que</p><p>mergulhar naquilo que as imagens midiáticas têm ou deixam de ter</p><p>como vinculação com a experiência, com aquilo que mobiliza e</p><p>transforma as pessoas.</p><p>Acúmulo de imagens e informação é da ordem da experiência? É</p><p>esse um tipo de experiência que passa a nos afetar, na medida em que,</p><p>por exemplo, sofremos a angústia de não conseguir apanhar tudo, não</p><p>conseguir ler tudo, não conseguir ver tudo? É da ordem da experiência</p><p>aprender a amar as imagens e os sons que narram o espetáculo das belas</p><p>vidas na dramaturgia novelesca das oito da noite ou o espetáculo da</p><p>miséria humana simbolizado pelas figuras de apresentadores de</p><p>programas de auditório como Ratinho ou Márcia Goldsmith? Como</p><p>entender, por exemplo, a avalanche de conselhos que nos são dados a</p><p>todo instante por jornalistas e apresentadores de TV, atores e atrizes,</p><p>personagens da ficção televisiva? Estariam eles “trocando” experiências</p><p>conosco? Estariam eles, como escreve Benjamin, a propósito da figura</p><p>do narrador literário, sugerindo-nos que continuemos uma história?</p><p>Possivelmente não, pois não estamos a trocar narrativas, não</p><p>verbalizamos naquele momento a nossa situação (Benjamin 1993, p.</p><p>200). Mas não cessam de crescer programas de TV em que o centro são</p><p>justamente trágicas ou cômicas histórias, grotescos relatos de figuras</p><p>comuns, em busca de visibilidade e reconhecimento. Que casos são</p><p>narrados ali? Que modos específicos de narrar ocorrem? Que tipo muito</p><p>particular de experiência pode estar sendo vivida por espectadores de</p><p>todas as idades, de todas as cores</p><p>e gêneros, de todas as condições</p><p>sociais?</p><p>Não se trata, evidentemente, de opor experiências honrosas e</p><p>experiências indesejáveis nas (e com as) imagens da mídia. Trata-se de</p><p>tomar o conceito de experiência – inspirado em Walter Benjamin (1993;</p><p>2002), em Heidegger (1996), em Nietzsche (1996; 1999), em Michel</p><p>Foucault (1994), em Hannah Arendt (2000) e, bem mais próximo de</p><p>nós, em Jorge Larrosa (2002) – e de fazê-lo criativa ferramenta para</p><p>pensar os modos pelos quais temos analisado, estudado, investigado as</p><p>relações entre mídia e educação. Trata-se de fazer com que esse</p><p>conceito se torne vivo, operante, ágil, a mobilizar perguntas, a sugerir</p><p>caminhos, a problematizar essa prática cotidiana de aprender gostos, de</p><p>educar o olhar, de selecionar informações, de incorporar gestos,</p><p>modulações de voz, jeitos de enxergar os tantos outros com quem</p><p>vivemos ou de quem temos notícia. Diria mais: a ideia que teima em</p><p>perambular por este texto é a de que pode ser muito rico e muito</p><p>produtivo não ficar apenas no nível da denúncia de imagens que nos</p><p>“deseducam”, que nos fazem crianças consumistas, mulheres</p><p>desapaixonadas por seu corpo impossível, corpo que nunca atingirá as</p><p>formas nem a beleza da atriz. Vai-se e quer-se ir além, muito além de</p><p>simplesmente afirmar que “há uma mídia que subjetiva”: busca-se o</p><p>que, nessas manchetes acadêmicas já repetitivas, se torna experiência</p><p>aprisionada, o que nas imagens midiáticas nega outro tipo de</p><p>experiência – estética, política, cidadã, amorosa, corpórea, intelectual,</p><p>artística, espiritual. Quer-se tratar aqui daquela experiência que nos</p><p>transforma. A propósito, lembro Michel Foucault: o filósofo diz que</p><p>escreve sobre aquilo que o “toma”, sobre aquilo que o apanha</p><p>plenamente, justamente porque sobre aquilo ainda não sabe, porque foi</p><p>“chamado”, porque deseja mudar a si mesmo e não pensar do mesmo</p><p>modo como antes pensava. É disso que busco falar neste texto.</p><p>Narrativas midiáticas: Que tipo de experiência?</p><p>As palavras de Foucault sobre o método fenomenológico de</p><p>Husserl são bem-vindas aqui: ele diz ter aprendido com Nietzsche,</p><p>George Bataille e Blanchot, diferentemente da análise fenomenológica,</p><p>a não se debruçar sobre a experiência diária, vivida, mas sobre ela</p><p>lançar seu olhar reflexivo e a partir daí atribuir-lhe significações.</p><p>Foucault faz outro caminho: deseja a experiência, mas aquela que está</p><p>bem mais próxima da própria impossibilidade de viver, a experiência do</p><p>limite, do extremo, aquela experiência que impulsiona o sujeito a</p><p>separar-se de si mesmo e, por aí, transformar-se, já não ser o mesmo</p><p>(Foucault 1994, p. 43).</p><p>Certamente, uma argumentação mais consistente seria necessária</p><p>para estabelecer adequadamente as relações entre esse modo</p><p>foucaultiano de operar sobre si mesmo, esse modo de entender e viver a</p><p>experiência, e aquilo que aqui discutimos, sobre imagem e educação.</p><p>De qualquer forma, arrisco afirmar, assumindo que não desenvolvo</p><p>suficientemente a argumentação – o que demandaria um tempo e um</p><p>espaço bem maiores –, que este pode ser um ponto de partida</p><p>muitíssimo produtivo, em termos teóricos e metodológicos, para os</p><p>estudos de mídia no campo educacional. Imagino que operar sobre as</p><p>imagens da mídia na educação possa ser um trabalho vivo, criativo,</p><p>alegre, explosivo, na medida em que puder sair da sisudez e da mesmice</p><p>das análises das representações da mídia sobre isto ou aquilo, na medida</p><p>em que ultrapassar os estudos que replicam o quanto a mídia é</p><p>pedagógica e o quanto ela ensina. E dizer mais: dizer que há</p><p>experiências em jogo nesses espaços, que há aprendizados de</p><p>experiências ou que há negação de outras experiências. Que algumas</p><p>narrativas midiáticas solapam experiências, outras as incitam, outras</p><p>ainda as pasteurizam e, portanto, as destroem. Dizer também que a</p><p>escola e a pesquisa acadêmica – ambas, cada uma a seu modo – poderão</p><p>falar e tratar da experiência quando e como puderem, pela arte, pela</p><p>poesia, pela narrativa – modos fundamentais de pensar o sensível,</p><p>pensar o vivido, segundo Hannah Arendt. Para a filósofa, só o poético é</p><p>capaz de pensar o horror; “a única ‘reflexão’ possível sobre o inferno é a</p><p>‘imaginação aterrorizada’ dos que souberam contar a memória de</p><p>Auschwitz” (Kristeva 2002, p. 96). Como continua Julia Kristeva, não é</p><p>o irracionalismo que aqui está sendo defendido, mas exatamente a</p><p>“racionalidade ampliada da narrativa, para além dos limites da razão</p><p>raciocinante” (ibidem).</p><p>Volto ao que falei acima, sobre olhar as imagens “de dentro”, de</p><p>posse de uma competência que nos dá ferramentas para ir além da</p><p>posição daquele que coisifica imagens, adona-se delas e as interpreta.</p><p>Penso na possibilidade de pensar as imagens por meio de um olhar que</p><p>se deixe tocar pela experiência: pela experiência daquele que criou o</p><p>roteiro, do ator que representou a cena, do espectador que se</p><p>emocionou; que se deixe tocar também pelos próprios personagens,</p><p>pelas histórias narradas, todas de algum modo inventadas e produzidas</p><p>(seja na telenovela, seja na reportagem jornalística) para estar naquele</p><p>lugar, a mídia, a TV, visibilidade de tantas visibilidades. Nesse sentido,</p><p>é preciso que se diga: há que garimpar belas imagens, boas histórias, na</p><p>TV ou no cinema, e descobrir pequenas obras-primas, como as</p><p>protagonizadas, por exemplo, por Godard, que, em 1976, realizou um</p><p>programa de entrevistas para a TV francesa, chamado Seis vezes dois.[6]</p><p>Ali, o entrevistador-cineasta ficava de igual para igual com uma</p><p>faxineira, com um operário, com um louco. Era Godard na sua</p><p>competência de cineasta, de quem sabe fazer com o “olho”; Godard em</p><p>seu modo artista de viver, plenamente identificado e amoroso com seus</p><p>entrevistados, tão amoroso quanto o cientista que “ensina a voar” os</p><p>grous dançantes, oriundos da Manchúria e agora ameaçados de extinção</p><p>na gelada ilha japonesa.</p><p>Objeções possíveis ao que afirmo: uma telenovela e um programa</p><p>assistencialista-grotesco de auditório não se comparam a um programa</p><p>de TV que tem Jean-Luc Godard como entrevistador ou a um</p><p>documentário elaboradíssimo da BBC de Londres. Sim, não se</p><p>comparam. Mas não se trata de separar TV de cinema, nem de falar de</p><p>arte maior e arte menor, ou de arte e não arte. Trata-se de buscar ver nas</p><p>visibilidades das visibilidades aquilo que é da ordem do que “está a</p><p>mais”, do “obtuso”, como quer Roland Barthes.[7] Trata-se de não ser</p><p>gago em sua fala, mas de ser gago da própria linguagem, como escreve</p><p>Deleuze, na entrevista ao Cahiers du cinéma, a respeito do programa de</p><p>TV conduzido por Godard; trata-se de ser estrangeiro na própria língua,</p><p>de fazer da própria solidão um povoamento, uma força, um ato de</p><p>criação (cf. Deleuze 1992, pp. 51-52). Com base nos comentários sobre</p><p>essa série de programas de TV feitos por Godard, por exemplo, Deleuze</p><p>nos ensina a estudar as imagens como não diferenciadas das coisas nem</p><p>do movimento, a estudar igualmente o dentro das imagens, entendendo</p><p>que “perceber é subtrair da imagem o que não nos interessa, [porque]</p><p>sempre há menos na nossa percepção. Estamos tão repletos de imagens</p><p>que já não vemos as imagens que nos chegam do exterior por si</p><p>mesmas” (idem, p. 58, ênfase do autor). Aprendemos com ele sobre os</p><p>golpes das imagens sonoras, golpes que normalizam as imagens, que</p><p>nos negam coisas a ver, que definem para nós o que podemos e o que</p><p>não podemos ver. (O que nos foi dado a ver da recente guerra contra o</p><p>Iraque? O que se repetiu à exaustão nas telas da TV sobre o ataque às</p><p>torres de Nova York, em setembro de 2001?) Aprendemos com Deleuze</p><p>a perguntar sobre a trama de ideias que existem nas imagens. Godard,</p><p>nas suas entrevistas, por exemplo, procura devolver às imagens toda a</p><p>sua plenitude, tudo o que elas têm; ele decompõe, desfaz a linguagem</p><p>das imagens, para extrair delas ideias (ou enunciados, acrescento, ao</p><p>modo de Foucault). Toda essa operação permite ver que uma imagem</p><p>nunca está só, que o que conta é a relação entre as imagens, as</p><p>diferentes imagens, mentais, virtuais, cinematográficas, televisivas,</p><p>pictóricas etc. – relação experimentada por aquele que produz, por</p><p>aquele que cria, por aquele que especta, sente, reage, movimenta-se,</p><p>deixa-se seduzir.</p><p>O que pensar sobre esses modos de olhar as imagens da mídia e as</p><p>tantas visibilidades de nosso tempo? O que isso tem a ver com a</p><p>imaginação? Este texto não chega a conclusões, é certo; apenas sugere</p><p>que é possível pensar as imagens, o tempo e o movimento do cinema, o</p><p>zapping e o clip da televisão, todas essas produções e experimentações,</p><p>com base em uma ideia de intensidades, de zonas-limite, da poética</p><p>narrativa como possibilidade fundamental de reflexão sobre o vivido;</p><p>uma ideia de experiência como padecimento e como solidão povoada,</p><p>como algo que se faz sozinho mas que sempre escapa à pura</p><p>subjetividade, como nos diz Foucault. O filósofo está falando aqui de</p><p>seus livros e da sua experiência com a escrita, com a pesquisa, e ainda</p><p>com os próprios temas, temas vitais, da morte, da doença, da dor, da</p><p>prisão: ele diz que sai diferente após a escrita e também espera que os</p><p>leitores sejam outros após o contato com seu livro (Foucault 1994, pp.</p><p>41-42). Ora, é disso que estamos tratando aqui. De um trabalho sobre e</p><p>com as imagens, no âmbito da educação, que se possa fazer exatamente</p><p>nesse sentido – de mergulho numa multiplicidade de experiências, por</p><p>parte daquele que investiga, daquele que põe o olhar nas imagens da</p><p>mídia, daquele que perscruta as singularidades negadas ou as</p><p>singularidades meteoricamente ofertadas ao espectador. Esse mergulho</p><p>requer instrumentos variados, teóricos, de sensibilidade poética, de</p><p>atenção aos sintomas e perigos de nosso tempo.</p><p>Discutir e pensar os cruzamentos entre imagem e educação, na</p><p>perspectiva aqui assumida, é, no limite, tratar de temas que competem à</p><p>vida e à morte, pensando sempre em novas possibilidades de vida, de</p><p>existência. É tratar a mídia e a escola com um vitalismo de fundo</p><p>estético, que compete às nossas formas de subjetivação. É analisar como</p><p>aquilo que nos afeta é capturado pelas câmeras desejosas da televisão; é</p><p>descrever os meandros, os labirintos, os nós dessa captura, de tal modo</p><p>que com isso nosso incômodo e nosso desconforto se façam visíveis –</p><p>com os devidos rigor e criatividade acadêmicos –, seja em nossa aula,</p><p>em nossa palestra, seja em nosso texto científico, em nossa tese ou</p><p>dissertação. É deixarmo-nos angustiar, é sentirmo-nos fora do lugar,</p><p>porque, afinal, estamos nos ocupando de modos de subjetivação, de</p><p>uma relação de força com nós mesmos; porque estamos atentos a modos</p><p>de existência que tratam de nossa existência não como sujeitos</p><p>individuais, mas como possibilidades de sermos obras de arte,</p><p>justamente porque, de algum modo, resistimos ao poder e nos</p><p>recusamos ao saber, existindo e nos opondo por dentro dessas mesmas</p><p>relações de poder e saber. Pensar desse jeito é atentar para um querer</p><p>artista que, de alguma forma, é irredutível ao saber e ao poder, algo que</p><p>opera por intensidades, como escreve Deleuze, no retrato que faz de</p><p>Foucault (1992, pp. 127-147).</p><p>Para concluir: pautar-nos pela experiência, nesses estudos sobre</p><p>mídia e educação, é desejar fazer um pouco de história. História do</p><p>presente. Separarmo-nos de nós mesmos. Com Foucault, entender a</p><p>história como o que nos cerca e nos delimita, aquilo de que nos</p><p>diferenciamos, aquilo que precisamos atravessar para pensarmos a nós</p><p>mesmos, nossa atualidade, o intempestivo que nos toma ao pensar.</p><p>Ouçamos Deleuze, escrevendo ainda sobre Foucault: “Pensar é,</p><p>primeiramente, ver e falar, mas com a condição de que o olho não</p><p>permaneça nas coisas e se eleve até as ‘visibilidades’, e de que a</p><p>linguagem não fique nas palavras ou frases e se eleve até os</p><p>enunciados” (idem, p. 119). Descrever os enunciados – a rigor,</p><p>inseparáveis da experiência, porque é dela que se trata, na criação do</p><p>pesquisador, no objeto do qual ele fala também – será então descrever o</p><p>regime de verdade e de linguagem de um certo estrato, em todas as</p><p>variações pelas quais eles passam, “saltando de um sistema homogêneo</p><p>a outro” (idem, p. 120), entendendo que as formações históricas dizem</p><p>tudo o que podem dizer, veem tudo o que podem ver. E perguntamos,</p><p>então: o que somos hoje capazes de dizer? O que somos hoje capazes de</p><p>ver? O que somos capazes de experimentar? Somente o que a mídia nos</p><p>ensina a ver e o que a escola nos ensina a dizer? Apenas isso? Ver e</p><p>dizer são inseparáveis, mas irredutíveis um ao outro. Então, não custa</p><p>aprender com Foucault, com seu estilo, sua sintaxe, cheia de valores</p><p>rítmicos, de contrapontos, de diálogos curiosos, uma sintaxe que recolhe</p><p>reflexos, cintilações do visível, mas que “também se contorce como</p><p>uma correia, se dobra e se desdobra, ou estala ao ritmo dos enunciados”</p><p>(idem, p. 126). Uma sintaxe e uma vida que se deixam apanhar, que se</p><p>deixam viver, ser experiência.</p><p>Referências bibliográficas</p><p>ARENDT, Hannah (2000). A condição humana. Rio de Janeiro: Forense.</p><p>BARTHES, Roland (1990). “O terceiro sentido”. In: BARTHES, Roland. O óbvio e o obtuso.</p><p>Rio de Janeiro: Nova Fronteira.</p><p>BENJAMIN, Walter (1993). “O narrador. Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov”. In:</p><p>BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas. Magia e técnica, arte e política. São Paulo:</p><p>Brasiliense.</p><p>________ (2002). “Experiência”. In: BENJAMIN, Walter. Reflexões sobre a criança, o</p><p>brinquedo e a educação. Rio de Janeiro: Duas Cidades; Ed. 34.</p><p>CHAUI, Marilena (1999). “Janela da alma, espelho do mundo”. In: NOVAES, Adauto (org.).</p><p>O olhar. São Paulo: Companhia das Letras.</p><p>COSTA, Jurandir Freire (2001). “A subjetividade exterior”. [Disponível na internet:</p><p>http://jfreirecosta.sites.uol.com.br, acesso em 25/6/2008.]</p><p>DELEUZE, Gilles (1992). “Três questões sobre ‘Seis vezes dois’” e “Michel Foucault”. In:</p><p>DELEUZE, Gilles. Conversações – 1972-1990. Rio de Janeiro: Ed. 34.</p><p>FISCHER, Rosa Maria Bueno (2001). “Foucault e a análise do discurso em educação”,</p><p>Cadernos de Pesquisa, n. 114. São Paulo, nov., pp. 197-223.</p><p>(2002a). “O dispositivo pedagógico da mídia: Modos de educar na (e pela) TV”, Educação e</p><p>Pesquisa, vol. 25, n.1, pp. 151-162.</p><p>(2002b). “Problematizações sobre o exercício de ver: Mídia e pesquisa em educação”, Revista</p><p>Brasileira de Educação, n. 20. Rio de Janeiro: Anped, maio-jun.-jul.-ago., pp. 83-94.</p><p>(2005a). “Mídia e educação: Em cena, modos de existência jovem”, Educar em Revista, vol.</p><p>26, n. 0. Curitiba, pp. 17-38.</p><p>(2005b). “Mídia e juventude: Experiências do público e do privado na cultura”, Caderno de</p><p>Pesquisa (Cedes), vol. 25, n. 65, jan.-abr., pp. 43-58.</p><p>(2006). “Infância, mídia e experiência”. In: GURSKI, Roselene; DALPIAZ, Sonia e VERDI,</p><p>Marcelo Spalding (orgs.). Cenas da vida atual. A família, a escola e a clínica. Ijuí:</p><p>Unijuí, pp. 27-40.</p><p>FOUCAULT, Michel (1971). L’ordre du discours. Paris: Gallimard.</p><p>________ (1994). “Entretien avec Michel Foucault”. In: FOUCAULT, Michel. Dits et écrits.</p><p>1954-1988, vol. IV. Paris: Gallimard, pp. 41-95.</p><p>HEIDEGGER, Martin (1996). Conferências e escritos filosóficos. São Paulo: Nova Cultural.</p><p>KRISTEVA, Julia (2002). O gênio feminino. A vida, a loucura, as palavras. Tomo 1, Hannah</p><p>Arendt. 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